domingo, setembro 16, 2007
Manana Aslamazyan, um exemplo para os jornalistas
Texto publicado no jornal Público a 16 de Setembro de 2007
Em Cena 13/2007
No dia 21 de Janeiro de 2007, Manana Aslamazyan aterrou em Moscovo, no aeroporto de Sheremetyevo, vinda de Paris. Ao atravessar a alfândega, escolheu a saída dos passageiros que não têm nada a declarar e preparava-se para passar as portas quando lhe pediram para parar e para mostrar a sua bagagem, naquilo que parece ter sido uma fiscalização de rotina.
Quando mostrou o conteúdo da sua mala de mão, a polícia encontrou 5130 rublos (menos de 150 euros) e 550 euros na sua carteira e um envelope com 9000 euros, que disse serem um empréstimo pessoal feito por uma pessoa amiga.
Acontece que existe um limite de 10.000 dólares americanos (ou o equivalente) para a quantia que um cidadão russo pode trazer para o país sem a declarar na alfândega. A verba total que Manana Aslamazyan transportava excedia em 2567 dólares aquele limite legal. Aslamazyan explicou que se tinha tratado de um esquecimento, mas resignou-se a pagar uma multa e nos próximos dias esperou a respectiva notificação.
Nas semanas seguintes Manana Aslamazyan soube que o seu caso estava a ser investigado pelo Departamento de Segurança Económica do Ministério do Interior, que se preparava para a acusar de contrabando, uma acusação que pode ter uma pena de um a cinco anos de prisão.
O caso de Manana Aslamazyan tem uma relevância que excede o fait divers porque esta mulher de 55 anos, cidadã russa nascida na Arménia, é (ou era, na altura deste episódio) presidente de uma organização não-governamental chamada Educated Media Foundation (anteriormente dirigia a Internews Russia, que foi absorvida pela primeira em Janeiro deste ano) que se dedica à formação de jornalistas.
Aslamazyan é uma figura de primeiro plano no jornalismo russo não pela sua actividade directa como jornalista mas por essa actividade de formação que, ao longo dos últimos onze anos já abrangeu 15.000 profissionais da televisão regional.
Apesar (ou por causa) do seu prestígio junto da imprensa, a Internews nunca foi uma organização simpática para as autoridades. A sua tónica na defesa da liberdade de expressão e opinião, na responsabilidade profissional e cívica dos jornalistas, no princípio de que a primeira responsabilidade dos jornalistas é para com os seus concidadãos, na recusa de qualquer forma de censura, destinou-a a um confronto permanente com o poder cada vez mais concentrado e menos tolerante de Moscovo. A Internews tinha o cuidado de se manter afastada de qualquer actividade política e sempre foi prudente na emissão de juízos públicos que pudessem ser usados para limitar a sua esfera de acção. A Internews fazia formação de jornalistas e era tudo. Na opinião do Kremlin, porém, era de mais.
No dia 18 de Abril de 2007, uma brigada de polícias do Departamento de Segurança Económica do Ministério do Interior efectuou uma rusga na Educated Media Foundation. Ao longo de 11 horas, revistaram as instalações e analisaram os arquivos, acabando por confiscar documentos e os computadores da organização. Já não se tratava de uma infracção, nem sequer de um crime cometido por uma pessoa. O episódio da alfândega tinha sido empolado para se transformar numa acusação de lavagem de dinheiro à instituição dirigida por Manana Aslamazyan.
Aslamazyan só seria formalmente acusada (de contrabando de dinheiro) em 15 de Junho, mas a acusação não lhe pôde ser entregue. Prudentemente, Aslamazyan tinha partido para o estrangeiro, de onde pediu para ser julgada in absentia - o que o tribunal recusou.
As acusações lançadas contra Aslamazyan e a sua organização deram origem a um abaixo-assinado de mais de 2000 jornalistas, enviado ao Presidente Vladimir Putin, onde se pede a sua intervenção para garantir um justo tratamento de Aslamazyan, cujo trabalho é vivamente elogiado, e "pôr um fim à violência contra a Educated Media Foundation" que consideram estar a "prejudicar o país".
Putin foi recentemente interpelado a propósito deste caso e terá dito que Aslamazyan "pode voltar para a Rússia", acrescentando que "não se deve confundir um engano com um crime". Só que não foi apenas isso que Putin disse. O Presidente exprimiu dúvidas sobre a Educated Media Foundation, dizendo que "uma organização que é financiada com dinheiro estrangeiro não pode ensinar nada de bom aos jornalistas russos".
Aslamazyan não tem hoje formalmente nada a ver com a Educated Media Foundation, tendo-se demitido dos cargos que ocupava para não prejudicar a organização, mas o seu caso parece ter sido montado com dois claros fins em vista: intimidar os jornalistas e intimidar as ONG em geral.
Perante a aproximação das eleições parlamentares em Dezembro de 2007 e das presidenciais de Março 2008, e na impossibilidade de pressionar todos os jornalistas e todos os órgãos de comunicação social da Rússia, Putin teria decidido escolher figuras dos media de visibilidade nacional para passar a mensagem de que as veleidades de independência jornalística não são bem vistas pelo Kremlin e podem ter desfechos desagradáveis. Aslamazyan seria a figura ideal, pela sua notoriedade e prestígio, para transmitir essa mensagem.
A questão das ONG é outra coisa. As ONG estão sob o fogo de Putin desde sempre e foram objecto de uma lei específica aprovada em 2005. Essa lei dá largos poderes às autoridades para restringir ou proibir a actividade de ONG que critiquem o Governo, promovam a democracia ou defendam a liberdade de imprensa.
As ONG podem também ser proibidas se ameaçarem "a soberania, a independência, a integridade territorial, a unidade nacional, a herança cultural ou os interesses nacionais da Rússia" - o que concede cobertura legal à pressão sobre as organizações críticas do poder.
O exílio de Aslamazyan - que se encontra neste momento aparentemente em Paris - arrisca-se a não ser curto, mas o seu exemplo na defesa da liberdade de expressão poderá ser o melhor ensinamento de todos os que já transmitiu a milhares de jornalistas russos.
domingo, julho 22, 2007
Nazanin Afshin-Jam, a mulher que salvou Nazanin
Texto publicado no jornal Público a 22 de Julho de 2007
Em Cena 12/2007
No Canadá é uma estrela. Uma pop-star, mais precisamente. Antes de mais, Nazanin Afshin-Jam é famosa por ser famosa e é famosa por ser bonita. Só que os seus talentos não ficam por aqui.
Os seus retratos profissionais apresentam-na como cantora, compositora (das suas canções), modelo e actriz. Se ignorarmos uns contratos como modelo quando era estudante, a sua primeira actividade profissional foi como Miss: Miss Vancouver, Miss Swimsuit, Miss World Canada, Miss Desporto, Queen of the Americas e um segundo lugar no concurso de Miss Mundo em 2003. De caminho, foi participando em meia dúzia de episódios de séries de televisão. Aos títulos de beleza seguiram-se os habituais contratos para fotografias, aparições públicas, participações em programas de TV e de rádio, entrevistas várias e uma chuva de capas de revistas. Como cantora a sua carreira é curta: o primeiro álbum (Someday) foi publicado no mês passado e está a fazer uma carreira aparentemente bem sucedida.
Mas Nazanin (é este o seu nome artístico) é também outra coisa: uma militante pelos direitos humanos que conquistou a notoriedade no seu país e para além dele com uma campanha para salvar uma jovem condenada à morte.
Seria aliás mais correcto dizer "nos seus países" porque Nazanin tem dois: o Irão e o Canadá. Nasceu no Irão (Teerão) em 1979, durante a Revolução Iraniana que levaria Khomeini ao poder. A sua família fugiu para a Europa e posteriormente para o Canadá em 1981, depois de o pai ter sido preso pela Guarda Revolucionária de Khomeini, torturado e condenado à morte.
Na Universidade de British Columbia, Nazanin estudou Ciências Políticas e Relações Internacionais, estudos que complementou com pós-graduações em França e Inglaterra. Enquanto estudava teve tempo para aprender a pilotar aviões (fez o curso dos Royal Canadian Air Cadets), além de se dedicar à prática de vela, caiaque, karting e dança e de trabalhar como voluntária da Cruz Vermelha em campanhas contra as minas terrestres e em defesa das crianças que vivem em zonas de guerra. Depois disso, a actividade de Nazanin foi muito além da das jovens que se limitam a declarar no palco que se pudessem concretizar um desejo pediriam "a paz no mundo".
A história da sua família, o seu trabalho como voluntária da Cruz Vermelha e o facto de ter sido uma jovem iraniana que participou em concursos de beleza, passeando-se em fato de banho à frente dos olhos de milhões de homens (só para o desfile de Miss Mundo houve 2200 telespectadores), permitiu-lhe uma experiência directa do que são os atentados às liberdades no mundo de hoje. Porquê os desfiles? Porque a visibilidade da sua participação teve como preço as críticas dos sectores conservadores da comunidade iraniana no Canadá, as ameaças de fundamentalistas islâmicos e mensagens de apoio de jovens iranianos que lhe permitiram ter uma noção da limitação das liberdades e da repressão das mulheres no seu país de origem.
A campanha que deu notoriedade a Nazanin foi porém a campanha para libertar Nazanin. Outra Nazanin, Nazanin Mahabad Fatehi, uma jovem iraniana de 17 anos condenada à morte por enforcamento a 3 de Janeiro de 2006 por ter apunhalado um dos três homens que a tentaram violar a ela e a uma sobrinha de 15 anos, num parque de Karaj, um subúrbio de Teerão.
