por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Abril de 2013
Crónica 15/2013
Que responsabilidade assume uma pessoa que trabalha de borla para o Governo?
O jovem empresário Miguel Gonçalves, a escolha de Miguel Relvas para “embaixador” do programa Impulso Jovem, que se tornou famoso pela retórica tele-evangelista, aceitou este trabalho sem auferir qualquer remuneração. Numa entrevista dada ao jornal i, Gonçalves diz que preferiu “não ser pago para manter a sua absoluta e integral independência”.
Mas, muito antes disso e de forma muito mais gravosa, já os membros da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, criada pelo Governo na dependência da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais e presidida pelo advogado António Lobo Xavier, tinham renunciado “a qualquer tipo de remuneração pelos trabalhos realizados no âmbito desta comissão".
Nas suas variantes, o que estas pessoas pretendem com a sua aparente generosidade é mostrar que são pessoas honestas e que não vão trabalhar para o Governo por ganância pessoal. No entanto, o resultado é de eficácia duvidosa, já que é lícito que, na ausência de um salário, os portugueses fantasiem sobre os benefícios que estas pessoas pensam obter com a sua contribuição, por muito injustas que sejam essas conjecturas.
A moda surpreende, desde logo, porque a esmagadora maioria dos portugueses não poderia aceitar um trabalho sem remuneração - e, se uma crónica semanal pode representar apenas umas horas de trabalho (José Sócrates também não quis ser pago pela RTP), é evidente que a reforma do IRC ou a promoção de um programa de emprego jovem deve aproximar-se de uma ocupação a tempo integral. Mas choca ainda mais do que surpreende porque, por trás desta atitude aparentemente moral e louvável, espreitam conceitos profundamente perniciosos e anti-sociais. Antes de mais, a ideia de que é normal que o trabalho das pessoas não seja pago e de que existe no simples facto de fazer um favor ao poder uma remuneração suficiente. É evidente que a ideia agrada ao Governo, que já admitiu que gostaria de baixar o salário mínimo, que considera que os salários portugueses são demasiado altos e a causa de todos os males que nos atingem e que fez do empobrecimento generalizado o objectivo da sua política financeira. Mas um mínimo de pudor aconselharia a não apresentar como exemplar o facto de que há quem esteja ansioso por trabalhar de borla para o Governo.
Outra ideia perniciosa é a de que é normal que o Estado recorra, para a realização de algo que é uma sua função essencial, ao trabalho voluntário de outrem e de que a “sociedade civil” está disponível para o fazer de cara alegre. De facto, basta ouvir o saltitante ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, para perceber como a estratégia da transferência das responsabilidades de solidariedade do Estado para as mãos das organizações de caridade privadas e a substituição da justiça pela esmola são traves-mestras da política governamental, no âmbito da sua campanha de destruição do Estado.
Mas há outras razões para que a suposta poupança feita com estas “ofertas” seja uma péssima ideia para o Estado. Qual é a responsabilidade que uma pessoa que se oferece para trabalhar de borla para o Estado assume? Qual é a obrigação que tem? Estará obrigada a refazer ou corrigir o seu trabalho caso existam erros ou lacunas ou novos requisitos? Que contrato a obriga?
É evidente que se espera de quem integra uma comissão de reforma do fisco uma enorme disponibilidade e assunção de responsabilidades. Mas é evidente que nem essa disponibilidade nem essa assunção de responsabilidades existirá por parte de uma comissão de voluntários a trabalhar de borla.
Mas há ainda outra razão mais grave. No caso da referida comissão do IRC, há membros - começando pelo seu presidente, como aliás foi atempadamente notado por Ana Drago, do Bloco de Esquerda - que trabalham profissionalmente como consultores fiscais e que, nessa qualidade, estão naturalmente ao serviço de grandes empresas. Que o Governo aceite sem problemas que estas pessoas sejam pagas por essas empresas enquanto trabalham de borla para o Estado e que não tenha dúvidas de que defenderão com uma firmeza férrea os interesses do Estado na reforma fiscal é um admirável acto de fé. E revela uma desmedida confiança na capacidade dos membros da comissão dirimirem os eventuais conflitos de interesse que surjam na sua consciência.
No domínio do trabalho político gracioso há nos Estados Unidos uma tradição secular: profissionais de reconhecido mérito e sem necessidades materiais oferecem, uma vez abandonada a sua actividade profissional, alguns meses ou anos de trabalho ao Estado - como embaixadores plenipotenciários, enviados especiais, presidindo a comissões, etc. - em troca de uma remuneração simbólica. Chamam-lhes os “dollar a year men”. Mas essa contribuição deve ser dada quando já não possam existir conflitos de interesse e não com a esperança de capitalizar a posteriori os conhecimentos e a influência obtida nesses lugares. Podia ser uma ideia. (jvmalheiros@gmail.com)
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