terça-feira, setembro 14, 2004

Call center

Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Setembro de 2004
Crónica 32/2004

“Não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada.”

“Bom dia, fala a Sandra, em que é que lhe posso ser útil?”
“Bom dia, é da Companhia de Seguros Oriental?”
“É sim, bom dia, fala a Sandra, posso saber com tenho o prazer de estar a falar?”
“Precisava de saber a vossa morada por favor.”
“Mas posso saber com quem estou a falar?...”
“Não precisa de saber o meu nome… Só preciso de saber a vossa morada...”
“É pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“A única informação de que preciso é a vossa morada, para mandar uma carta. É uma informação pública, não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada…”
“É só pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“Isto é uma gravação?...”
“Não, eu já disse ao senhor que fala a Sandra…”
“O Hal também tinha um nome mas isso não o impedia de… Não interessa. O que lhe estou a dizer é que não precisa de saber o meu nome e mesmo que lhe diga o meu nome isso não torna o atendimento mais personalizado. Se nós tivéssemos de facto uma relação pessoal, seria razoável dizer-lhe o meu nome porque você me iria reconhecer. Como não nos conhecemos, não é o facto de eu lhe dizer o meu nome que vai personalizar a nossa relação. Além de que eu não quero personalizar a minha relação consigo e algo me diz que você também não. Percebe? O facto de me perguntar o meu nome só quer dizer que você está a olhar para um monitor onde está escrito que me deve perguntar o nome ou alguma coisa do género. O que não só não é pessoal como é até bastante impessoal e até um bocadinho desagradável….
“Eu acho que não estou a ser desagradável para o senhor… Se o senhor não quiser dizer o nome não tem de dizer o nome, mas é só para poder tratar o senhor pelo nome e se não me disser o nome não o posso tratar pelo nome…”
“É evidente que não pode…”
“É só o que eu estou a dizer ao senhor… Eu disse ao senhor o meu nome…”
“Sim eu sei. Sandra. Mas isto não é um baile de debutantes, não precisamos de nos apresentar uns aos outros antes de fazer uma pergunta.”
“…Eu acho que estou a ser correcta com o senhor… Eu estou só a perguntar ao senhor o nome do senhor porque…
“ Para o tratamento personalizado, já sei… (suspiro) José Vítor Malheiros!...”
“Bom dia senhor Zé, em que posso ajudá-lo?”
“Tem a certeza de que isto não é uma gravação? Eu…”
“ Não é uma gravação senhor Zé, eu estou a falar com o senhor a perguntar em que posso ser útil ao senhor, senhor Zé…”
“…só queria saber a vossa morada.”
“Em que localidade, senhor Zé?”
“A morada da vossa sede, Suponho que é em Lisboa, mas não sei se é.”
“Mas nós temos muitas agências e sem me dizer a cidade…”
“Lisboa!”
“Temos muitas moradas em Lisboa. Tem preferência pela rua, senhor Zé?”
“Tenho. A rua onde está a vossa sede. Quero-mandar-uma-carta!”
“Posso saber se é um assunto relativo a seguro de vida, automóvel, de acidentes pessoais…”
“Ouça, Sandra. Acho que já percebi esta questão do tratamento personalizado… Em vez de estarmos aqui a falar ao telefone porque é que não nos encontramos pessoalmente? Isso ia ser muito personalizado. Aí eu podia explicar-lhe pessoalmente porque é que quero escrever a carta, podíamos discutir a epistolografia no século XVIII e, quem sabe, com o tempo, à medida que nos fôssemos conhecendo melhor, talvez conseguisse convencê-la a dar-me a morada. Não digo no primeiro encontro porque estas coisas às vezes levam o seu tempo, mas talvez no segundo ou terceiro… O que me diz, Sandra?…
“… eu só estou a perguntar ao senhor Zé… e acho que estou a ser correcta com o senhor Zé…eu não disse ao senhor Zé que não dava a morada ao senhor Zé…”
“Claro que não disse. Aliás ainda não me disse nada. Mas o que acha do meu convite? Acha que se pode escapar amanhã para nos encontrarmos? Eu podia levar um cravo na lapela para me reconhecer… ou acha muito marcado politicamente? Uma gabardine! Posso levar uma gabardine! Já ninguém usa gabardine. Ou um chapéu de coco. Ia ser fácil reconhecer-me. Acha que podia levar a morada escrita numa folhinha de papel e, se simpatizasse comigo…”
“A morada da sede é…”

terça-feira, setembro 07, 2004

Borndiep

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2004
Crónica 31/2004


Os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos.