Nazanin Afshin-Jam iniciou uma campanha pela sua libertação que incluiu o lançamento de uma petição que recolheu mais de 350.000 assinaturas, a produção de um documentário (The Tale of Two Nazanins), contínuas acções públicas e intervenções nos media e uma actividade de lobbying junto das autoridades iranianas e das Nações Unidas. A campanha pela libertação de Nazanin conseguiu mobilizar a Amnesty International, o Parlamento canadiano, a União Europeia e levou as autoridades judiciais iranianas a rever o caso, suspender a condenação e realizar um novo julgamento que se saldou por uma absolvição, em Janeiro passado.
Mas Nazanin Afshin-Jam
não parou aqui. Lançou a campanha Stop Child Executions Campaign (www.stopchildexecutions.com) que tenta anular
as condenações à morte de mais de 20 menores que esperam a execução nas cadeias de Teerão
e mudar as leis iranianas, de forma a pôr fim à execução de menores. A lista dos crimes dos que foram executados nos últimos anos inclui actos como "atentados contra a castidade" ou dar aulas de religião Baha"i.
A acção de Nazanin Afshin-Jam no caso de Nazanin Fatehi foi distinguida com o Prémio Herói dos Direitos Humanos, atribuído pela organização Artists for Human Rights, dirigida pela actriz Anne Archer.
Nazanin Afshin-Jam também provoca críticas. Há quem diga que as suas simpatias políticas estão do lado de Reza Pahlavi, o filho do último xá do Irão, e que os seus verdadeiros motivos seriam a reinstauração da monarquia no país ou que a sua actividade humanitária é apenas uma forma de promoção pessoal. Mesmo que seja assim, se essa promoção continuar a defender os direitos humanos e a salvar vidas, parece um tipo de promoção totalmente louvável.
domingo, julho 08, 2007
Yuriko Koike, a pomba-falcão japonesa
Texto publicado no jornal Público a 8 de Julho de 2007
Em Cena 11/2007
É verdade que, desde a semana passada, ela é a nova ministra da Defesa do Japão, mas os japoneses conhecem-na principalmente, por enquanto, como a promotora da campanha Cool Biz. Ainda que isso vá mudar.
O Cool Biz não é um refrigerante mas sim uma nova forma de vestir, que Yuriko Koike tentou promover quando era ministra do Ambiente de Junichiro Koizumi. O objectivo era convencer os empresários e trabalhadores japoneses a deixar de usar gravata (principalmente convencer os primeiros a deixar que os segundos se convencessem), para reduzir os gastos em ar condicionado e poupar uns milhões de ienes em electricidade, ao mesmo tempo que se reduzia a contribuição do país para o aquecimento global. A campanha foi considerada um êxito, como uma outra que Koike lançou no ano passado para levar os japoneses a regressar ao tradicional furoshiki e abandonar os sacos de plástico. O que é o furoshiki? Um tecido rectangular ou quadrado que pode ser usado, graças a um sábio uso de dobragens e nós, para transportar qualquer tipo de objecto, desde as compras de mercearia aos livros da escola - aquilo a que chamaríamos em português uma trouxa, mas uma trouxa elegante e sofisticada. O tecido é sempre lavável e reutilizável, mas Koike para mais lançou um furoshiki de tecido sintético reciclado.
Depois de ser ministra do Ambiente e antes de ser ministra da Defesa, Koike foi conselheira de segurança de Shinzo Abe, o que lhe valeu a alcunha de "Condi Rice do Japão".
Yuriko Koike é uma conservadora, que defende uma posição de grande dureza perante a Coreia do Norte e a China, que apoiou a contragosto a invasão do Iraque mas que se sente próxima dos neocons americanos.
Fala árabe fluentemente (um dos livros que publicou chama-se Árabe em Três Dias!), estudou Sociologia na Universidade do Cairo (o pai negociava em petróleo no Médio Oriente e Yuriko Koike ainda alimenta muitas relações pessoais na região) e começou a sua carreira como tradutora-intérprete (de árabe), tornando-se depois pivot da televisão, durante mais de dez anos. As suas elogiadas competências de comunicação devem algo a esta experiência.
Yuriko Koike, hoje com 54 anos, saltou de partido durante anos até aterrar em 2002 no Partido Liberal Democrático (PLD) com fama de ter uma ambição política igual apenas à sua determinação e uma sólida reputação de especialista no Médio Oriente. A razão da adesão ao PLD que sempre tinha criticado? Disse ter chegado à conclusão de que este era o único sítio de onde seria possível reformar o país.
Se houver uma primeira-ministra no Japão (cenário duvidoso, visto o machismo da sociedade japonesa), alguns analistas pensam que será ela.
A elegância, o ar delicado e a voz suave de Yuriko Koike dão-lhe uma aparência frágil que os críticos aconselham a ignorar. Koike sabe ser extremamente persuasiva e debaixo da pomba está um falcão. Próxima dos sectores mais conservadores, Yuriko Koike pertence ao grupo dos políticos que minimizam o massacre de Nanking, não gosta de abordar o tema das escravas sexuais usadas pelo exército japonês na II Guerra Mundial, tem sido acusada de querer branquear os episódios mais negros da história japonesa (e de defender alterações nos manuais de História nesse sentido) e acha que uma das funções das escolas é inculcar patriotismo nos jovens.
Profundamente desconfiada das intenções de Pequim,
Koike irá ser uma campeã incansável do crescimento das Forças Armadas japonesas, do reforço da aliança de segurança com os Estados Unidos (e também com a Índia e Austrália) e do desenvolvimento do sistema de defesa antimíssil que está a ser estudado pelos dois países há uma dezena de anos. Tem sido porém - como é tradicional no Japão - uma defensora do desarmamento nuclear, que considera que o Japão deve liderar no mundo.
domingo, junho 24, 2007
Sunita Williams, recordista mundial de maratona espacial
Texto publicado no jornal Público a 24 de Junho de 2007
Em Cena 10/2007
"É o princípio dos "últimos". Sabem aquela sensação de fim de férias, quando de repente nos damos conta de que aquela vai ser a nossa última noite naquele lugar? Apercebemo-nos de que aquele é o último mergulho das férias, a última caminhada, o último crepe, o último verdadeiro café italiano, o último nascer do sol ou pôr do Sol que vemos daquele sítio..."
Esta é a nostálgica última entrada (outro "último") da astronauta Sunita Williams que aparece no diário de bordo da missão onde participou na Estação Espacial Internacional (ISS).
Americana, 41 anos, casada e sem filhos mas dona de um cão (hoje famoso nos EUA) chamado Gorby, Sunita Williams é comandante da Marinha dos EUA. É especialista de mergulho (já viveu durante nove dias numa estação submarina), é piloto de helicópteros de combate (quando se candidatou queria pilotar caças por causa do Top Gun), é astronauta desde Junho de 1998 e, desde esta missão, é detentora do recorde feminino de permanência no espaço, com 195 dias passados na ISS (e na ida e volta), contados de 9 de Dezembro até 22 de Junho último. Williams também tem o recorde feminino de passeios no espaço - em número de passeios e em horas de permanência total no espaço.
Durante a sua estadia na ISS, Williams fez o que fazem os astronautas: experiências científicas com materiais e com plantas, testes e manutenção de equipamento (desde computadores a canalizações), trabalho de construção da estação espacial, exercício físico, exames físicos e experiências médicas em si própria, registos de mil e uma coisas, manteve um detalhado diário de bordo, fez as limpezas quotidianas, escreveu mails, fez videoconferências com a família e com alunos de escolas, praticou o seu russo, dormiu e, pelo caminho, ensinou um dos cosmonautas russos seus companheiros a comer manteiga de amendoim com geleia. A viagem teve a sua quota-parte de problemas informáticos (o que pode ser bastante grave quando todos os sistemas de apoio à vida passam por estas máquinas) mas nada de excessivamente dramático, apesar de uma entrada no seu diário, inquietante para um terráqueo, referir o facto de a água estar a escassear e como seria bom quando chegasse água fresca a bordo da nave Progresso.
Williams (ou Suni, como lhe chamam os camaradas) gosta de correr. A corrida aparece em primeiro lugar nos "interesses recreativos" (sic) listados no currículo que aparece no site da NASA e, enquanto esteve no espaço, Suni correu. Todos os astronautas têm de correr e fazer muitos outros exercícios para reduzir a perda de massa muscular e de massa óssea que ocorre em situações de microgravidade, mas Sunita faz mais do que aquilo a que é obrigada. Suni corre e corre e corre.
Durante esta missão, Suni bateu outro recorde que deverá ficar na sua mão durante algum tempo e que vai marcar esta viagem na história: tornou-se na única astronauta a correr uma maratona no espaço. Uma verdadeira maratona, corrida a 16 de Abril passado, ao mesmo tempo que na Terra 24 mil corredores faziam a maratona de Boston, e que Sunita completou em 4 horas, 23 minutos e dez segundos. Sunita estava aliás oficialmente inscrita na maratona de Boston e recebeu, por e-mail, a camisola número 14 mil. Uma das curiosidades é que, durante a maratona de 42 quilómetros, Sunita, na sua passadeira a bordo da estação espacial, deu duas voltas à Terra e a cada passada deslocava-se quatro quilómetros, numa recriação tecnológica das botas de sete léguas. Atada à passadeira por cordas de bungee jumping, Sunita foi seguindo num ecrã de televisão colocado à sua frente os seus companheiros na maratona terrestre, que corriam 338 quilómetros mais abaixo. "Encorajar os miúdos a começar a fazer do exercício físico parte da sua vida" foi a razão dada por Sunita para a maratona, que exigiu à astronauta, durante um ano e meio, seguir um programa de preparação física muito mais exigente do que aquele que é proposto aos restantes astronautas.
