por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Abril de 2009
Crónica 13/2009
Seria um erro pensar que a recente febre de transparência compensa por si os desvios totalitários da anterior presidência
Nas últimas semanas, os americanos redescobriram que a Administração Bush autorizou o uso da tortura nos interrogatórios de prisioneiros suspeitos de pertencer a redes terroristas. Os americanos redescobriram também que a mesma Administração, através do próprio Presidente e do vice-presidente Dick Cheney, suspendeu princípios básicos do direito, como a presunção de inocência, e retirou àqueles mesmos prisioneiros o direito de defesa e o direito a um julgamento justo, além de os submeter a outros atropelos, como mantê-los em prisões secretas, de localização desconhecida para os próprios e seus familiares, de forma não só a poder negar a sua existência mas também numa tentativa algo infantil de os subtrair à protecção conferida pela lei americana ("Lei americana? Mas eles não estão numa prisão americana!")
Os americanos redescobriram tudo isto, porque há anos que já sabiam tudo isto. Os mais distraídos já o sabiam pelo menos há cinco anos. E os mais atentos já o sabiam desde o final de 2002 - através de relatos publicados na primeira página dos grandes jornais nacionais.
A imprensa americana tem coberto nos últimos anos, com apreciável profundidade, a vergonha das prisões secretas, das transferências ilegais de prisioneiros (os "voos da CIA") através de países com governos de escrúpulos flexíveis (como Portugal), da tortura que George W. Bush baptizou com o eufemismo "conjunto de procedimentos alternativos de interrogatório", num discurso famoso em 2006, e que outros chamaram "métodos reforçados" e coisas semelhantes.
É um mérito da democracia americana que tudo isto esteja a ser revisitado, que investigações estejam a ser levadas a cabo e os seus resultados publicados, que a imprensa esteja a aprofundar os dossiers, que muitos documentos estejam a ser desclassificados para poderem ser apreciados pelos cidadãos - americanos e do resto do mundo - que se viram involuntariamente envolvidos nesta vergonhosa operação. Como é um mérito do Presidente Obama o seu empenho em investigar e esclarecer este período negro da História americana - apesar do seu declarado empenho em que os Estados Unidos saibam "olhar para a frente", em vez de "olhar para trás".
É também um mérito do sistema que alguns congressistas considerem a criação de uma comissão "Verdade e Reconciliação" em nome do apuramento dos factos - independentemente das críticas que a sua proposta de amplas amnistias suscitou. E é também um inegável mérito da democracia americana que haja quem defenda a responsabilização criminal e o julgamento de todos aqueles que parecem ser culpados de crimes de guerra ou de promoção da tortura e do tratamento desumano de prisioneiros - com a sinistra figura de Dick Cheney à cabeça.
Quando se mencionam os horrores levados a cabo pela Administração Bush-Cheney em nome da "Guerra contra o Terror" e se listam os atentados conscientemente praticados por esta contra a liberdade, contra a democracia, contra o direito, há sempre quem sublinhe a vitalidade de uma democracia que permite que estes podres sejam, apesar de tudo, investigados e submetidos ao escrutínio do povo. Reconheço, sem qualquer reserva mental, essa vitalidade.
Seria, porém, um grave erro considerar que, de alguma forma, esta vitalidade democrática e esta recente febre de transparência e responsabilização compensam os desvios totalitários da anterior presidência americana, como se Obama compensasse Bush, como se a simples existência do primeiro resgatasse os crimes do segundo e pudéssemos ir dormir de novo descansados, depois deste jogo de soma zero. As vítimas de Bush - que são, antes de mais, os cidadãos americanos - merecem mais. Merecem justiça.
A vitalidade democrática do povo americano só será comprovada - e a sua democracia reavivada - se as investigações prosseguirem de forma independente, forem levadas até ao fim e se forem responsabilizados os culpados. A começar por cima, pelos que deram as ordens, pelos que mudaram clandestinamente as leis para que a tortura se tornasse admissível. Jornalista (jvm@publico.pt)
Mostrar mensagens com a etiqueta Tortura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Tortura. Mostrar todas as mensagens
terça-feira, abril 28, 2009
terça-feira, maio 22, 2001
Serviços Especiais
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.
Subscrever:
Mensagens (Atom)