domingo, junho 17, 2007

Faezeh Rafsanjani, ao lado das mulheres do Islão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Junho de 2007
Em Cena 9/2007


Vista através dos nossos olhos ocidentais e liberais, pode não se conseguir adivinhar que Faezeh Hashemi Rafsanjani é uma feminista e uma reformista. É verdade que advogou durante anos o abandono do véu islâmico por parte das mulheres, mas nas suas aparições públicas e nas raras fotografias a sua cabeça está envolta num chador negro que apenas deixa a face visível e o corpo aparece enrolado numa veste negra que parece uma tenda, através do qual não se consegue adivinhar o mais ténue contorno do seu corpo. É isso que mandam os ditames religiosos islâmicos seguidos pelos fundamentalistas.
O seu apelido não é uma coincidência: Faezeh Hashemi é filha de Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, presidente do Irão de 1989 a 1997, que foi um dos braços direitos do ayatollah Khomeini e que é considerado um "conservador pragmático", defensor da liberalização da economia, da aproximação à Europa e rival do actual presidente Mahmoud Ahmadinejad, para quem perdeu as eleições em 2005.

Faezeh Hashemi Rafsanjani nasceu dentro da política e sempre ocupou cargos públicos, desde um lugar no Parlamento à vice-presidência do Comité Olímpico Iraniano e à presidência da Federação de Desporto Feminino dos Países Islâmicos, uma organização criada em 1991 para promover uma prática do desporto compatível com os preceitos islâmicos - que exigem que as mulheres mostrem o mínimo de pele possível, por exemplo. Mas, entretanto, ainda durante a presidência do seu pai, Faezeh fundou também um jornal diário feminino Zan (Mulher) - que foi proibido em Abril de 1999 devido às suas posições críticas dos conservadores. No último número do jornal, no que foi considerado um gesto de atrevida provocação, Faezeh publicou uma notícia sobre Farah Diba, a viúva do antigo xá do Irão, Reza Pahlevi. Mas Faezeh é ainda a autora de gestos tão revolucionários no Irão do século XXI como... andar de bicicleta e defender o direito das outras mulheres fazerem o mesmo.

Nos últimos anos, tem sido no domínio do desporto que Faezeh tem tido a actividade mais visível, não só promovendo a prática entre as suas compatriotas e defendendo a participação de mulheres em competições internacionais, mas também negociando as necessárias adaptações entre aquilo que têm sido até agora os equipamentos admitidos em provas desportivas oficiais e os preceitos islâmicos de indumentária feminina. Foi ela que conseguiu que o Comité Olímpico Internacional admitisse nos Jogos as mulheres vestidas dos pés à cabeça que agora aparecem um pouco por todo o lado. O resultado são fatos de banho de várias peças que cobrem todo o corpo, com touca até aos ombros, camisola de mangas compridas e calças até aos tornozelos, por exemplo. Uma das suas últimas (e ambíguas) vitórias foi a inspiração de uma "bicicleta islâmica", que já está a ser produzida no Irão, e que possui uma cabina que cobre metade do corpo da ciclista, o que permite que as mulheres pedalem sem desencadear pensamentos lascivos nos homens que as vejam (uma consequência que seria da exclusiva responsabilidade das mulheres e que demonstraria que o diabo as tinha possuído, aconselhando castigos corporais violentos).
Faezeh, de 44 anos, mãe de dois filhos, é vista no Irão como uma reformista progressista, profundamente admirada pelas mulheres e em particular pelas mais jovens, de cujos direitos é uma determinada defensora. Tem defendido publicamente e com vivacidade, para além do direito das mulheres a praticar desporto, o direito das mulheres concorrerem a lugares públicos e mesmo à presidência, é objecto de um indefectível ódio por parte dos fundamentalistas e as suas campanhas têm-se de facto traduzido pela conquista de algumas liberdades para as mulheres. Tem demonstrado, para além disso, uma coragem considerável, pois as ameaças, pressões e processos judiciais não são raros num país onde muitos pensam que o lugar da mulher é literalmente em casa, escondida dos olhares do mundo, calada e submissa.
A luta de Faezeh Hashemi não é de forma alguma contra o Islão, mas é por uma leitura do Islão que permita um maior grau de liberdade às mulheres. Uma das suas frases a propósito da participação das mulheres na actividade política era "Não é o Islão que proíbe as mulheres de concorrer a cargos públicos, mas a interpretação dos seus ensinamentos pelos clérigos". Nada de mais normal para uma tradição de exegese como a que existe noutras religiões, mas algo que muitos islamistas conservadores ou fundamentalistas consideraram simplesmente herético.
Faezeh Hashemi tem tentado desenvolver a sua actividade política dentro das regras impostas pela religião, tal como é vivida no Irão pelo regime fundamentalista de Ahmadinejad, e faz o que pode com o que tem. Os seus objectivos são justos e a sua coragem é admirável, mas é tragicamente irónico que os seus esforços possam dar origem a uma bicicleta que tape as pernas. E isso é trágico porque ela, como muitas outras mulheres do Irão, sabe-o muito bem.

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