Agora que pôs os pés na Terra Sunita tem outro sonho: ser a primeira mulher a fazer uma viagem à Lua Cheia que viu da janela da estação espacial.
domingo, junho 17, 2007
Faezeh Rafsanjani, ao lado das mulheres do Islão
Texto publicado no jornal Público a 17 de Junho de 2007
Em Cena 9/2007
Vista através dos nossos olhos ocidentais e liberais, pode não se conseguir adivinhar que Faezeh Hashemi Rafsanjani é uma feminista e uma reformista. É verdade que advogou durante anos o abandono do véu islâmico por parte das mulheres, mas nas suas aparições públicas e nas raras fotografias a sua cabeça está envolta num chador negro que apenas deixa a face visível e o corpo aparece enrolado numa veste negra que parece uma tenda, através do qual não se consegue adivinhar o mais ténue contorno do seu corpo. É isso que mandam os ditames religiosos islâmicos seguidos pelos fundamentalistas.
O seu apelido não é uma coincidência: Faezeh Hashemi é filha de Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, presidente do Irão de 1989 a 1997, que foi um dos braços direitos do ayatollah Khomeini e que é considerado um "conservador pragmático", defensor da liberalização da economia, da aproximação à Europa e rival do actual presidente Mahmoud Ahmadinejad, para quem perdeu as eleições em 2005.
Faezeh Hashemi Rafsanjani nasceu dentro da política e sempre ocupou cargos públicos, desde um lugar no Parlamento à vice-presidência do Comité Olímpico Iraniano e à presidência da Federação de Desporto Feminino dos Países Islâmicos, uma organização criada em 1991 para promover uma prática do desporto compatível com os preceitos islâmicos - que exigem que as mulheres mostrem o mínimo de pele possível, por exemplo. Mas, entretanto, ainda durante a presidência do seu pai, Faezeh fundou também um jornal diário feminino Zan (Mulher) - que foi proibido em Abril de 1999 devido às suas posições críticas dos conservadores. No último número do jornal, no que foi considerado um gesto de atrevida provocação, Faezeh publicou uma notícia sobre Farah Diba, a viúva do antigo xá do Irão, Reza Pahlevi. Mas Faezeh é ainda a autora de gestos tão revolucionários no Irão do século XXI como... andar de bicicleta e defender o direito das outras mulheres fazerem o mesmo.
Nos últimos anos, tem sido no domínio do desporto que Faezeh tem tido a actividade mais visível, não só promovendo a prática entre as suas compatriotas e defendendo a participação de mulheres em competições internacionais, mas também negociando as necessárias adaptações entre aquilo que têm sido até agora os equipamentos admitidos em provas desportivas oficiais e os preceitos islâmicos de indumentária feminina. Foi ela que conseguiu que o Comité Olímpico Internacional admitisse nos Jogos as mulheres vestidas dos pés à cabeça que agora aparecem um pouco por todo o lado. O resultado são fatos de banho de várias peças que cobrem todo o corpo, com touca até aos ombros, camisola de mangas compridas e calças até aos tornozelos, por exemplo. Uma das suas últimas (e ambíguas) vitórias foi a inspiração de uma "bicicleta islâmica", que já está a ser produzida no Irão, e que possui uma cabina que cobre metade do corpo da ciclista, o que permite que as mulheres pedalem sem desencadear pensamentos lascivos nos homens que as vejam (uma consequência que seria da exclusiva responsabilidade das mulheres e que demonstraria que o diabo as tinha possuído, aconselhando castigos corporais violentos).
Faezeh, de 44 anos, mãe de dois filhos, é vista no Irão como uma reformista progressista, profundamente admirada pelas mulheres e em particular pelas mais jovens, de cujos direitos é uma determinada defensora. Tem defendido publicamente e com vivacidade, para além do direito das mulheres a praticar desporto, o direito das mulheres concorrerem a lugares públicos e mesmo à presidência, é objecto de um indefectível ódio por parte dos fundamentalistas e as suas campanhas têm-se de facto traduzido pela conquista de algumas liberdades para as mulheres. Tem demonstrado, para além disso, uma coragem considerável, pois as ameaças, pressões e processos judiciais não são raros num país onde muitos pensam que o lugar da mulher é literalmente em casa, escondida dos olhares do mundo, calada e submissa.
A luta de Faezeh Hashemi não é de forma alguma contra o Islão, mas é por uma leitura do Islão que permita um maior grau de liberdade às mulheres. Uma das suas frases a propósito da participação das mulheres na actividade política era "Não é o Islão que proíbe as mulheres de concorrer a cargos públicos, mas a interpretação dos seus ensinamentos pelos clérigos". Nada de mais normal para uma tradição de exegese como a que existe noutras religiões, mas algo que muitos islamistas conservadores ou fundamentalistas consideraram simplesmente herético.
Faezeh Hashemi tem tentado desenvolver a sua actividade política dentro das regras impostas pela religião, tal como é vivida no Irão pelo regime fundamentalista de Ahmadinejad, e faz o que pode com o que tem. Os seus objectivos são justos e a sua coragem é admirável, mas é tragicamente irónico que os seus esforços possam dar origem a uma bicicleta que tape as pernas. E isso é trágico porque ela, como muitas outras mulheres do Irão, sabe-o muito bem.
domingo, junho 03, 2007
Kristin Halvorsen, a esquerdista que controla o capital
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Junho de 2007
Em Cena 8/2007
Se acrescentarmos que, na sua qualidade de ministra das Finanças, Halvorsen controla o Fundo de Pensões do Governo norueguês, os nossos interlocutores bocejam discretamente. O interesse só aumenta quando dizemos que o Fundo de Pensões se chamava até ao ano passado Fundo do Petróleo e se recorda que a Noruega é o terceiro exportador mundial de petróleo, depois da Arábia Saudita e da Rússia. Depois, basta dizer que o fundo recolheu nos últimos dez anos a quantia de 300.000 milhões de dólares e que é actualmente o maior fundo de investimento europeu e um dos maiores do mundo. O que se chama um "heavy player".
Mas o que tem atraído a atenção dos especialistas no Government Pension Fund norueguês é o facto de o fundo ter aprovado em 2004 um exigente código de ética que Halvorsen tem estado a pôr em prática de forma rigorosa. Em que consiste o código de ética? O fundo não investe em empresas responsáveis por violações dos direitos humanos, cuja actividade prejudique gravemente o ambiente ou que pactuem com a corrupção.
É o chamado "investimento socialmente responsável", de que todos falam, mas que quase ninguém pratica. De facto, os códigos de ética para o investimento não faltam - apenas tem faltado a ética no investimento.
Outra das novidades da direcção imposta por Halverson é a publicidade das opções do fundo, que já decidiu não investir em empresas como a Boeing, a Lockheed Martin, a General Dynamics, a Honeywell, a Raytheon ou a Northrop - grandes empresas do sector militar responsáveis pelo fabrico de armas nucleares e outras armas consideradas desumanas.
A lista das empresas excluídas está publicada na Internet, assim como as razões da exclusão (http://www.norges-bank.no/nbim/pension_fund).
A última estrela da lista negra foi nada menos do que a cadeia de retalho Wal-Mart, acusada de beneficiar do trabalho infantil de fornecedores no Bangladesh e China. O fundo simplesmente despejou no mercado 400 milhões de acções da empresa, ao mesmo tempo que publicava o comunicado explicativo da acção. A Wal-Mart esperneou e meteu a Administração americana na discussão para fazer pressão. Halvorsen explicou que essas decisões pertenciam ao Conselho de Ética e à direcção do fundo mas foi avisando que os critérios éticos são para seguir e mesmo... para reforçar. Em discussão está neste momento a suspensão do investimento em empresas que contribuem de forma irresponsável para o aquecimento global. A dificuldade consiste em definir que linhas de acção devem ser estabelecidas, quando a riqueza do fundo provém do petróleo.
Investimento ambiental
Há dificuldades com estas orientações: uma delas é o facto de o escrutínio prejudicar tanto mais as empresas quanto mais transparentes elas forem sobre a sua actividade - o que quer dizer que as empresas americanas são penalizadas e que pode haver enviesamento na aplicação dos critérios. Mas Halvorsen responde que o fundo estará sempre disposto a rever as suas posições se a empresa condenada der provas de responsabilidade social. Isso já aconteceu no passado, com a empresa de exploração petrolífera Kerr McGee, expulsa e readmitida no fundo.
Actualmente o Fundo de Pensões faz 50 por cento dos seus investimentos na Europa, 35 por cento nas Américas e 15 por cento na Ásia e Oceânia.
Kristin Halvorsen, 46 anos, casada, dois filhos, está no Governo em representação do pequeno Partido da Esquerda Socialista, em coligação com o Labour e o Partido do Centro. É a primeira vez que o partido está no poder e é a primeira vez que uma mulher ocupa a pasta das Finanças.
As ideias políticas de Halvorsen tornam a sua posição de "supercapitalista global" particularmente paradoxal aos olhos dos americanos - esta mulher é não só "socialista", como "da esquerda socialista". A ministra, porém, não parece sentir o paradoxo de forma mais viva do que a generalidade dos noruegueses, a quem o enriquecimento súbito suscita sentimentos contraditórios e para quem o conceito de investimento socialmente responsável é algo mais vivo que no resto do mundo.
Poder-se-ia pensar (e havia quem receasse) que a autolimitação no espectro dos investimentos prejudicasse o desempenho do fundo, mas em 2006 o seu rendimento foi de 7,9 por cento, superando as expectativas. A situação económica da Noruega, entretanto, é excelente, com um crescimento de 2,5 por cento, uma inflação de 0,75 por cento e uma taxa de desemprego de 2,5 por cento, a mais baixa dos últimos vinte anos.
