terça-feira, fevereiro 26, 2013

A rua é a única saída

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Fevereiro de 2013 Crónica 7/2013

A manifestação de 2 de Março é um acto político fundamental de expressão de vontade popular
1. Quando, em 15 de Setembro passado, o povo português encheu as ruas das cidades para protestar contra a austeridade, o desemprego, a pobreza crescente, a política desumana do Governo, a destruição do Estado Social, as imposições da troika, a submissão do Governo português aos interesses da finança internacional, as mentiras do Governo, as golpaças do Relvas, os ataques à democracia, etc. (porque foram estas e outras do mesmo tipo as razões da descida à rua de milhares e milhares de pessoas que sentiram uma obrigação imperiosa de cidadania de fazê-lo), o ministro das Finanças Vítor Gaspar foi elogiar ao Parlamento o comportamento do povo, no mais descarado exemplo de populismo e oportunismo que o país viu em muitas décadas.

Gaspar disse que o povo português se tinha revelado “o melhor povo do mundo e o melhor ativo de Portugal", misturando a bajulação demagógica de toque nacionalista com a língua de trapos da gestão, e fingindo que não percebia que o povo acabara de lhe dizer alto e bom som que enfiasse a troika naquele lugar onde o Sol não brilha.
Na ocasião, porém, o ministro de Estado e das Finanças, número 2 do Governo, tecnocrata que não perde uma ocasião de sublinhar o seu perfil técnico, “independente” que não perde uma ocasião de sublinhar o seu distanciamento dos políticos, fez mais do que isso: aproveitou a mesma onda para criticar, durante a votação de duas moções de censura ao Governo de que faz parte, o ambiente de “intriga parlamentar e teatro partidário" representado pela actividade do Parlamento. O comentário passou despercebido mas a desvergonhada bajulação do movimento popular, que exigiria “a verdade”, o auto-elogio como o governante que não receia apresentar essa dura verdade ao povo e as críticas aos agentes políticos e ao Parlamento desenharam um dos mais insidiosos ataques à democracia que a bancada do Governo já protagonizou.

Gaspar, à sua maneira insidiosa, sonha saltar de Técnico Oficial de Contas de Passos Coelho para Gauleiter de um Portugal sub-democrático e submisso perante uma Europa germanificada. Era bom que a próxima manifestação não lhe deixasse dúvidas. No próximo dia 2 de Março, expliquemos detalhadamente a Gaspar, m-u-i-t-o-d-e-v-a-g-r-i-n-h-o, que o povo português não é o melhor povo do mundo, que os povos são todos iguais em direitos e em dignidade, mas que o povo é quem mais ordena e que a primeira coisa que este povo reclama é que o Governo seja corrido do poder e que vão todos a correr para os empregos nos quais têm estado realmente a trabalhar.
2. Que a manifestação de 2 de Março é um acto político necessário como expressão de vontade popular ficou provado mais uma vez nos últimos dias com as posições assumidas pelo PS a respeito do protesto levado a cabo contra o Relvas PIM! nos 20 anos da TVI. Vimos todos com estes que a terra há-de comer como António Costa e Francisco Assis se indignavam com aquilo que consideraram ser “um ataque à liberdade de expressão” do Relvas PIM! e como António Lobo Xavier, José Pacheco Pereira e até Santana Lopes consideravam o protesto como uma civilizada e até salutar manifestação de crítica ao ministro. O PS parece já nem reconhecer o direito ao protesto e parece considerar as palavras do Relvas PIM! como sagradas, não passíveis de interrupção, protesto, adiamento, crítica e não hesitam em lançar o grito de alarme de que a liberdade de expressão está em risco. Estarão todos bebâdos?

A liberdade de expressão do Relvas PIM! está em risco? Estaremos em risco de ficar sem conhecer o pensamento do Relvas PIM!? Não estará muito mais em risco o direito a viver, a ter educação, saúde, habitação, trabalho e dignidade de milhões de portugueses? Não estará mais em risco o direito dos portugueses a terem um Governo formado por pessoas honestas e preocupadas com o bem-estar dos cidadãos, que levem a sério o juramento que fazem de cumprir a Constituição em vez de se servirem do Governo para fazer negócios e da política para fazer licenciaturas?

