terça-feira, janeiro 25, 2005

Frio

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 25 de Janeiro de 2005
Crónica 3/2005


A falta de aquecimento é uma das causas dos baixos índices de leitura. É difícil ler de luvas.

Entra pelas frinchas, pelo buraco da fechadura, por debaixo do casaco, pelos buraquinhos da camisola, gela-nos as mãos, os pés e o nariz. O frio. Portugal pensa que é um país quente e trata o frio como coisa passageira, um incidente fortuito, um intervalo entre calores, algo que vai desaparecer se não se pensar nele. E, quando nos damos conta, é tarde. Estamos enregelados, os nossos pés parecem pertencer ao vizinho do lado e nada nos consegue aquecer. É assim todos os anos. Gelamos.

A cultura portuguesa herdou a ideia britânica segundo a qual “o aquecimento não faz muito bem” e o frio é salutar porque enrijece (um critério que nos levaria a considerar o “rigor mortis” como o cúmulo da saúde). As queixas de frio são vistas como algo pusilânime.

Somos educados para suportar o frio com cara alegre e só vestir uma camisolinha depois dos lábios estarem levemente azulados. As consultas dos hospitais estão geladas! As escolas dos nossos filhos estão geladas! E quando fazemos um comentário respondem-nos com aquele “Ah! Acha!?” que nos poderia levar a matar se não fosse o desconforto das prisões e imaginar o frio que deve fazer por lá.

A verdade nua e crua (apesar de Oscar Wilde nos ter ensinado que a verdade nunca anda nua e raramente está crua) é que não somos só nós quem tem frio. Toda a gente tem frio! E quando nos dizem “Acha!?” com um sorriso nos lábios, escondem nos bolsos das calças as frieiras das mãos e tentam controlar através de meditação transcendental o tremor dos joelhos. O país inteiro bate o queixo e não só porque este inverno é particularmente rigoroso: já bateu o queixo no ano passado. Quando os portugueses esfregam as mãos não estão contentes. Têm frio! Quando batem com o pé não teimam. Têm frio! E quando dão palmadas nas coxas não se riem. Também têm frio! E morrem de frio, como mostram as estatísticas. Morrem de doenças respiratórias, de pés gelados e roupa molhada, de esperas geladas em paragens de autocarro geladas depois de sair dos empregos gelados e antes de chegar às suas casas geladas.

Além da tradição lapónica existe uma razão económica para o frio. Aquecer a casa sai caro e os patrões também não aquecem os escritórios e as fábricas para não gastar dinheiro em gás (eles dizem que o frio é saudável mas os seus gabinetes estão aquecidos).

O frio, porém, não é exclusivo dos sítios pobres. Em Portugal pode-se rapar frio em ambientes de luxo. Quem nunca pôs dois pares de peúgas de lã e a roupa interior térmica para ir jantar a casa de um amigo é porque não vive em Portugal. E o que dizer das lojas de porta aberta à intempérie onde lá dentro uma senhora com várias camadas de xailes morre de frio? Já tentaram sugerir-lhe que feche a porta para conseguirmos aquecer os dedos apenas o suficiente para poder contar as moedas? Ela pensa que a porta aberta é OBRIGATÓRIA! E os cafés onde é preciso bater os pés no chão como uma sentinela enquanto se bebe o café ao balcão? E os restaurantes onde tem de se comer à mesa de anorak?

Quanto ao isolamento das nossas casas é ainda pior que o de Santana Lopes, o que faz com que só pessoas verdadeiramente abastadas possam combater o frio, pois é necessário aquecer um volume considerável da troposfera antes de conseguir efeitos sensíveis na sala de estar.

A falta de aquecimento é uma das principais causas dos baixos índices de leitura e do baixo rendimento escolar. É difícil ler de luvas ou sem tirar as mãos debaixo do cobertor. A leitura é algo a que o Inverno convida mas não quando o bafo se condensa no ar à nossa frente. Já experimentaram segurar num livro enquanto tiritam? É muito difícil focar as linhas. Resta esperar que o próximo ministro da Cultura possa pôr em vigor um regulamento de isolamento térmico das construções.

terça-feira, janeiro 18, 2005

Ideologia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Janeiro de 2005
Crónica 2/2005

O que se espera de um partido político é que ele possua uma visão do mundo e objectivos para a sua mudança.

