por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 12 Junho 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 7
Ezra Nawi – activista dos direitos humanos e canalizador (Israel)
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Ezra Nawi |
Ezra Nawi vai provavelmente ser condenado a uma pena de prisão no próximo dia 1 de Julho. A sentença só vai ser lida nesse dia, mas o julgamento teve lugar em 19 de Março passado e Ezra Nawi já foi condenado.
"O réu foi julgado culpado de ter participado em distúrbios e de ter agredido um agente da polícia". É essa a conclusão do processo, que consistiu basicamente no confronto das declarações de agentes da polícia e de Nawi. Nawi diz que não agrediu o polícia. O polícia diz que ele lhe deu um murro na cara. Os factos tiveram lugar às 15h00 do dia 14 de Fevereiro de 2007, próximo do colonato de Carmel, no sul dos montes Hebron, nos territórios palestinianos da margem ocidental do Jordão, ocupados por Israel desde 1967.
Apesar do tempo que já passou e de não terem testemunhado os acontecimentos, há milhares de pessoas por todo o mundo que estão convencidas da inocência de Nawi e, nos últimos dias, têm assinado petições e enviado cartas a embaixadas e às autoridades israelitas a pedir que Nawi seja ilibado.
Uma das razões por que há tanta gente convencida da sua inocência é porque Ezra Nawi é um experiente activista dos direitos humanos israelita, conhecido pela sua defesa dos palestinianos dos montes Hebron e por uma rigorosa prática de não-violência, que tem o sangue-frio necessário para nunca responder a provocações.
Por outro lado, no processo há coisas estranhas, como o facto de a agressão não ter sido referida pelo polícia supostamente agredido nas primeiras declarações que prestou para o processo e de só posteriormente terem aparecido.
Depois, há a conveniência política da condenação de Ezra Nawi. Nawi, que é judeu, é um espinho cravado na política de colonatos israelita, odiado pelos colonos da região e pela cada vez mais poderosa extrema-direita israelita, e tem feito tudo o que pode para impedir as demolições de casas de palestinianos - destinadas à expansão de "zonas de segurança" ou do perímetro de colonatos - e para os ajudar a manter-se nas suas terras e a sobreviver.
Finalmente, outra razão para que muita gente não se convença da culpa de Nawi é que há um vídeo dos acontecimentos, que se pode ver no YouTube e que, se não mostra tudo, mostra o suficiente.
No vídeo vê-se um grupo de pessoas, entre as quais Nawi, que se tentam opor à demolição de um conjunto de barracas de tecto de chapa ondulada. São casas de beduínos palestinianos, em Hebron. Há polícias e soldados que tentam afastar os manifestantes, eles desviam-se, regressam, entram na barraca que a escavadora espera para demolir. Os soldados derrubam uma parede e empurram os manifestantes para o exterior. Eles saem e tentam interpor-se entre a escavadora e as casas. Nawi e outros deitam-se no chão, os soldados pegam neles em peso e desviam-nos. Uma típica manifestação não-violenta. Há sacudidelas e empurrões mas não há violência dos manifestantes nem brutalidade dos soldados. Toda a cena é filmada sem interferência visível dos soldados. Há quem tire fotografias. O processo judicial dirá que a casa é "ilegal", como sempre nestes casos. Os soldados tentam agarrar Nawi, que lhes sacode as mãos e se vai furtando a ser agarrado, como num jogo de apanhada. A escavadora consegue finalmente investir contra a casa mas Nawi escapa-se por trás dos soldados e entra nas ruínas da casa, semi-destruída, telhado entornado, a pá da escavadora ameaçadora no ar. Entram dois soldados atrás dele e saem a agarrá-lo por um braço. Terá sido dentro da casa que a agressão terá tido lugar. Nem a agressividade dos soldados parece ter aumentado nem Nawi parece alterado quando saem. Nawi acaba por ser levado para um camião e é algemado. Fica sentado a assistir, calmo. Os soldados à volta estão descontraídos, a demolição pode prosseguir, as mulheres palestinianas choram e amaldiçoam os soldados, uma embala um bebé. Nawi comenta em voz baixa: "A única coisa que vai restar aqui é ódio". A certa altura interpela um soldado que ri. "Tem graça, soldado? Tem graça que as crianças esta noite tenham de dormir ao relento?" O soldado responde que ele irá dormir em casa. O filme acaba.
Ezra Nawi é militante da organização Ta'ayush - Co-existência Árabe-Judia, mas é um activista especial. Para começar, é canalizador, e, além de ser um defensor dos direitos dos palestinianos e um opositor dos colonatos, Nawi é gay e a sua militância estende-se aos direitos dos homossexuais numa região do mundo onde isso nem sempre é fácil - apesar da liberalidade das franjas progressistas da sociedade israelita. Em Hebron, Nawi já se habituou a ver somar-se às acusações de "traidor do seu povo" os comuns insultos homofóbicos por parte dos colonos, que encara com absoluta indiferença. Como as ameaças de morte que lhe são dirigidas.
Nawi nasceu em 1952 numa família pobre de ascendência iraquiana e viveu toda a vida em Jerusalém. Fala tão fluentemente o hebreu como o árabe e, por esse facto, funciona frequentemente como contacto entre activistas palestinianos e israelitas na Cisjordânia - o que torna a sua futura prisão particularmente útil num contexto de radicalização da política de ocupação.
