por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Janeiro de 2005
Crónica 1/2005
Em Belém, um jornalista não pode ser senão convidado.
A informalidade nos contactos interpessoais é importante em muitas circunstâncias. É importante porque pode permitir economia de tempo, porque pode permitir uma expressão mais livre e mais viva das opiniões e dos sentimentos e, assim, tornar um debate mais animado, uma discussão mais produtiva ou uma relação mais calorosa. É importante porque, ao reduzir os formalismos, fórmulas de intervenção e de codificação conhecidas apenas de alguns, se reduzem os obstáculos à participação e se possibilita uma maior democraticidade. Reduzir os formalismos não significa – não pode significar – acabar com as regras de convivência ou de conveniência.
Existe aqui um justo meio. Há certamente formalismos que são operativos e razoáveis e outros que são discriminativos ou mesmo opressores.
A informalidade é cultivada nas relações dos media com o público por razões de igualitarismo e equidade. Para um jornalista todos são cidadãos e, por essa razão, e para vincar essa razão, se dispensam, em geral, na escrita jornalística, tratamentos académicos ou nobiliárquicos – usados em relações mais formais, mas que, no contexto dos media, poderiam ser lidos como sinais de autoridade de alguns ou submissão de outros.
Por todas estas razões, percebe-se que, num programa de televisão como o “Expresso da Meia-noite”, os seus dois pivots se encontrem em mangas de camisa e assim recebam os seus convidados. São os anfitriões, são eles que mandam no programa, que escolhem os temas e os convidados, que dão e tiram a palavra, mas pretendem dar uma imagem de informalidade e dinamismo, pretendem que essa informalidade se transmita às palavras dos convidados, dando mais cor ao programa, que eles próprios dispam o casaco. A imagem é de informalidade mas não há no formato mal-entendidos: é um programa de um jornal e de uma estação de TV, onde os anfitriões são dois jornalistas que fazem perguntas e avançam comentários, que conversam e discutem com os seus convidados.
Porém, quando o “Expresso da Meia-noite” decide fazer um especial para o qual quer convidar o Presidente da República e mudar de cenário para o Palácio de Belém, há coisas que deixam de ser aceitáveis.
Que o “Expresso da Meia-noite” decida fazer um especial para o qual convida o Presidente da República não é contestável. Mas que o faça impondo o seu próprio cenário (uma enorme mesa de gosto duvidoso) no coração do palácio de Belém e que exporte para aí as suas regras de conduta e a sua mediacracia é, no mínimo, de uma extrema grosseria.
Pode dizer-se que o programa, ao deslocar-se a Belém, pelo contrário, terá querido vincar a sua deferência para com a pessoa e o cargo do PR. E seria assim, de facto, se os seus pivots tivessem adoptado a compostura que o cenário exige e adaptado o formato e o cenário do programa e a sua pose à formalidade da situação e à dignidade do entrevistado – sem perder um grama da sua acutilância, como se lhes exige como jornalistas. Mas ao fazer a transplantação para Belém sem querer ceder um milímetro da sua “mise em scène” habitual - com a mesa no meio do salão de Belém, qual monólito do “2001” - o “Expresso da Meia-noite” cometeu um gesto de sobranceria inaceitável, colocando o PR num papel de convidado em sua própria casa, encurralando-o entre a pose de Estado e a permissividade a que um anfitrião está obrigado e obrigando-o de facto a aceitar um papel de insuportável sujeição.
Um jornalista existe para facilitar a livre expressão da sociedade em geral, de cada cidadão, de cada instituição democrática. Criar um tal espartilho constrangedor do debate é algo que é aceitável quando se disputa o poder, nunca quando se tenta mostrar ou explicar o mundo. A ambiguidade da situação era clara também na pose dos outros convidados, que não sabiam se estavam em Belém ou na Sic, se o PR estava ali para responder a perguntas ou para participar num debate - o que é tanto mais grave quanto é função do jornalista não só repetir o que é dito, mas dizer quem fala e dizer de que lugar se fala, identificar os lugares do poder, clarificar discursos.
Em Belém, um jornalista não pode ser senão convidado. E que um convidado se comporte com a sem-cerimónia dos pivots do “Expresso da Meia-noite”, para mais perante a formalidade dos restantes presentes, não é aceitável à luz dos mais elementares princípios de boa educação ou de ética republicana.
Que o PR se tenha prestado a este jogo é igualmente criticável – em nome do cargo que ocupa, que é de todos os portugueses – ainda que se perceba o encadeamento de circunstâncias que pode ter levado ao seu desfecho.
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