Regressar de um período de férias sem contactos com a realidade portuguesa para mergulhar de novo na actualidade nacional tem com frequência o sabor de um duche de água fria.

A primeira surpresa do regresso foi que o ministro Paulo Portas decidiu (invocando a segurança nacional, a defesa da ordem e a saúde pública) enviar a Marinha de Guerra impedir a entrada em águas territoriais portuguesas de um navio-clínica holandês com meia dúzia de tripulantes, que realiza abortos em águas internacionais, de acordo com a lei do país sob cuja bandeira navega. Deve registar-se como gesto imbuído de alguma racionalidade que o ministro tenha decidido não confiar apenas na Nossa Senhora de Fátima para afastar o navio das nossas costas e tenha recorrido às Forças Armadas. Só que o gesto provavelmente deve mais ao gosto do ministro pelos gestos de opereta que à sua distância do anti-racionalismo.

Que Paulo Portas e o seu partido são contra o aborto já se sabe e essa posição é, em princípio, respeitável. O que é menos respeitável é que um membro do Governo (para mais extravasando as suas funções no que respeita à jurisdição do Presidente da República) venha invocar falsos argumentos para limitar de uma forma inaceitável a liberdade de movimentos de um navio de um país da União Europeia, tripulado por elementos que não são (que se saiba, pelo menos tal não foi invocado) criminosos internacionais.

Que os argumentos invocados podem ser objecto de discussão jurídica é evidente. É claro que um país pode impedir o acesso de um navio que coloque de facto problemas de segurança ou de saúde pública. A questão neste caso, porém, não é de interpretação jurídica mas de substância política. Não é possível sustentar de forma séria que a presença do navio coloca em risco a soberania nacional ou suscita problemas de saúde pública. A ordem de Portas é uma medida autocrática, onde uma limitação das liberdades de uns quantos cidadãos europeus é ditada por razões exclusivamente ideológicas e defendida publicamente com base numa mentira popular. A prática tem seguidores notáveis, de Bush a Putin, em particular nesta era “anti-terrorista”, onde de novo os meios justificam os fins.

A questão que se coloca em relação ao “Borndiep” é simples: o navio ou algum dos seus tripulantes violou a lei portuguesa? Há razões concretas para recear que isso aconteça? Não havendo é evidente que a sua liberdade de movimentos não pode ser limitada. Dizer que o navio não violou a lei mas a contorna e que isso justifica a limitação dos direitos cívicos dos seus tripulantes é regressar aos tempos em que tudo o que não era expressamente permitido devia por uma questão de prudência ser considerado proibido.

E se é esse o argumento que dita a razão do Governo não se percebe a razão por que, usando o mesmo critério, não há-de também perseguir aqueles que conseguem pagar menos impostos através de habilidades legais para contornar as leis fiscais. O Estado de Direito não pode ser um jogo de plasticina à mercê de uma criança caprichosa e os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos. O instrumento é brutal, desproporcionado em relação à “ameaça” e o seu uso gratuito um insulto ao papel das Forças Armadas.

É tristemente significativo dos tempos que, num inquérito feito pelo PÚBLICO, cerca de 40 por cento dos respondentes tenha concordado com Portas ­(imagina-se que exaltados com os arroubos de patriotismo do prócer ou simplesmente discordantes das práticas do navio holandês). Os argumentos nacionalistas colhem sempre um apoio desproporcionado em relação à sua verdade, sensatez ou bondade e Portas é pródigo na sua aspersão. Seria bom que eles fossem sistematicamente desmontados desde a sua origem pela oposição. Os atentados à liberdade e os atropelos à lei, principalmente quando são feitos apelando ao patriotismo (e mesmo quando são discursos de opereta em voz de falsete), não podem ser acolhidos com um encolher de ombros displicente. A história está cheia de palhaços trágicos que gostavam de puxar da pistola.