terça-feira, março 08, 2005

O olhar e a fuga

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 8 de Março de 2005
Crónica 8/2005

As fontes anónimas são mais caras aos políticos que aos jornalistas

É frequente vermos na televisão um grupo de jornalistas perseguindo rua abaixo ou escada acima um político ou um advogado a quem submergem em perguntas disparadas à queima-roupa e gritadas aos microfones, a quem envolvem, apertam, espremem e empurram, enquanto o centro do assédio vai resmungando entre dentes que nada tem a dizer ou segue em frente de lábios cerrados e com um olhar determinado, sem lançar um olhar aos microfones que se atravessam na sua cara.


Este jornalismo de emboscada era raro, mas sofreu um enorme incremento com o julgamento da Casa Pia e começou a tornar-se banal também noutros contextos. Fazem-se esperas ao Presidente da República e recentemente vimos até juízes do Supremo Tribunal de Justiça ser interpelados de surpresa ao descer de um comboio para serem instados a prestar declarações sobre a eleição do presidente daquele órgão.


Diga-se claramente que os jornalistas têm todo o direito de esperar quem muito bem entendam numa área pública, para o interpelar. Não têm é o direito de o fazer sem que um motivo de força o justifique. Se um responsável de um órgão público se recusa a responder à imprensa para esclarecer matéria de interesse público, por exemplo, esse expediente é não só justificável como recomendável. Os responsáveis dos órgãos públicos têm o dever de prestar contas à sociedade e a satisfação dos pedidos de informação por parte dos media são uma clara obrigação democrática.


Porém, se esta prática jornalística é criticável e de nulo resultado em termos informativos, deve ter-se presente que a figura que os interpelados fazem não é menos triste – em particular quando se trata de políticos.


De facto, se há alguma coisa que se exige de um político, é que consiga encarar calmamente uma bateria de jornalistas e câmaras e que consiga recusar-se a responder a uma pergunta com calma, fair-play, cortesia e firmeza, se for essa a sua vontade. É natural que um jornalista insista, mas é de exigir de um político que consiga repetir que não vai responder a uma dada questão. Na esmagadora maioria dos casos, é mesmo possível explicar por que razão não se responde, o que pode ser educativo, desdramatizador e fornecer a declaração por que o jornalista anseia. Mas é claro que isso só é possível quando há uma razão... razoável. Para usar um quadro conceptual caro a Pacheco Pereira: a passagem do registo do “pathos” para o do “ethos” e o do “logos” na esfera dos media é possível em muitas circunstâncias, mas é tanto da responsabilidade dos jornalistas como das suas fontes. O político que foge de lábios crispados e se esconde no carro representa tanto o seu papel na pantomima como o jornalista vociferante de microfone estendido.


A questão é que os próprios políticos receiam não conseguir resistir a uma pergunta, uma câmara, um projector e, por vezes, preferem a solução deselegante de ignorar perguntas dos jornalistas e sair porta fora sem dizer água vai – por vezes depois de terem convidado jornalistas para uma “conferência de imprensa” – a ter de os encarar para lhes dizer que não é o momento de falar. Paralelamente, e por outro lado, abusam do recurso à declaração sob anonimato, que não os responsabiliza, apesar de em muitos casos se tratar de servidores públicos.


No momento em que se espera a tomada de posse de um novo Governo e este começa a definir as suas regras de comportamento, seria conveniente que se compreendesse que, se a reflexão pode exigir distância das luzes mediáticas e se o silêncio é admissível como atitude (assumida), é imperativo que o Governo consiga encontrar uma relação com os media onde o discurso se sobreponha ao silêncio, a resposta ao rumor e o olhar à fuga.


O Livro de Estilo cuja segunda edição o PÚBLICO acabou de publicar reduz de forma drástica a admissão de fontes anónimas – mais caras ainda aos políticos que aos jornalistas. Recomenda-se ao novo executivo uma leitura da obra e espera-se uma resposta adequada ao desafio de transparência e responsabilização que ela impõe, não por razões da deontologia jornalística, mas por razões de ética democrática.

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