Estarão todos bebâdos? A pergunta tem sentido porque há certas coisas contra as quais já não é possível encontrar paciência para argumentar. O que podemos pensar de António Costa quando temos de lhe explicar o que é o direito ao protesto? O que podemos dizer senão pedir a Santana Lopes que lhe explique? O que poderemos esperar de António Costa quando for ministro (às ordens daquele que reconheceu como seu melhor, António José Seguro) se pensa assim?

Perante um PSD e um CDS que destroçam o país de alfinete ao peito (desconfie-se sempre do patriotismo de lapela) e de um PS que treme de medo perante a Grândola, que esquece as liberdades que já defendeu, que faz coro com os colaboracionistas da troika e protege os politicos das negociatas, perante uma esquerda que hesita no seu dever de unidade, não há outra coisa a fazer senão sair à rua e cantar a Grândola a plenos pulmões. A rua é a única saída que resta. Que ninguém diga que nos calámos.
Álvaro de Campos dizia que os homens são lembrados duas vezes por ano: no aniversário do seu nascimento e da sua morte. O povo é lembrado apenas de quatro em quatro anos. Não chega. Queremos mais. A 2 de Março seremos lembrados. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 19, 2013

O respeitinho é uma coisa muito bonita


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Fevereiro de 2013 (não foi publicada crónica no dia 12 de Fevereiro) Crónica 6/2013
É mais fácil um jornal escrever “tomar no cu” do que criticar o memorando da troika

1. Quem acha que a política financeira e económica do Governo português reúne o apoio maioritário dos especialistas na área ou que as medidas propostas no memorando da troika fazem sentido e nos estão a levar no bom caminho teria feito bem em passar no sábado pela Fundação Calouste Gulbenkian, para assistir à conferência Economia Portuguesa - Propostas com Futuro. A reunião, organizada pela rede Economia com Futuro, um conjunto de cerca de duas centenas de investigadores e professores universitários de Economia e outras ciências sociais, contou com um auditório cheio de manhã à noite. Não só o pensamento único que ouvimos repetido em todos os telejornais possui alternativas, como estas são abraçadas por um número crescente de especialistas. No entanto, os media continuam a mostrar-nos Passos Coelho a defender o memorando da troika e Seguro a dizer que quer o memorando da troika mas com uma salada mista em vez da batata frita. Quando apenas se representarem a eles próprios, os media irão continuar a citá-los e a escamotear o resto do país, do mundo e da realidade?
2. O poeta espanhol Francisco de Quevedo foi, durante grande parte da vida, um homem da corte (de Filipe III e Filipe IV) e, sendo um homem de grande cultura, de alucinada verve e aguçada língua, amante de aventuras e comportamento truculento, é o protagonista de inúmeras histórias, inventadas quase todas, verdadeiras algumas, que circulam na cultura oral espanhola. Cresci a ouvir muitas delas e uma reza assim: um dia, em conversa com o rei e um grupo de fidalgos, Quevedo declarou que um pedido de desculpas podia ser mais humilhante para quem o recebia que um insulto. O rei considerou o comentário um completo disparate e disse-o ao poeta, mas este manteve a sua posição, para irritação do rei que (na minha versão), acabou por lhe dizer: “Se não provas o que dizes antes que o sol se ponha, mandarei cortar-te a cabeça!” E saiu da sala. Mas, ao passar por Quevedo, este não se lembrou de outra coisa senão de lançar a mão às nádegas reais e apalpar-lhe o rabo, para estupor da assistência. O rei, apopléctico, voltou-se para ver quem era o atrevido e, quando deu de caras com Quevedo, balbuciou, louco de raiva: “Quevedo! Como te atreves?”, ao que o poeta respondeu sem hesitar: “Perdoe-me, Majestade! Pensei que era a rainha!”. A história acaba com o rei a rebentar numa gargalhada, Quevedo mantendo a sua cabeça e, provavelmente, com os dois a irem juntos aos copos, já que se diz que Filipe IV era amigo da pândega.