Há uns dias, numa reunião no Centro Cultural de Belém, José Sócrates afirmava que, caso o PS ganhasse as eleições legislativas, iria introduzir alterações ao Código do Trabalho aprovado pela actual maioria, mas que mas não iria revogá-lo “apenas por objecções ideológicas”.

As razões ideológicas têm, é evidente, má imagem e, desse ponto de vista Sócrates pode ter marcado um ponto. As pessoas estão habituadas a ouvir falar de erros (quando não de massacres) cometidos em nome da ideologia e alguém que apresente “razões ideológicas” para os seus actos parece na melhor das hipóteses um velho casmurro caminhando para o abismo.

“Razões ideológicas” soam a sectarismo partidário, a irracionalidade, a fanatismo, enquanto que a sua recusa tem a imagem do pragmatismo, da flexibilidade e da razoabilidade.

Acontece porém que o que se espera de um partido político é que ele possua de facto uma ideologia – que possua uma visão do mundo e objectivos para a sua mudança, que possua um sistema de ideias racionais e práticas que (entre outras coisas) nos permita ter uma ideia da sua actuação futura caso ele seja eleito para fazer leis e formar Governo.

Claro que um partido político não pode usar a sua ideologia como uma doutrina cega e tomar decisões com base em preconceitos. Um partido precisa também de ser pragmático e de se adaptar tacticamente à realidade - não se pode seguir uma receita ignorando quais os ingredientes disponíveis. Mas o pragmatismo deve apenas fornecer o grau de liberdade com que se tentam atingir os grandes objectivos da ideologia.

É evidente que a ideologia vai mudando – e, em geral, por imposição da realidade. Houve uma altura em que ser de esquerda significava inevitavelmente defender a propriedade estatal dos meios de produção – o que hoje parece não só manifestamente desfasado da realidade como até desservir os objectivos igualitários que a medida pretendia atingir.

Mas há sempre algo que se mantém. Um partido com a ideologia na gaveta é um grupo oportunista que não pode oferecer qualquer garantia de coerência – não é por acaso que o Bloco de Esquerda escolheu como slogan da sua campanha “Esquerda de confiança”. Uma “objecção ideológica” não é uma birra sem sentido.

É evidente que o PS possui uma ideologia, mas seria útil e pedagógico que não o esquecesse e que não fingisse não a ter. A escolha de um Governo numa democracia tem de ter como base uma visão do mundo que é sancionada pelos eleitores. Não o guarda-roupa do líder, nem as “boutades” de campanha. A fuga da ideologia está no ar do tempo e é um luxo a que a direita (economicamente) liberal se pode dar, entregando como entrega tanto da política às mãos invisíveis do mercado e de Deus (o que é ideológico mas pode dar-se ao luxo de ser menos voluntarista). Mas a esquerda, se não viver da sua ideologia e do sonho de querer mudar o mundo, não viverá de todo. Será indistinguível da direita tecnocrática da boa gestão, para quem os objectivos da política se resumem a encontrar as melhores medidas do ponto de vista técnico, ideologicamente neutras, com que acreditam que o mundo gerará mais riqueza – o que permitirá resolver todos os problemas.

O pragmatismo da esquerda envergonhada foi visível esta semana também nas declarações de Sampaio sobre a China. Não é possível manifestar compreensão a respeito dos atropelos dos direitos humanos na China apenas porque o seu poder económico é imenso. Pode-se sim, pragmaticamente, considerar que a defesa dos direitos humanos naquele país deve ser um esforço a prosseguir numa via não confrontacional e de diálogo, porque essa parece ser a melhor táctica, mas a prosseguir com tenacidade e sem recuos.

Para eleger um homem ou uma mulher não nos basta saber se é hábil ou inteligente. Queremos saber para onde vai, o que o/a faz mover, qual é o seu sonho. A ideologia é a ambição que os partidos têm para a sociedade, o seu sonho (as vezes o nosso pesadelo). Se um partido não tem grandes ambições, tem apenas para nos oferecer a pequenez das suas invejas.

terça-feira, janeiro 11, 2005

O Expresso de Belém

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 11 de Janeiro de 2005
Crónica 1/2005

Em Belém, um jornalista não pode ser senão convidado.