Uma tendência crescente
Halvorsen dirige o seu partido desde há dez anos, começou a sua vida profissional como secretária num gabinete de advogados e estudou sociologia da educação e criminologia sem ter obtido qualquer diploma. A sua actividade política não tem sido escassa em detractores: as suas hesitações em aumentar a exploração de petróleo no mar de Barents por razões ambientais e de protecção das pescas valeram-lhe muitas críticas e o mesmo acontece com a actual filosofia de investir apenas nas empresas que não desprezem os direitos humanos, que não promovam a guerra e a exclusão social. Mas uma coisa é certa: a sua exigência neste domínio faz parte de uma tendência crescente, tem uma base social de sustentação que é planetária e que vai muito para além de qualquer fronteira partidária e pode contribuir de forma positiva para mudar a forma como se faz negócios no mundo.
domingo, maio 20, 2007
Carla del Ponte, o braço armado das vítimas
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2007
Em Cena 7/2007
A última vez que a sua voz chegou às páginas dos jornais, para protestar com veemência, como faz tantas vezes, foi na semana passada, a propósito da tomada de posse da Sérvia como presidente do Conselho de Europa, a organização internacional com sede em Estrasburgo que tem como principal preocupação a promoção da democracia e a defesa dos direitos humanos na Europa.
O Conselho da Europa (não confundir com o Conselho da União Europeia) tem 46 países membros e cada um deles ocupa rotativamente a presidência durante um período de seis meses. A Sérvia foi aceite em 2003 e comprometeu-se perante os seus parceiros a respeitar os princípios impostos pelo Direito Internacional no domínio dos direitos humanos e, nomeadamente, a entregar à justiça internacional os acusados de crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio que se escondem no seu território depois da guerra dos últimos anos. Só que nem o fez, nem deu mostras de o querer fazer, nem os restantes 45 países pareceram perturbados com o facto e nem um único sugeriu, pelo menos, que talvez não fosse muito prestigiante para a organização que instituiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ter na sua liderança um país que o Tribunal Penal Internacional declarou, em Fevereiro, em violação da Convenção Internacional contra o Genocídio. Quem não ficou calada foi Carla del Ponte, procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, que enviou uma carta aberta aos países do Conselho da Europa onde declarava a presidência sérvia como um facto "extremamente embaraçoso" para a organização devido ao currículo do país.
As principais razões de Carla del Ponte contra a Sérvia chamam-se Ratko Mladic e Radovan Karadzic. Respectivamente ex-chefe militar e ex-presidente dos sérvios da Bósnia - acusados de crimes contra a humanidade, genocídio dos muçulmanos bósnios e atrocidades diversas e que, segundo Carla del Ponte, ainda se encontram na Sérvia, com a complacência, se não mesmo a protecção activa, dos actuais dirigentes sérvios. Mladic e Karadzic não são os únicos procurados pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) mas são os nomes mais visíveis da sua lista. Esta lista é aliás o que dá o título a um documentário que será apresentado no mês que vem em Nova Iorque, no âmbito do Festival Internacional de Cinema da organização Human Rights Watch: A Lista de Carla (La liste de Carla).
O documentário, da autoria do realizador suíço Marcel Schüpbach, centra-se na figura da procuradora e segue a sua sucessão de reuniões de trabalho e deslocações em comitiva com escolta, entre a Haia, Belgrado e Washington, sempre com a lista de procurados em pano de fundo. As críticas cinematográficas não foram entusiásticas mas o documentário reforça a imagem de tenacidade da jurista, quando faltam quatro meses para acabar o seu mandato no TPIJ, iniciado há oito anos. De facto, se se pode dizer algo de consensual sobre Carla del Ponte é que a procuradora é persistente. Muito persistente. Uma qualidade que lhe tem valido epítetos como "Bulldozer". Ou "Bulldog". Ou "a nova Gestapo" (imprensa sérvia). Houve quem lhe chamasse "míssil desgovernado" (um banqueiro suíço, na sequência do ataque da magistrada ao segredo bancário do seu país, que acusou de proteger o crime organizado). Na época onde os seus trajectos se cruzavam com mais frequência, a Máfia siciliana chamava-lhe simplesmente "La Puttana". Os inimigos que coleccionou (e que ostenta como condecorações) e o seu compromisso com a justiça, a par de uma coragem de que dá exemplos quotidianos, seriam suficientes para criar à sua volta uma aura com o seu quê de lendário. Carla - o nome do documentário autoriza-nos a tratá-la assim - é uma filha espiritual do famoso juiz italiano anti-Máfia Giovanni Falcone, assassinado num atentado em 1992, com quem trabalhou em casos de lavagem de dinheiro. Falcone dedicava-se ao combate contra a Máfia e Carla del Ponte era então procuradora da federação helvética - é suíça e não italiana, ainda que não a incomode a confusão, como boa filha de Lugano.
Carla del Ponte, hoje com 60 anos, começou a sua carreira como advogada, mas ao fim de seis anos passou para a procuradoria, tendo sido nomeada procuradora-geral da Confederação Helvética em 1994. A nomeação pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para o cargo de procuradora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, em 1999, veio apenas depois de uma extensa experiência de investigação do crime organizado internacional, marcado entre muitos outros incidentes por um atentado à bomba na sua casa de Palermo, em 1989 (a bomba foi descoberta nas fundações da casa e não chegou a explodir), e um ataque ao helicóptero onde viajava, em 1996, durante uma investigação do tráfico de cocaína na Colômbia. Depois disso o seu carro foi ainda alvejado em Belgrado e é tudo no domínio dos atentados contra a sua vida. Se excluirmos as ameaças, que continuam mas já entraram no quotidiano. A presença dos guarda-costas, aliás, como o documentário mostra, é constante. Se Carla é tenaz como um cão de fila, e se a sua carreira no Tribunal Penal Internacional lhe granjeou a admiração de muitos (e a inimizade de outros), é evidente a sua insatisfação. Por causa de Mladic e Karadzic, evidentemente, mas também do Presidente jugoslavo Slobodan Milosevic, que conseguiu sentar no banco dos réus da Haia mas que um ataque cardíaco mortal roubou à condenação. Carla del Ponte fala da frustração das vítimas, de quem se sente a voz e o braço armado. As vítimas ocupam o lugar central no espírito desta jurista, que declarava, numa entrevista ao Libération, que são as entrevistas com elas que "dão a medida do sofrimento sentido e a emoção que alimenta o inquérito".
Apesar de tudo, Milosevic é um marco na história da justiça: foi o primeiro chefe de Estado da História julgado pela justiça internacional por crimes contra a Humanidade e Carla del Ponte estava na cadeira da acusação. Em Setembro próximo, Carla del Ponte abandonará o tribunal (já disse que não aceitaria nova recondução) para voltar à vida civil, mas é difícil imaginar o que fará depois esta fumadora empedernida, que os jornais suíços dizem ser a suíça mais conhecida do mundo depois de Heidi e para quem a caça de criminosos se tornou uma segunda natureza.
domingo, maio 06, 2007
Todos querem ser como Oprah
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Maio de 2007
Em Cena 6/2007
Se lhe pedissem para escolher uma figura como modelo de vida, como exemplo para os seus filhos, como inspiração para as pessoas do mundo em geral, quem escolheria? Jesus, Buda ou Ghandi seriam provavelmente escolhas populares, ou talvez Einstein ou Leonardo ou Sócrates (sem a cicuta).
Se a escolha fosse restringida a pessoas vivas seria provavelmente menos inspiradora e mais arriscada, mas é relativamente seguro apostar que o opositor do apartheid e ex--Presidente sul-africano Nelson Mandela apareceria no topo da lista. Um dos sinais disso é que Mandela é uma das escolhas mais frequentes quando se pergunta às candidatas dos concursos de misses qual a pessoa que mais admiram, a par dos fundadores das grandes religiões e da "minha mãe". Outro dos sinais é que o mesmo Mandela é também apontado pelo exemplo inspirador pelos grandes líderes.
E quem proporia o próprio Mandela se lhe colocássemos o mesmo exercício? Quem escolheria o líder sul-africano se pudesse escolher um role model de entre qualquer pessoa viva?... Não é preciso fazer conjecturas: a vencedora é... Oprah Winfrey!
A famosíssima criadora e apresentadora de The Oprah Winfrey Show é uma das personalidades que a revista Time acaba de escolher como as Cem Pessoas Mais Influentes do Mundo. Por vezes o nome do trabalho da Time é traduzido como "os cem mais poderosos", mas a expressão usada pela publicação é de facto "influentes" - o que explica, por exemplo, por que razão George W. Bush não faz parte da lista. A Time escolhe (com o concurso de dezenas de especialistas) pessoas que são tomadas como modelos no mundo, cuja vida e obra não só mudou o mundo como é inspiradora. Os escolhidos da Time são apresentados na revista por um patrocinador e Mandela é o de Oprah. Diga-se que seria absolutamente impossível não incluir na lista Oprah, que é considerada por muitos como "a mulher mais influente do mundo". As listas dos anos anteriores já têm contado com a sua presença, assim como a das Cem Pessoas Mais Influentes do Século XX!
