por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Abril de 2011
Crónica 17/2011
Há muitos episódios do pontificado de João Paulo II que, no mínimo, lançam a dúvida sobre a santidade do homem
1.Beatificar ou canonizar alguém era muito mais fácil na Idade Média. A notícia da beatificação ou da canonização partia de Roma, chegava aos bispos das várias dioceses que a distribuíam pelas várias paróquias, e em cada igreja a boa nova era dada aos fiéis reunidos na missa. Estes recebiam o anúncio com a despreocupada alegria da ignorância e uma aterrada veneração submissa perante o imenso poder da Santa Madre Igreja, cujas fileiras viam assim reforçadas com mais um milagreiro certificado. O analfabetismo, a escassez de referências escritas, a transmissão oral e a poderosa máquina de propaganda da Igreja Católica, aliados aos interesses das regiões de origem, de vida ou de morte do ungido (mais raramente ungida) e aos de todas as outras que pudessem reivindicar como sua uma relíquia da personagem, iam ampliando a reputação do beato ou do santo até a sua colecção de milagres, aparições, intercessões, conversões, curas e salvações se tornar esmagadora. Não era saudável pôr em causa as decisões de Roma e poucos o faziam.
Beatificar na era da Internet não é a mesma coisa. O homem que o Papa Bento XVI vai beatificar no próximo domingo, o seu antecessor João Paulo II, não pode esperar a mesma veneração consensual e acrítica que os seus colegas beatos mereciam há mil anos, nem sequer o mesmo reconhecimento distraído que teve a esmagadora maioria dos 1340 indivíduos que ele próprio promoveu a beatos ou dos 483 que canonizou (mais que todos os papas anteriores juntos).
Hoje não é possível ler uma notícia sobre a beatificação de João Paulo II na Internet sem ter acesso à lista das razões por que tantos católicos (uma minoria, apesar de tudo, segundo parece) pensam que a beatificação é indevida e sem aceder aos muitos episódios do seu pontificado que, no mínimo, lançam a dúvida sobre a santidade do homem, desde a sua protecção ao depravado padre pedófilo mexicano Marcial Maciel, até à sua criminosa política antipreservativo ou o estatuto de menoridade que sempre defendeu para as mulheres no seio da Igreja romana. Ou a sua estratégia mediática John Paul Super Star, tão distante da pose que costumamos associar à santidade. Já para não falar desta beatificação com Via Verde, que pode tornar-se a regra para todos os papas daqui para a frente, passando a canonização a ser um normal gesto de cortesia de um Papa em relação ao antecessor.
A Internet, com a sua memória de elefante, é hoje o grande advogado do Diabo. E todos, dentro e fora da Igreja católica, temos acesso às suas averiguações. Que o estatuto de santidade seja atribuído com esta leviandade (e tão flagrante nepotismo) pela instituição que reivindica a maior competência no domínio é algo que não dignifica a Igreja. Por outro lado, as cerimónias de beatificação podem ser um grande momento televisivo e, se é esse o objectivo de Bento XVI, podem constituir o passo certo na direcção certa.
2. Uma das condições necessárias para a beatificação e canonização de alguém é a realização de "milagres". No caso de João Paulo II, curou uma freira francesa com parkinsonismo. O critério choca com algumas dificuldades semânticas e tem aquela incomodidade de não se articular muito bem com os critérios científicos com os quais a Igreja católica aprendeu a viver. Pessoalmente, porém, sempre considerei perturbador um dilema ético nesta ideia de que a divindade pode decidir, de vez em quando, abrir um parêntesis nas leis físicas e beneficiar este ou aquele doente incurável. É que aceitar o milagre como parte do jogo implica aceitar um mérito particular do miraculado ( o que o tornaria, em princípio, um melhor candidato para a canonização que o suposto santo) ou aceitar uma aleatoriedade do acto curativo divino que o tornaria injusto em relação aos não-miraculados - de facto, essencialmente injusto. Assim, para dar a Deus o benefício da dúvida, temos forçosamente de considerar que a irmã Marie Pierre-Simon Normand merece mais a beatificação que João Paulo II. (jvmalheiros@gmail.com)