por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Abril de 2013
Crónica 12/2013
Sócrates veio defender a sua versão porque não há ninguém no PS para contrariar a narrativa dominante
A reentrada de José Sócrates na cena política portuguesa sofre da mesma indefinição que marca toda a actividade política nacional. Não sabemos bem ao que vem nem se podemos acreditar no que diz mas, como é o que há, não podemos deixar de ter alguma expectativa.
Sócrates regressa supostamente como comentador televisivo, mas vem de facto fazer política e é evidente que pretende tornar-se a figura de proa da oposição. Ser comentador é a porta de entrada possível. Não é nada novo. Há outros políticos no activo ou que tentam regressar ao activo que fazem supostamente análise política quando fazem de facto política. A diferença entre um comentador e um político é que o primeiro deve relegar-se a uma posição de observador, enquanto o segundo é um actor da cena política. O comentador deve fornecer elementos que ajudem o público a formar opinião e não tentar convencer o público da sua opinião - o que é lícito num político. Cabe ao comentador observar, analisar, criticar ou elogiar mas não lhe cabe tentar influenciar a agenda política ou o curso dos acontecimentos. Só que, neste caso, ninguém espera que Sócrates se comporte como um comentador e dois anos de estudo de filosofia não parecem ter-lhe dado uma atitude mais reflexiva. Mais: ninguém deseja que Sócrates se limite ao comentário. Sócrates veio para se lançar no combate político e todos rejubilam com isso, carentes como estão de um confronto que, mesmo nesta situação de hecatombe nacional, a oposição não consegue levar a cabo contra o Governo e os seus partidos.
É evidente que há virtude em fazer frente às políticas destrutivas de Pedro Passos Coelho e da sua tropa fandanga. O que é lamentável é que essa oposição surja da parte de um agora franco-atirador cuja existência no seu próprio partido é hoje pouco mais que espectral e que não possui uma posição institucional que lhe permita avançar verdadeiras alternativas políticas. Na realidade não se trata de verdadeira oposição, mas de um reality show de oposição que, nas actuais circunstâncias, vai ter de servir para nos aliviar o tédio.
O que é lamentável é que tenhamos de ficar felizes com esta pantomima de oposição devido à absoluta ausência de real oposição do PS e à tibieza não só da liderança de Seguro mas também das alternativas a Seguro, sempre anunciadas e sempre adiadas, sempre ferrabrases na intenção e pusilânimes na acção.
Há algo que Sócrates disse na sua entrevista que é tristemente verdadeiro: ele veio defender a sua versão dos acontecimentos que nos trouxeram a esta crise e que nos enterraram nela, porque não há ninguém no PS para contrariar a narrativa dominante do Governo. Os debates políticos continuam a ecoar as aldrabices de Passos Coelho e as sandices de Vítor Gaspar, que os media reproduzem obedientemente. Sócrates teve de voltar porque não há ninguém no PS a fazer oposição, mas também não regressa para disputar de novo a liderança do PS, regressa para o lugar do lado, para um lugar onde pode dizer que sim e que talvez sem se comprometer demasiado, não se percebe bem porquê nem para fazer o quê, além de nos animar as noites de domingo.
A ambiguidade deste papel de Sócrates, comentador-que-vai-ser-oposição-mas-sem-ser-oposição, articula-se com a de Seguro, o líder-da-oposição-que-não-se-opõe-a-nada, o opositor da triste figura, que se abstém violentamente, que só censura quando não tem saída, que repete banalidades com caretas de menino mimado, que se queixa da austeridade mas promete vassalagem à troika, que quer unir a oposição mas tem medo do PCP e tem vergonha de falar com o BE, que diz que é de esquerda mas só namora a direita.
Mas o panorama não se esgota aqui. A comédia dos enganos da política nacional completa-se com a) um Governo-a-soldo-dos-credores, que finge que defende os interesses dos portugueses quando vive para agradar à senhora Merkel e aos especuladores de todo o mundo, enquanto vende o país ao retalho e nos tenta empobrecer, b) um CDS-que-está-no-Governo-mas-não-está e que até exige remodelações, c) um Presidente-da-República-pensionista, que não é bem presidente, que faz política em chás-canasta, discretamente e sem consequências, só às vezes e só com uns amigos chegados, que alinha frases enigmáticas com dificuldade mas se tem em muito alta conta e que gosta de morder as canelas às escondidas como um pincher histérico e d) um PCP e um BE tão preocupados com a sua identidade que receiam transformar-se em estátuas de sal se fizerem uma frente comum contra o Governo e perder a pilinha se falarem com o PS.
Será que, neste Mundo de Faz de Conta onde ninguém faz o que deve ou cumpre o que promete, o entretenimento é toda a oposição a que podemos almejar? Da mesma maneira que vemos programas humorísticos para perceber o que se passa na política e lemos artigos de opinião para saber as notícias? Será que já prescindimos da política e só queremos mesmo é ver televisão? (jvmalheiros@gmail.com)
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3 comentários:
Boa noite,
Grande José Vítor Malheiro !
Tantas verdades.
Os meus mais sinceros parabéns, pelas excelentes crónicas que nos oferece semanalmente no Público.
Pela parte que "me toca",é sem a menor dúvida, o melhor cronista do país.
Forte abraço.
José Viana Ferreira
Senhor Vitor Malheiros,
só posso dizer que gostei verdadeiramente do seu artigo sobre "No reino da alucinação...". Lamento que não tenha aparecido em letras gordas em cartazes pelas ruas todas.Obrigada por pensar e dizer desta maneira o que muita gente não consegue.
Muito obrigada pela atenção. Rosa Maria Gomes
muito obrigada pelo seu artigo "No reino da alucinação".
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