A informalidade nos contactos interpessoais é importante em muitas circunstâncias. É importante porque pode permitir economia de tempo, porque pode permitir uma expressão mais livre e mais viva das opiniões e dos sentimentos e, assim, tornar um debate mais animado, uma discussão mais produtiva ou uma relação mais calorosa. É importante porque, ao reduzir os formalismos, fórmulas de intervenção e de codificação conhecidas apenas de alguns, se reduzem os obstáculos à participação e se possibilita uma maior democraticidade. Reduzir os formalismos não significa – não pode significar – acabar com as regras de convivência ou de conveniência.

Existe aqui um justo meio. Há certamente formalismos que são operativos e razoáveis e outros que são discriminativos ou mesmo opressores.

A informalidade é cultivada nas relações dos media com o público por razões de igualitarismo e equidade. Para um jornalista todos são cidadãos e, por essa razão, e para vincar essa razão, se dispensam, em geral, na escrita jornalística, tratamentos académicos ou nobiliárquicos – usados em relações mais formais, mas que, no contexto dos media, poderiam ser lidos como sinais de autoridade de alguns ou submissão de outros.

Por todas estas razões, percebe-se que, num programa de televisão como o “Expresso da Meia-noite”, os seus dois pivots se encontrem em mangas de camisa e assim recebam os seus convidados. São os anfitriões, são eles que mandam no programa, que escolhem os temas e os convidados, que dão e tiram a palavra, mas pretendem dar uma imagem de informalidade e dinamismo, pretendem que essa informalidade se transmita às palavras dos convidados, dando mais cor ao programa, que eles próprios dispam o casaco. A imagem é de informalidade mas não há no formato mal-entendidos: é um programa de um jornal e de uma estação de TV, onde os anfitriões são dois jornalistas que fazem perguntas e avançam comentários, que conversam e discutem com os seus convidados.

Porém, quando o “Expresso da Meia-noite” decide fazer um especial para o qual quer convidar o Presidente da República e mudar de cenário para o Palácio de Belém, há coisas que deixam de ser aceitáveis.

Que o “Expresso da Meia-noite” decida fazer um especial para o qual convida o Presidente da República não é contestável. Mas que o faça impondo o seu próprio cenário (uma enorme mesa de gosto duvidoso) no coração do palácio de Belém e que exporte para aí as suas regras de conduta e a sua mediacracia é, no mínimo, de uma extrema grosseria.

Pode dizer-se que o programa, ao deslocar-se a Belém, pelo contrário, terá querido vincar a sua deferência para com a pessoa e o cargo do PR. E seria assim, de facto, se os seus pivots tivessem adoptado a compostura que o cenário exige e adaptado o formato e o cenário do programa e a sua pose à formalidade da situação e à dignidade do entrevistado – sem perder um grama da sua acutilância, como se lhes exige como jornalistas. Mas ao fazer a transplantação para Belém sem querer ceder um milímetro da sua “mise em scène” habitual - com a mesa no meio do salão de Belém, qual monólito do “2001” - o “Expresso da Meia-noite” cometeu um gesto de sobranceria inaceitável, colocando o PR num papel de convidado em sua própria casa, encurralando-o entre a pose de Estado e a permissividade a que um anfitrião está obrigado e obrigando-o de facto a aceitar um papel de insuportável sujeição.

Um jornalista existe para facilitar a livre expressão da sociedade em geral, de cada cidadão, de cada instituição democrática. Criar um tal espartilho constrangedor do debate é algo que é aceitável quando se disputa o poder, nunca quando se tenta mostrar ou explicar o mundo. A ambiguidade da situação era clara também na pose dos outros convidados, que não sabiam se estavam em Belém ou na Sic, se o PR estava ali para responder a perguntas ou para participar num debate - o que é tanto mais grave quanto é função do jornalista não só repetir o que é dito, mas dizer quem fala e dizer de que lugar se fala, identificar os lugares do poder, clarificar discursos.

Em Belém, um jornalista não pode ser senão convidado. E que um convidado se comporte com a sem-cerimónia dos pivots do “Expresso da Meia-noite”, para mais perante a formalidade dos restantes presentes, não é aceitável à luz dos mais elementares princípios de boa educação ou de ética republicana.

Que o PR se tenha prestado a este jogo é igualmente criticável – em nome do cargo que ocupa, que é de todos os portugueses – ainda que se perceba o encadeamento de circunstâncias que pode ter levado ao seu desfecho.