Lembrei-me desta história, exemplo de iconoclastia q.b. sem nunca antagonizar o soberano, ao ler num blog o post do ex-secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, onde este se revolta contra a obrigação de os compradores exigirem factura de todas as suas compras, por pequenas que sejam, e a concomitante obrigação de exibirem esses documentos aos fiscais das finanças que estejam emboscados à saída dos cafés e que saltem às canelas dos contribuintes para lhos exigir.

O post “tornou-se viral” devido à sua brejeirice, por FJV dizer que convidará o fiscal que lhe exija essas facturas a “ir tomar no cu”. De facto, não se trata de uma expressão que seja comum um ex-governante pôr por escrito, muito menos no âmbito de uma crítica a uma medida do Governo - ainda que seja pelo menos igualmente raro neste contexto o uso do verbo “tomar” em vez do vernáculo “levar”, mas deixemos isso por agora - e não faltou quem elogiasse o desplante do ex-governante, o seu regresso à fileira dos livre-escrevedores e outras coisas igualmente disparatadas.

O que retive do post foi o facto de, apesar do seu autor saber e dizer claramente que o “pobre funcionário não tem culpa nenhuma” e que a responsabilidade cabe exclusivamente à Autoridade Tributária e Aduaneira, esta não merecer da sua parte a mínima agressão verbal. Claro que seria difícil dizer a algo tão sério, circunspecto e impessoal como a Autoridade Tributária e Aduaneira para ir tomar no cu”, tanto mais que são eles que fiscalizam os nossos impostos, mas havia uma outra possibilidade, que Francisco José Viegas não ignorava, como se prova pelo facto de lhe ter dirigido o seu post: o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, que manda na Autoridade Tributária e Aduaneira, que manda no pobre funcionário que não tem culpa nenhuma a quem Francisco José Viegas manda tomar no cu”. E por cima de Paulo Núncio há ainda o inefável ministro de Estado e ministro das Finanças Vítor Gaspar, que manda no Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, que manda na Autoridade Tributária e Aduaneira, que manda no pobre funcionário que não tem culpa nenhuma a quem Francisco José Viegas manda tomar no cu”. Seria pois de toda a lógica que Francisco José Viegas, sabendo o que sabe e pensando o que pensa, mandasse tomar no cu” não o pobre funcionário que não tem culpa nenhuma mas o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio ou o ministro de Estado e ministro das Finanças Vítor Gaspar que têm toda a culpa que o pobre funcionário não tem. Mas não.
Francisco José Viegas sabe que o respeitinho é uma coisa muito bonita. E mostra que o respeitinho brejeiro pode ser ainda mais respeitoso pois, se declara que a brejeirice existe (Olhem para mim a ser tão atrevido!), garante que ela nunca será posta ao serviço da iconoclastia (Caro Paulo Núncio, posso asseverar-lhe que...). Uma mão lava a outra e ambas lavam o cu. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 05, 2013

O Governo e o PS ou o lume e a frigideira

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Fevereiro de 2013

Crónica 5/2013

É possível que Costa seja o melhor candidato a PM a que este país pode aspirar. Se assim é, estamos pior do que julgávamos

1. Nos últimos anos, fomo-nos habituando à ideia de que António Costa seria o melhor a que podíamos aspirar como primeiro-ministro, se considerássemos os políticos à esquerda do centro. Não sendo concebível uma maioria eleitoral de esquerda sem o PS, o PM a sair de uma eventual maioria de esquerda teria de vir daquele partido e Costa parecia ser o mais potável. Tem uma carreira de governante prestigiado, tem sido um presidente de câmara aceitável e capaz de gerir alianças, parece determinado mas sensato, tem a suficiente agressividade política mas não parece ser comandado pelos seus ódios pessoais, demonstra preocupação social, consegue construir um discurso alternativo ao do Governo ainda que na variável português suave, tem à-vontade e a suficiente capacidade de expressão e argumentação - o que o torna um tigre da Malásia ao lado de periquitos como Pedro Passos Coelho ou António José Seguro - e, o que é essencial num lider político, não põe as sobrancelhas em acento circunflexo para se dar ares de estadista. Para mais, o que começa a conferir uma certa excentricidade a um líder partidário, é licenciado pela Faculdade de Direito e não pela Universidade Lusíada, como Passos Coelho; nem pela Independente, como José Sócrates; nem pela Autónoma, como Seguro.