Oprah tem um talk show que é o programa televisivo mais visto no planeta. É a personalidade negra mais rica do mundo, com uma fortuna avaliada em 1500 milhões de dólares (pode haver um ou outro ditador africano cuja fortuna não tenha sido considerada), e é uma das maiores filantropas do mundo. Um livro elogiado na Oprah salta para a lista de best-sellers em minutos (as pessoas lançam-se para a Internet para o comprar), uma dieta (tema frequente) apresentada no programa torna--se um êxito de um dia para o outro, uma ONG que apareça no programa recebe um pico de doações nas semanas seguintes, o cachet de um actor que tenha aparecido no plateau de Oprah dá um salto por esse simples facto. Oprah, hoje com 53 anos, é um ídolo das mulheres (que enchem o seu set) mas também dos homens. Quase todos adoram Oprah. Oprah é atenta, sensível, compreensiva, sensata, empática. Quando convida alguém para o programa faz as perguntas simples que qualquer pessoa comum faria para obter as respostas que toda a gente quer ouvir. Não se trata verdadeiramente de entrevistas, Oprah não persegue os convidados quando eles evitam as questões, não lhes cai em cima quando se contradizem, é uma anfitriã e não uma jornalista, mas as suas conversas são francas e directas e frequentemente envolventes ou mesmo emotivas. Oprah não é lamechas (é mesmo um prodígio de controlo), mas muitos dos temas abordados são lacrimogéneos e ela tem por vezes de limpar o canto do olho. Os seus convidados, esses, pode acontecer que chorem copiosamente, ainda que Oprah consiga gerir essas situações com um tacto de mestre e trate sempre os seus convidados com grande dignidade. Os temas do programa são as histórias de "interesse humano", o entretenimento e as boas causas: as mulheres, a família, a saúde, as relações, o self help, o self betterment, as drogas, nunca a política ou a economia dura. Os verdadeiros temas são as pessoas, aquilo de que são capazes, a solidariedade. Oprah tenta ajudar as pessoas a fazer "the right thing" e mostra os que o tentam. E essa mensagem atravessa gerações, géneros, origens étnicas, classes sociais, grupos políticos. Oprah é politicamente correcta, é religiosa, tem um fraco por coisas espirituais e uma fascinação pela treta new age e o seu programa é criticado como "tablóide" por alguns críticos, mas se é tablóide é do melhor tablóide que há. As suas simpatias políticas inclinam--se para os democratas (apoia Barack Obama), mas o seu show é militantemente apartidário.
A sua história é inspiradora e conhecida em detalhe: nasceu pobre, filha natural de dois adolescentes, uma criada e um mineiro, teve um meio-irmão gay que morreu de sida, vive em união de facto há vinte anos, não tem filhos, pensou em adoptar, vive numa eterna luta para não engordar - dietas, exercício e ajudar as pessoas a aceitar o seu corpo são dois temas frequentes no show.
Mas talvez o que sensibiliza mais as pessoas a seu respeito é que Oprah "does the right thing herself". A sua filantropia é lendária - na linha da melhor tradição americana. O patrocínio de Mandela não é estranho a um desses gestos: a criação, no início deste ano, da Oprah Winfrey Leadership Academy for Girls, em Henley-on-Klip, na África do Sul, uma escola para raparigas oriundas de famílias pobres que Oprah quer que seja "a melhor escola do mundo" e de onde espera que saia a geração que vai mudar a face da África do Sul. Neste momento, a escola tem 152 alunas (escolhidas de entre 3500 candidatas), mas atingirá as 450 dentro de quatro anos. A escola tem instalações excelentes, com laboratórios, teatro, biblioteca, centro de saúde, instalações desportivas e até um instituto de beleza (nada é de mais para as "filhas de Oprah") e será seguida por uma outra escola para rapazes e raparigas. Mas não é tudo: uma fundação criada por si, a Oprah"s Angel Network, já abriu mais 60 escolas em 13 países.
Oprah é superpopular, é o encanto das donas de casa suburbanas, é o sonho americano dos pobres e isso é suficiente para ser olhada com condescendência na Europa - e mais ainda em Portugal. Será por isso que temos os talk shows que temos?
A reportagem "The Kingdom in the Closet", publicada no número deste mês, mostra como uma sociedade que segrega violentamente os sexos e que condena o sexo fora do casamento de forma violenta, cria incentivos à experimentação homossexual e oferece múltiplas oportunidades para a sua prática continuada.
Não há nada mais normal na Arábia Saudita que homens que procuram a companhia de homens e que se afastam de mulheres ou mulheres que procuram a companhia de outras mulheres e se afastam de homens. Para um saudita, não há nada de aparentemente mais virtuoso.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 1 de Maio 2007: http://em-revista.blogspot.pt/2007/05/o-reinado-no-armrio-ou-homossexualidade.html
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domingo, abril 22, 2007
Vanessa Redgrave, a mulher que tenta levantar a sua voz
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Abril de 2007
Em Cena 5/2007
Em Portugal, é apenas uma actriz. Apenas uma actriz é uma maneira de dizer: uma excelente e apreciada actriz. Uma actriz de cinema, com papéis memoráveis. Julia, ao lado de Jane Fonda; Howard"s End, ao lado de Anthony Hopkins. Para não falar do Blow up de Antonioni (1966) ao pé (pertinho) de David Hemmings e de muitos outros papéis onde é uma comum actriz secundária mas que nos parecem de "estrela convidada", tal é o aroma de sofisticação suplementar, o toque de classe que dá a todas as cenas com aquele seu elegante metro e oitenta, com o seu sorriso que vai do sedutor ao triste e do simpático ao hierático sem mexer um músculo, regulando apenas o brilho dos enormes olhos azuis. E há milhões que a conhecem da TV (Nip Tuck, uma referência recente). E há a sua actividade no teatro, menos próxima, mas que sempre foi merecedora dos elogios mais ditirâmbicos e sentidos.
Neste momento, Vanessa Redgrave está em Nova Iorque, no palco no Booth Theater, dando corpo à peça de Joan Didion The Year of Magical Thinking, baseada no livro autobiográfico do mesmo nome. A peça é uma memória de luto e dor pelas mortes do marido e da filha de Didion, ocorridas com vinte meses de intervalo. Redgrave, que tem 70 anos, está a receber críticas positivas (o que é habitual) mas não entusiásticas (o que é menos habitual), que não põem em causa a excelência do seu trabalho mas a sensatez do casting (ver Ípsilon, 13 de Abril de 2007). "Redgrave é uma artista que trabalha na escala heróica. Ms. Didion é uma miniaturista", escreve um crítico do New York Times.
A voz de Didion pode não se encaixar na envergadura majestática da actriz e a escala heróica de Redgrave pode não se adaptar à peça, mas essa escala heróica é uma dimensão de que Redgrave não consegue descolar-
-se, mesmo quando o pretende. Na tela pode parecer tímida, frágil, vencida, mas há um brilho de rebeldia que está sempre no canto do olho e um levíssimo sorriso de vitória não isento de malícia à espreita nos lábios.
O que é admirável em Vanessa Redgrave é isso, esse lado indomável que faz dela, mesmo com os seus 70 anos, uma cidadã capaz de defender causas mal vistas, incómodas, esquecidas, desprezadas. Correndo o risco de cometer erros.
Durante anos, o seu "trotskismo" foi visto como uma faceta destinada apenas a dar um colorido hippie e marginal à sua burguesa condição de filha privilegiada de pais artistas famosos (os actores Sir Michael Redgrave e Rachel Kempson, Lady Redgrave), mas a actriz foi provando que havia mais na sua motivação.
O seu discurso de aceitação do Óscar, em 1978, por Julia, terminou com uma pateada de parte do público, só porque decidiu fazer uma intervenção que era não só política mas politicamente incorrecta, do tipo das que desagradam a gregos e a troianos. As suas últimas palavras foram: "Comprometo--me perante vós a continuar a lutar contra o anti-semitismo e o fascismo. Obrigado". Mas antes tinha criticado os "rufias sionistas" - numa referência aos apoiantes de Israel que sempre a detestaram pelo seu apoio à causa palestiniana e que frequentemente têm posto em causa o seu direito a interpretar determinados papéis - como o da sobrevivente de um campo de concentração nazi, num filme para a televisão com argumento de Arthur Miller, em 1980.
As causas em que Redgrave se envolveu vão desde a luta contra a guerra do Vietname nos anos 60, até ao desarmamento nuclear, passando pelos direitos dos trabalhadores dos países do Terceiro Mundo, à liberdade na União Soviética, à independência da Irlanda do Norte, à liberdade de emigração dos judeus soviéticos, aos direitos das crianças e à luta contra o trabalho infantil, à ajuda humanitária aos bósnios muçulmanos, à ajuda às vítimas de guerra e aos refugiados, à independência da Tchechénia, à denúncia dos atropelos aos direitos humanos na Rússia, à crítica à invasão do Iraque, aos atropelas às liberdades cívicas nos EUA e na Grã-Bretanha com o pretexto da Guerra ao Terror de George W. Bush... a lista continua a crescer.
Durante décadas, Redgrave foi a actriz trotskista - concorreu duas vezes ao Parlamento pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores (Workers" Revolutionary Party ou WRP) - que distribuía propaganda na rua, vendia o jornal do partido e debitava a cassete do partido. À boa maneira dos movimentos trotskistas, o partido fragmentar-se-ia várias vezes, entre feias acusações mútuas. Aparentemente, o pequeno partido seria financiado por pouco recomendáveis regimes árabes, com dirigentes como Saddam Hussein e Muammar Khadafi e ter-lhes-á fornecido informações sobre oponentes activos na Grã-Bretanha - uma actividade, diga-se, a que Redgrave nunca foi pessoalmente associada.
Redgrave e o seu irmão Corin (também um conhecido actor), camarada de militância, abandonaram depois o WRP. Vanessa acabaria por criar a sua própria organização, o Partido da Paz e do Progresso, dedicado à denúncia das violações dos direitos humanos.
No percurso político de Vanessa Redgrave há imensos gestos criticáveis, ridículos, imprudentes, disparatados, profundamente irrazoáveis. Mas nos gestos e nas palavras desta mulher - que, aos 69 anos de idade, foi considerada, para sua surpresa, uma das 100 pessoas mais bonitas do mundo pela revista People - não há cálculo nem falta de generosidade.