O trabalho de Nawi, desde que, há cerca de dez anos, conheceu as comunidades beduínas de Hebron, que vivem tradicionalmente em cavernas (que também são destruídas), consiste em tentar ajudá-los a levar uma vida normal. Tentar ajudar os agricultores a arar e semear as suas terras, a colher as azeitonas das suas oliveiras, a pastar os seus rebanhos, ajudar as crianças a ir à escola. A vida comum que nenhum consegue levar devido aos constantes ataques dos colonos que querem expulsá-los da vista e apoderar-se das suas terras, à expropriação das suas terras pelo Estado israelita (por alegadas razões de segurança ou puramente expansionistas) e às investidas do exército que leva a cabo essas operações.
"Nos últimos seis meses", conta o diário israelita Haaretz num artigo de 2005 sobre a actividade de Nawi, "os colonos - grupos radicais que ocuparam ilegalmente os postos avançados da área - intensificaram consideravelmente os seus ataques e as provocações aos palestinianos. Num desses incidentes, há três semanas, várias medas de feno feitas pelos agricultores palestinianos foram incendiadas. Uma horas antes, quatro jovens colonos serraram os ramos de muitas oliveiras. Na mesma semana, pastores judeus puseram um rebanho de cabras e carneiros a pastar num campo que tinha acabado de ser semeado com lentilhas, em frente à aldeia de Gawish, nos montes Hebron. Em Beit Imra, cerca de 200 oliveiras com quinze anos de idade foram cortadas. Não muito longe daí, os colonos passaram um arado por um campo cultivado e destruíram-no. Há duas semanas, um grupo de uns vinte colonos armados com paus e pedras atacou um grupo de pastores. Um rapaz de dez anos sofreu vários ferimentos (...). Nos últimos meses, houve vários ataques levados a cabo por homens mascarados contra crianças palestinianas que iam para a escola acompanhadas por voluntários. Vários voluntários tiveram de ser hospitalizados".
A relação com os colonos continua hoje a ser de grande violência e a actuação das autoridades administrativas da região e do exército varia conforme o clima político. Os relatos de incidentes mostram por vezes administradores sensatos, que tentam controlar os colonos e minimizar os sofrimentos dos palestinianos, mas os colonos sentem que podem contar com a cobertura da direita e da extrema-direita fanática israelita hoje no poder - que define Israel como um "Estado judeu", como faz o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Mesmo quando os soldados executam ordens para expulsar colonos de uma dada área, o resultado costuma ser uma vaga de violência anti-palestiniana.
Nawi transporta pessoas, organiza os voluntários israelitas e estrangeiros que acompanham as crianças palestinianas à escola e os rebanhos aos pastos, organiza protestos, ajuda os palestinianos nas suas tarefas diárias, ajuda-os a reparar as casas, a instalar postos médicos, a abrir poços, a reparar canalizações, a apresentar queixa na polícia contra os colonos, arranja advogados para os defender, traz jornalistas para lhes mostrar a situação no terreno, distribui câmaras para que os camponeses possam filmar os ataques dos colonos e as acções da polícia e do exército, distribui cobertores no inverno, pede dinheiro aos seus clientes-amigos, organiza passeios e aulas de dança para os miúdos, a sua actividade não tem fim. E todos referem a sua calma perante situações de perigo, a sua capacidade para apaziguar os ânimos exaltados, a sua paciência, a sua voz suave, a sua humanidade. E o facto de não exagerar nos preços das reparações.
Em 2007 Ezra Nawi tornou-se o protagonista de um documentário de 80 minutos, Citizen Nawi, que conta a sua história e relata a sua relação com o jovem palestiniano Fuad Mussa, que lhe permitiu conhecer o lado de lá da repressão israelita. "Antes de conhecer Ezra Nawi eu pensava que tinha uma vida interessante", conta Nissim Mossek, o realizador, no site do filme. "Desde que comecei a fazer o filme já fui preso duas vezes, já fui espancado por colonos e o meu equipamento de filmagem já foi várias vezes destruído. Isto permitiu-me ter uma ideia de como é a vida de Ezra e de qual é o preço que ele paga pelo seu activismo".
Ezra Nawi tem muitos amigos e é fácil encontrar relatos de pessoas que passaram uns dias com ele, às vezes a vigiar um campo palestiniano acabado de semear para o proteger de ataques, outras vezes em protestos no centro de Jerusalém tentando despertar a consciência dos seus concidadãos, e não é frequente encontrar apreciações tão cálidas. "Ezra Nawi é um dos israelitas mais decentes que eu já conheci", diz o rabino David Forman, activista pela paz e fundador dos Rabinos pelos Direitos Humanos.
Num belo texto sobre Nawi, o escritor David Shulman escreve: "Às vezes, quando sou assaltado pela dúvida e por aquela pungente sensação de futilidade da vida, digo para mim que talvez um dia alguém se lembre de mim não pelos livros que escrevi, nem pelas línguas que aprendi, nem sequer pelas amizades que cultivei, mas pelo facto de eu ter estado ao lado de Ezra Nawi em Twaneh e Susya e em mais uns quantos lugares, quando os colonos atacaram".
Será difícil perceber que, se há esperança para a alma de Israel, ela existe por causa da actividade de Ezra Nawi e de muitos outros pela paz e pelo respeito mútuo entre israelitas e palestinianos?