É verdade que apoiou, cobriu, acompanhou e desculpou José “Zé” Sócrates para além do que seria imaginável ou conveniente, mas pensávamos, apesar disso, que ele seria o melhor possível, neste mundo onde a oferta não abunda. Os acontecimentos dos últimos dias não vieram desmentir isto. É possível que Costa continue a ser o melhor candidato a PM a que este país pode aspirar. O que os últimos dias vieram mostrar foi que, se isto é o melhor a que podemos aspirar, estamos mais tramados do que julgávamos.


A chatice é que um líder político não se faz em seis meses e os últimos anos não parecem ter sido um alfobre de competência política, de empenhamento democrático, de honestidade republicana, de audácia no combate político, de capacidade de liderança. Assim, não há qualquer razão para pensar que os próximos anos nos vão oferecer um sortido mais estimulante de líderes políticos do que aquele com que podemos contar hoje. Como se faz então? Só vejo uma saída: se Costa é, de facto, o melhor que podemos esperar, alguém lhe pode dar a receita daquelas coisas que o Lance Armstrong tomava? Temos a sorte de que, por enquanto, não há testes antidoping na política. Porque não aproveitar a janela de oportunidade? Talvez Costa só precise de uma forcinha.


2. Depois de convencer Costa a avançar, é preciso explicar-lhe algo que todos pensávamos que ele sabia mas mostrou que não sabe: o maior problema que existe em Portugal é o Governo e a política do Governo. O que significa que a coisa mais urgente a fazer é combater a política do Governo e, de preferência, substituir o Governo, antes que ele liquide a democracia, extermine os portugueses, destrua o país e venda os salvados à Goldman Sachs. A unidade do PS só é importante se ela estiver ao serviço da causa nacional que é o derrube do Governo e a sua substituição por outro que ponha em prática uma política alternativa, apostada na justiça social e no desenvolvimento económico, na renegociação da dívida e na inflexão da política europeia. Se o PS não servir para isto, a sua unidade não serve para nada. António Costa diz que os militantes do PS não querem confrontos internos e que querem ver o PS concentrado na oposição ao Governo. Mas o que Costa deveria explicar aos portugueses (os militantes do PS estão incluídos) é que é necessária uma nova liderança no PS para que este faça oposição em vez de salpicar os telejornais com os habituais comentários ocos dizendo que o PS é responsável, está disponível, tem alternativas e se vai abster violentamente.


2. Já toda a gente se surpreendeu, se indignou e contestou a nomeação de Franquelim Alves para secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação. Que a escolha é errada, é evidente. Que o cavalheiro não tenha vergonha de aceitar, é triste. Nomear para o Governo um administrador do grupo SLN-BPN, protagonista da maior fraude bancária da história recente, é no mínimo uma provocação. E até Passos Coelho já deve ter ouvido a história da mulher de César. Mas o Governo quis sublinhar que não se sente obrigado a reger-se pelas regras da decência política e que o seu poder lhe permite fazer o que quiser. Tomamos nota. De novo. Mas no meio do grande escândalo há um pequenino que é, mesmo assim, de monta: o pormenor de a passagem de Franquelim Alves pela SLN-BPN ter sido devidamente expurgada do currículo oficial.


Uma proposta concreta: torne-se ilegal e nula qualquer tomada de posse de qualquer governante, deputado ou dirigente do Estado que falsifique ou omita dados no seu currículo oficial. É uma regra simples e honesta. Não esperamos que este Governo a proponha nem que este Parlamento a aprove, mas nada nos impede de esperar que a honestidade volte um dia a ter maioria. (jvmalheiros@gmail.com)