"Ao longo da minha vida fui-me apercebendo de que as pessoas percebem o que eu tentei fazer, por muito desajeitada que eu tenha sido", disse em 2005 a Larry King, numa entrevista à CNN. "Acho que as pessoas me compreendem e percebem por que é que eu tento fazer o que tento fazer. Sinto-me muito inepta, mas sinto que tenho o dever de tentar. Penso que qualquer cidadão percebe que é preciso levantarmos a voz e fazer o que for possível para denunciar aquilo que está mal".
domingo, abril 08, 2007
Hirsi Ali, a voz das mulheres caladas do Islão
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Abril de 2007
Em Cena 4/2007
Quando foi exibida na Holanda a curta-metragem Submission, do realizador Theo van Gogh e da então deputada do Parlamento holandês de ascendência somali Ayaan Hirsi Ali, ambos os autores se tornaram objecto do ódio dos fundamentalistas islâmicos e de múltiplas ameaças de morte.
Theo van Gogh pagou a ousadia com a vida: numa manhã de Novembro de 2004, um fundamentalista islâmico enfiou-lhe oito balas no corpo, abriu-lhe a garganta de lado a lado, cravou-lhe 28 punhaladas e deixou duas facas espetadas no seu peito. Presa por uma das facas estava uma mensagem de cinco folhas contendo diversas ameaças a outras pessoas, entre as quais Ayaan Hirsi Ali.
Para os holandeses, este assassinato (a quem alguns chamam o "11 de Setembro holandês") marcou um ponto de viragem na sua percepção do fenómeno do islamismo.
Hirsi Ali passou a estar sob constante protecção policial, sempre em locais desconhecidos, e teve de suportar os constantes discursos de ódio oriundos dos islamistas do seu país de adopção de então (hoje vive nos Estados Unidos). O imã Fawaz de Haia teve o requinte de amaldiçoar Hirsi Ali num sermão, onde pediu a Deus que a cegasse e a fulminasse com um cancro do cérebro e um cancro da língua.
Submission é um pequeno documentário sobre a escravidão a que são sujeitas muitas mulheres muçulmanas em nome da religião e Hirsi Ali fez da sua vida uma batalha pela liberdade das mulheres muçulmanas, pela liberdade de expressão, contra os casamentos forçados e contra a mutilação genital feminina - a que a própria Hirsi Ali foi submetida quando tinha cinco anos.
Há cerca de uma semana a Eritreia anunciou a entrada em vigor no país da proibição da mutilação genital feminina (também conhecida pela expressão, menos violenta, "circuncisão feminina"). O alcance da medida percebe-se melhor se se souber que neste paupérrimo país do Corno de África, de independência recente e que vive numa paz frágil, mais de 90 por cento das crianças do sexo feminino são submetidas à intervenção, com consequências trágicas em termos da sua saúde, mortalidade e felicidade.
É verdade que as periclitantes condições sociais, políticas e económicas da Eritreia não garantem nada sobre a sustentabilidade da medida - mas, a acreditar nas notícias que chegam do país, ela parece ter sido relativamente sustentada, tendo surgido depois de campanhas feitas nas aldeias onde se tentou elucidar as populações sobre as consequências da mutilação genital e que parecem ter sido bem recebidas.
É verdade que a Eritreia não é o único país onde a mutilação genital tem lugar, nem é o primeiro país a proibi-la, nem a proibição significa que a prática deixe de ter lugar. Mas a verdade é que a proibição (com a condenação que ela pressupõe, a dissuasão que gera, a educação que a deve acompanhar) é um passo essencial para pôr fim a esta tradição primitiva e desumana - que muitos religiosos muçulmanos criticam, mas que as leituras tradicionais da religião alimentam.
Sem querer retirar o mérito aos actores locais, como a União Nacional das Mulheres da Eritreia, que se mobilizou pela lei, a verdade é que sem a participação de Hirsi Ali a consciencialização mundial em torno do problema teria sido muito menor e estas vitórias locais muito mais árduas. Nos seus livros - e, em particular na sua recente autobiografia ("Mijn Vrijheid" - Minha Liberdade), publicada em Fevereiro nos Estados Unidos sob o título "Infidel", Hirsi Ali tem sido uma advogada ardente das suas causas e os seus relatos tocam de uma forma especial os que o ouvem. Depois de ler Hirsi Ali deixa de ser possível aceitar o argumento de que estas práticas são especificidades culturais relativamente às quais se deve adoptar alguma tolerância. Hirsi Ali explica bem aonde leva esta falsa tolerância que é afinal cobardia: à escravidão das mulheres, à paulatina destruição das liberdades cívicas e ao crescimento do fundamentalismo totalitário no seio das próprias sociedades liberais.
Hirsi Ali, hoje com 37 anos, já não vive na Holanda. A sua situação em termos de segurança e um problema com a sua aquisição de nacionalidade (Hirsi Ali deu informações falsas ao chegar à Holanda para obter o asilo político) fizeram-na preferir os Estados Unidos. Hoje é fellow do American Entreprise Institute, um think tank onde pontificam as vozes dos neoconservadores (ainda que não só).
Hirsi Ali já não é crente. Depois de algumas tentativas para compatibilizar o Islão com os direitos das mulheres, acabou por se afastar da religião. Hoje considera que o Islão, tal como é praticado e tal como é definido pelas escrituras, é hostil às mulheres e que é necessário um profundo esforço dos crentes para a sua reforma. A sua luta é, agora como antes, pela educação das mulheres muçulmanas - é por aí que começará a sua libertação e, através dela, a dos seus filhos.
domingo, março 25, 2007
História de uma princesa que faz hoje cinquenta anos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Março de 2007
Em Cena 3/2007
O seu nome parece ter querido dizer "sol poente" ou "continente" e surgiu algures na Grécia. Quanto a ela própria, ninguém sabe se foi a primeira a usar o nome ou se foi apenas a mais conhecida de uma longa linhagem. Há quem diga que uma filha do Oceano já se tinha chamado assim e essa pode ter sido a razão do baptismo.
Também ninguém sabe ao certo quando é que nasceu, mas conhece-se o local com alguma precisão. Terá sido na Fenícia, a região a que hoje chamamos Líbano e que ocupava também uma parte da actual Síria e Israel, uma terra de mercadores e marinheiros.
Sabe-se que era de uma beleza estonteante, de deixar a cabeça à roda aos homens e aos deuses, e que era filha do rei Agenor de Tiro.
Um dia, sem querer, conquistou o coração de um apaixonado que se prendeu dela mal a viu e que não olhou a meios para, por sua vez, a conquistar.
Ovídio, que viveu no início da nossa era, conta nas "Metamorfoses" que esse apaixonado se disfarçou de touro para poder aproximar-se dela sem suspeitas, um belo touro brancos com cornos de pérola que encantou as vacas com quem se cruzou num prado e que a seduziu a ela também. A princesa enfeitiçada enfeitou os cornos do touro com grinaldas até que ele, de surpresa, a arrebatou no seu dorso e se lançou mar adentro.
Europa (era esse o seu nome) olhou para trás com nostalgia, sabendo que deixava para sempre a Fenícia, mas agarrou-se com força ao touro para não cair.
O apaixonado era Zeus, que a levou para Creta. Não se sabe o grau de convencimento que terá sido necessário para satisfazer a paixão do deus e o rapto poderia sugerir imposição, mas a acreditar em Ovídio, que devia saber pois não escreveu só as "Metamorfoses", a sedução deve ter falado mais alto que a violência – como sugere a questão das grinaldas.
Europa conseguiu dar três filhos a Zeus sem nunca ter sido objecto da vingança de Hera, a ciumenta mulher do amante – o que mostra, mais do que o favorecimento dos deuses, que a sorte protege a beleza.
A única prova de que Europa não foi completamente imune às agruras do infortúnio são certos relatos mal-intencionados que chegaram aos nossos dias e a descrevem como uma vaca.
O tema de Europa arrebatada por Zeus transfigurado em touro é um clássico da arte clássica dos gregos aos romanos e de Tiziano a Rembrandt e, na maior parte dos exemplos, Europa acaricia mesmerizada o corno branco do touro branco. Pode ter sido amor.
Europa viria a casar-se mais tarde com o rei de Creta – depois de o seu romance com Zeus ter esfriado – e este adoptou os seus três filhos: Minos (que seria rei de Creta); Radamanto (rei das ilhas Cíclades) e Sarpedon (príncipe da Lícia). Foi a mulher de Minos quem deu à luz o Minotauro – fruto de uma tórrida relação extra-matrimonial com outro touro branco que não era Zeus – mas isso é outra história.
Também se sabe que o alfabeto foi levado para a Grécia (ou inventado) por um irmão de Europa, Cadmo, que fundou Tebas (a das sete portas) depois de a Pitonisa de Delfos lhe ter dito que não valia a pena continuar em busca da sua irmã, como o pai lhe tinha pedido – mas isso também é outra história.
Europa foi idolatrada em Creta, onde criaram um festival em sua honra. O território que Zeus atravessou com Europa às costas passou a ter o seu nome, pela mesma razão que Dumont d'Urville chamou Terra Adélia à costa da Antártida. Os gregos diziam "Europa" para indicar o continente que ficava para norte e para oeste e que não era a Ásia nem a Líbia (norte de África), que conheciam bem e de onde vinham as suas raízes. Europa era, se não o fim do mundo ou a Terra Incognita, pelo menos o estrangeiro.
Há uma Europa ainda mais distante. Quando Simon Marius descobriu as luas de Júpiter em 1610 (sim, Galileu descobriu-as ao mesmo tempo, mas foi Marius que as baptizou) chamou a todas nomes de namoradas de Júpiter/Zeus e a uma delas Europa.
A actividade de Europa não tem diminuído nos últimos tempos e o romance de juventude com Zeus não lhe prejudicou a reputação, antes lhe é creditado como uma paixão pessoalmente enriquecedora e uma experiência de proximidade do poder que teria sido difícil adquirir de outra forma.
Hoje celebra-se o seu aniversário. Todos sabem que já conta o tempo em milénios, mas há uns anos decidiu pôr o contador a zeros. Discretamente, ninguém mostrou reparar. Diz ter cinquenta anos e há festas em todas as cidades em sua honra. O fulgor passado já passou e os despeitados denunciam com crueldade cada suspeita de uma ruga, mas é evidente que entre os presentes que Europa conseguiu obter de Zeus nas cálidas noites cretenses está o da eterna juventude. A verdade é que ainda tem um grande encanto e é fácil perceber como o coração de Zeus se pode ter precipitado quando a viu a passear por entre as flores.
domingo, março 11, 2007
Os andróides sonham com pecados electrónicos?
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2007
Em Cena 2/2007
A demografia não engana. As taxas de crescimento variam imenso de ano para ano, de país para país, de sector para sector, mas o número de robôs no mundo cresce a uma taxa anual de dois dígitos, que poderá rondar os 20 por cento. O que significa que, de quatro em quatro anos, o seu número duplica.
Por enquanto, a esmagadora maioria são operários, robôs industriais, a maior parte na indústria automóvel, mas o panorama está a mudar. Os robôs mais jovens estão a diversificar-se, a dedicar-se a novas áreas, no sector fabril (manufactura, construção) mas também nos serviços (limpeza, medicina), e o maior crescimento está a ocorrer nos robôs de companhia e para entretenimento. Além de estarem a invadir a segurança e a defesa.
Sendo os números o que são, é inevitável que um dia os robôs sejam mais do que os humanos.
Dando mostras de previdência, o Governo sul-coreano decidiu na semana passada encarregar um grupo de cinco peritos de escrever o primeiro Código de Ética Robótica - que deverá definir direitos e deveres dos humanos e dos robôs e regras de relacionamento entre ambos.
A notícia foi recebida com sorrisos, mas a verdade é que temos vindo a alargar o âmbito da ética para cobrir as nossas relações e obrigações com os animais, com a Natureza, com os gâmetas, com o nosso património genético, com a História - e os robôs parecem um passo natural.
Este código será o primeiro documento de não-ficção onde será atribuído aos robôs algo semelhante a uma personalidade psicológica e jurídica. Trata-se de um novo tipo de "pessoas", que não sabemos que atitudes terão nem de que grau de autonomia e capacidades virão a gozar, mas cuja presença vai sem dúvida moldar o nosso comportamento, talvez de forma mais profunda do que a TV ou o computador.
Não se pode falar do tema sem evocar as famosas três Leis da Robótica do escritor Isaac Asimov, que definiam que um robô não pode ferir um humano, deve obedecer a ordens de humanos e deve tentar proteger-se dos perigos. Estes princípios deverão constar do código (neste caso, vertidos no software) mas a Coreia do Sul pretende ir além deles. Nem se trata apenas de codificar a defesa dos robôs do ponto de vista patrimonial (como objectos), mas também de discutir a defesa dos seus eventuais direitos, algo que deixará de ser disparatado se os robôs um dia tiverem sentimentos - um tema caro à ficção científica.
Nem todas as regras versadas no novo código visam proteger o robô. Pretende-se também prevenir um excessivo investimento emocional dos humanos nos robôs (que podem ser usados como parceiros de jogos ou brinquedos sexuais, para não dizer companheiros ou escravos sexuais), o que poderia ter um impacto sensível nas relações humanas. Para além disto, deverá também ser prevenido o uso de robôs para actividades ilícitas e a protecção de dados colhidos pelo robô (chamar-se-á sigilo dono-robô?).
Para além das questões triviais, que já se colocam em relação aos computadores como repositórios de informação pessoal, há algo de novo que vai acontecer: os robôs (ou andróides) são cada vez mais inteligentes, imitam cada vez mais os humanos, e será provavelmente impossível a partir de certa altura não os investir de alguma identidade e não projectar neles afeição (já o fazemos com bonecas ou animais de peluche). E a nossa relação com eles terá certamente um impacto crescente nas nossas restantes relações e atitudes - tal como aconteceu com a TV ou as consolas de jogos sem que para isso fosse necessário reconhecer-lhes inteligência ou consciência.
O crescimento da população de robôs poderá dar-nos ainda uma perspectiva diferente de qualidades que nos habituámos a considerar humanas (persistência, paciência, disciplina, obediência, cortesia) mas que os robôs poderão exibir em extremo. Que impacto terá isso na forma como as valoramos nos humanos?
Uma das razões por que é conveniente definir regras de relacionamento por parte dos humanos é porque os robôs são não só cada vez mais inteligentes como aprendem cada vez mais com a experiência - como nós - o que significa que eles podem tornar-se espelhos das nossas reacções. E gestos desadequados por parte dos humanos podem dar origem a perturbações da aprendizagem, gerando robôs inadaptados.
Um pouco de ética pode impedi-los de se tornarem sociopatas e, em vez disso, fazer deles grandes poetas.
domingo, fevereiro 25, 2007
Laurie Garrett, a senhora dos apocalipses possíveis
Texto publicado no jornal Público a 25 de Fevereiro de 2007
Em Cena 1/2007
Do No Harm. O título, a vermelho, sobressai na capa da última edição da revista Foreign Affairs, uma das "bíblias" das Relações Internacionais. A tese do artigo é inesperada como um soco: o texto defende que as grandes iniciativas filantrópicas de combate a doenças em países do Terceiro Mundo - como as que têm sido levadas a cabo pela fundação de Bill Gates no caso da sida ou da malária - pioram a situação sanitária nos países onde actuam em vez de a melhorar. Porquê? Porque se focam nas doenças mais mediáticas em vez de reforçar infra-estruturas de saúde que teriam um impacto positivo global. Porque definem objectivos de curto prazo em vez de fazer apostas que teriam benefícios mais profundos mas mais tardios. Porque absorvem os escassos recursos dos países onde actuam, desertificando à sua volta o sector dos cuidados primários.
A autora do artigo é americana, chama-se Laurie Garrett, foi durante muitos anos jornalista do diário nova-iorquino Newsday, já ganhou um Pulitzer (e foi nomeada três vezes) além de um saco cheio de muitos outros prémios de saúde, ciência e jornalismo e anda a defender teses incómodas sobre a saúde pública há mais de vinte anos.
Licenciada em Biologia pela Universidade da Califórnia e com um doutoramento interrompido para se dedicar ao jornalismo (o bichinho de uma rádio local afastou-a da investigação) Garrett tornou-se rapidamente famosa pelas suas reportagens, mas foi o seu livro The Coming Plague, sobre as epidemias emergentes, que focou sobre ela a atenção mundial. Garrett mostra como a sociedade global é vulnerável às epidemias e como a aparente imunidade às infecções que imaginamos possuir não constitui qualquer real protecção. Sida, Ebola, tuberculose, gripe, bioterrorismo - a actualidade foi mostrando a realidade das ameaças anunciadas por Garrett. The Coming Plague não é apocalíptico mas enuncia apocalipses possíveis: é um livro sobre a vulnerabilidade que o egoísmo, a cupidez, a arrogância, a inércia ou os preconceitos ideológicos nos fazem correr em termos de saúde. Garrett diz que os micróbios estão a ganhar, que eles não conhecem fronteiras e lembra que é necessário um sentido de comunidade e esforços coordenados a nível global para equilibrar a balança a favor dos humanos.
No seu segundo livro, Betrayal of Trust, Garrett foca a desagregação das estruturas de saúde pública e lembra como os cuidados primários de saúde são essenciais, não podendo ser substituídos por uma tecnologia médica de ponta que, em caso de epidemia, não só não se poderá estender aos pobres como não conseguirá proteger os ricos. O trabalho anuncia o artigo agora saído na Foreign Affairs, que irá crescer até se transformar num livro sobre saúde e segurança.
Garrett é membro do Council on Foreign Relations desde 2004 (ocupando ironicamente um lugar financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates), onde faz investigação na área da Saúde Global, e a sua voz possui hoje um impacto mundial, embora não molde ainda as políticas de saúde. Entre os projectos que tem entre mãos conta-se um novo livro sobre doenças emergentes e segurança global e uma investigação com foco na sida e no bioterrorismo.
Garrett repete que neste momento o problema não é falta de dinheiro nem de ciência, mas de políticas de desenvolvimento sustentável. E lembra que as doenças globais são uma face inevitável da globalização.
quarta-feira, janeiro 17, 2007
Evitar o aborto
Texto publicado no jornal Público a 16 de Janeiro de 2007
Crónica 3/2007
Uma grande maioria dos portugueses defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto
Nos últimos anos, verificou-se uma pequena mas significativa evolução na abordagem do aborto: enquanto as pessoas que são contra continuam a ser contra, hoje já não há ninguém que se declare "a favor" do aborto. Tendo sempre sido um defensor da despenalização, devo dizer que sempre me senti chocado quando alguém simplificava a sua posição ao ponto de se declarar "a favor" da interrupção voluntária da gravidez. O que existem são pessoas que consideram o aborto moralmente inadmissível em todas as circunstâncias e outras que admitem que se recorra ao aborto em circunstâncias especiais – ainda que reconhecendo a prática como indesejável. E, entre estas últimas, existem como se sabe discussão sobre quais devem ser essas circunstâncias especiais que tornariam o aborto admissível.
Penso que existe por isso uma grande maioria na sociedade portuguesa (para não dizer que existe uma opinião unânime) que defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto.
É verdade que há divergência entre o que poderão ser essas medidas. Num extremo, encontramos os que consideram que o aborto pode ser evitado através da abstinência sexual ou convencendo as mulheres que engravidam sem o desejar a aceitar como uma cruz o que deveria ser uma bênção e a levá-la até ao calvário. Mas, para além desta posição extremista, penso que existe mais uma vez uma maioria significativa (que reúne pessoas que vão votar sim e não no referendo) que aprova medidas que poderiam ser de grande alcance em termos de redução do aborto e que ainda escasseiam.
A primeira dessas medidas é uma política de apoio à família, que se traduza não só mas também em incentivos fiscais sensíveis pelo nascimento de um filho. Uma tal política faz sentido em termos de justiça social, faz sentido em termos demográficos e económicos e faz sentido em termos de prevenção do aborto. Não é preciso inventar a roda neste domínio: basta copiar as boas medidas existentes noutros países.
Outra medida é uma oferta alargada e profunda de educação sexual, e nomeadamente de aconselhamento de controlo da natalidade, que atinja todos os adolescentes sem excepção, a partir do momento em que iniciam uma vida sexual activa – rapazes e raparigas, maiores e menores, em ambiente escolar ou fora dele.
Outra medida indispensável é uma oferta eficaz e barata (vide gratuita) de contraceptivos e de métodos de diagnóstico e interrupção precoce da gravidez (pílula do dia seguinte) – que poucas sensibilidades podem considerar equivalente ao IVG às dez semanas. Não se pode ser contra o aborto e contra a contracepção acessível.
Outra medida, finalmente, seria uma política de acompanhamento e apoio de mulheres grávidas que não querem ficar com os seus filhos mas que estão dispostos a levar a gravidez a termo desde que sejam apoiadas durante a gestação e que tenham a garantia de que os bebés poderão ser entregues para adopção imediata.
Quando se fala de propostas como estas, há sempre quem venha dizer que muito disto já existe. E, em certos casos, isso é verdade. Trata-se é de uma questão de grau. Uma jovem de um meio social favorecido possui a informação, o acesso aos serviços médicos e sociais e, nos melhores casos, pode explicar o que pretende, lutar pelos seus direitos e encontrar aconselhamento. O pior são as outras.
Não basta que certos serviços existam. É preciso promover o seu uso e generalizar a sua cobertura. É preciso promover a sua qualidade (respeito pela mulher, reconhecimento do direito a escolher, protecção do anonimato, dignidade do acolhimento). É preciso não pressionar as mulheres grávidas a guardar o seu filho quando sabem que elas não o desejam ou não o podem fazer. É preciso fazer chegar a contracepção as mulheres em vez de esperar que as mulheres se dirijam às consultas. É preciso garantir que todas as jovens passam por consultas de planeamento familiar onde lhes seja oferecida (literalmente) uma verdadeira escolha.
Sem tudo isto, com referendo ou sem referendo, com sim ou com não, com ou sem objecção de consciência dos médicos, o aborto vai continuar a ser a maldição que é.
terça-feira, janeiro 09, 2007
Olhar para o lado
Texto publicado no jornal Público a 9 de Janeiro de 2007
Crónica 2/2007
A ideia de que não se pode suspeitar sem provas é mais ou menos a mesma coisa que dizer que não se devia frequentar a instrução primária sem ter uma licenciatura.
As declarações da eurodeputada socialista Ana Gomes citando testemunhas que referem a transferência de prisioneiros agrilhoados na Base das Lajes foram recebidas com um bem orquestrado coro de protestos.
Os protestos glosaram dois motes: o mais insistente consistia em dizer que Ana Gomes não podia lançar uma suspeita desta gravidade sem provas; o segundo em mitigar a acusação lembrando o "anti-americanismo" da eurodeputada.
A ideia de que não se pode suspeitar sem provas ou exigir uma investigação sem provas é curiosa – tanto mais quanto é enunciada a propósito de uma eurodeputada que integra uma comissão do Parlamento Europeu que investiga precisamente os voos da CIA no espaço aéreo europeu e as suspeitas de transporte ilegal de prisioneiros neste espaço aéreo, sem acusação formal, para prisões ilegais, onde são tratados de forma ilegal e nomeadamente submetidos a tortura, sem que lhes prestado apoio jurídico e sem que lhes seja concedida a protecção da lei americana, das leis europeias ou da lei internacional.
A ideia de que não se pode suspeitar sem provas é mais ou menos a mesma coisa que dizer que não se devia frequentar a instrução primária sem ter uma licenciatura. É evidente que o propósito de uma averiguação é precisamente recolher provas e apenas se justifica investigar quando existem suspeitas – que podem ser despertadas por um testemunho de um acontecimento fora do comum.
Um deputado pode e deve fazer averiguações no âmbito do órgão de soberania a que pertence, e um deputado pode enunciar as suspeitas que lhe der na gana (mais: possui um estatuto de imunidade precisamente para isto – não para escapar impune a fraudes, fuga ao fisco ou emissão de facturas falsas). E o deputado faz o seu dever quando investiga, quando denuncia suspeitas e quando exige averiguações. Que alguns deputados não o façam e prefiram tocar lira não nos deve fazer esquecer o que deveria ser a sua missão.
Quanto ao segundo mote, resolve a suspeita lançada tentando descredibilizar o mensageiro. A técnica é antiga mas não consegue esconder que visa escamotear a matéria substantiva que existe na acusação e que interessaria esclarecer. De facto, todos os que reagiram de forma escandalizada às suspeitas lançadas por Ana Gomes (sem exigir o seu esclarecimento até às últimas consequências) revelam, pelo seu lado, o receio de beliscar os inquilinos das Lajes – mesmo quando o que está em causa é o respeito dos direitos humanos.
A displicência (e a vulgaridade da condescendência sexista) com que foram recebidas as declarações de Ana Gomes é tanto mais estranha quanto a deputada refere "tremendas falhas dos serviços de controlo e fiscalização" nos voos que passam pelos Açores, que poderão mesmo permitir a prática de tráficos ilegais de diversos tipos. Aparentemente, nada disso tem importância e o Governo acha-o negligenciável. Ou fará parte do acordo das Lajes?
Pode-se gostar ou não gostar de Ana Gomes. Pode-se considerar o seu estilo demasiado exaltado e as suas manifestações excessivas. Mas o que interessa neste caso é a matéria em causa e essa refere-se à possibilidade de práticas criminosas em voos da CIA. É verdade que o Governo garante que nada de ilegal aconteceu – mas o que este episódio da visita de Ana Gomes aos Açores prova é que o Governo está ansioso por ignorar indícios que possam pôr em causa os EUA, sejam eles quais forem e sejam quais forem os eventuais crimes para que apontem.
Os crimes podem ter acontecido ou não, os voos da CIA com prisioneiros ilegais acorrentados e destinados a uma prisão "de onde não se regressa" podem ter passado ou não pelos Açores. O que é uma certeza (e essa certeza foi-nos dada pela reacção do Governo às declarações da deputada) é que, sejam quais forem as suspeitas, o Governo vai olhar para o lado.
terça-feira, janeiro 02, 2007
27
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Janeiro de 2007
Crónica 1/2007
Durante o tradicional Concerto de Ano Novo que foi ontem transmitido de Viena para todo o mundo, o exuberante maestro Zubin Mehta aproveitou a sua saudação de Ano Novo, feita em seu nome pessoal e da Filarmónica de Viena, para celebrar a adesão dos dois novos membros da União Europeia, a Roménia e a Bulgária.
A saudação poderia ter sido recebida com mais calor pelo público do Musikverein, mas não poderia ter sido feita por melhor porta-voz do que Mehta, um indiano natural de Bombaim, com uma fulgurante carreira como maestro que o colocou à frente das filarmónicas de Montreal, Los Angeles e de Nova Iorque e que é hoje director musical vitalício da Orquestra Filarmónica de Israel. Mehta – a par de outra figura maior da música e da paz, o maestro argentino Daniel Barenboim, de quem é aliás um amigo próximo - tem desenvolvido um trabalho constante pelo diálogo entre as culturas e, em particular, pela aproximação entre árabes e israelitas, e é gratificante que os dois novos membros da família europeia tenham sido saudados em nome da Europa por este indiano de religião parsi, educação anglo-austríaca, carreira americana e cultura judia. De facto, se algo representa o sonho da Europa, não é certamente a burocracia da Comissão Europeia, mas a cultura europeia de diálogo que encontra corpo – entre muitos outros exemplos exaltantes – na música sem fronteiras criada por uma orquestra multicultural, como as que Mehta ou Barenboim têm animado.
A entrada de mais dois países na União Europeia traz muitos problemas novos (devido, em particular, ao baixo nível de desenvolvimento dos novos membros) e vem agudizar outros (como os processos de tomada de decisão) mas não pode deixar de ser vista como mais uma vibrante vitória da ideia de Europa. Não pelo facto da União se aproximar dos 500 milhões de habitantes ou por qualquer outro recorde do género (ainda que a dimensão do mercado interno seja importante) mas porque esta Europa foi criada em torno dos ideais da paz, da liberdade, da igualdade, da democracia, da cooperação, da solidariedade, do direito e do progresso – e não em nome de qualquer sonho expansionista ou de supremacia, como não o foi em nome do medo nem do isolacionismo.
A Europa a 27 (e a 28, a 29...) é sem dúvida um problema, mas é o problema que a Humanidade tem de resolver se queremos que a paz e a cooperação sejam uma realidade na vida dos nossos filhos. Se há uma região do mundo que tem os recursos e a vontade (e a História) suficientes para levar esta ambiciosa aventura a bom termo, essa região é a Europa.
A Europa pode ter sido um objectivo económico, mas foi-o porque o comércio sempre foi o melhor meio para evitar as guerras. A ideia na base da Europa é uma ideia política e uma ideia política simultaneamente vantajosa e generosa – ou um sonho, se se quiser – e é essa ideia que temos de pôr em prática. As adesões de novos países e os novos pedidos de adesão apenas provam o poder mobilizador desse sonho.
As dificuldades fazem parte daquela "intendência" de que se diz que De Gaulle falava. A intendência vem atrás da decisão.