por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Janeiro de 2013
Crónica 2/2013
O FMI não é apenas um credor de Portugal. É também uma potência ocupante do país.
O relatório é mau. Carlos Moedas achou-o “muito bem feito”. Pedro Passos Coelho achou-o também “muito bem feito”, tal como tinha feito o “seu” secretário de Estado (algumas testemunhas dizem que os olhos de Moedas se cobriram de uma névoa enternecida quando o primeiro-ministro lhe chamou “meu”). António Lobo Xavier achou-o de “enorme utilidade”, "bastante comedido e bastante equilibrado". Mas todos sabemos o que isso quer dizer. Quer dizer, apenas, que o relatório diz o que eles queriam dizer e lhes dá o pretexto de dizer com menos risco do que se o dissessem sem esta camada protectora.
O relatório é mau porque tem erros de facto, que têm sido apontados por vários especialistas, o que é lamentável, mas é mau principalmente porque escamoteia os dados que não servem as conclusões onde o FMI quer chegar e porque toma como verdades inquestionáveis os seus próprios preconceitos. É “desonesto”, como disse o reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa. “É uma aldrabice”, como disse o socialista António Costa. Um relatório que se pretende sério deveria ter um particular escrúpulo na escolha e na validação dos dados onde baseia as suas propostas. Deveria ter procurado diversificar as suas fontes, contactando organizações diversas. Os seus dados deveriam ser inquestionáveis ou pelo menos aceitáveis, ainda que as propostas fossem polémicas. Mas o FMI sabia que, neste caso, não valia a pena o esforço. O que o Governo pretendia quando encomendou este estudo não era um documento com um mínimo de qualidade técnica, mas um documento ideológico que defendesse a destruição do Estado com uma sobrecapa que dissesse FMI. O FMI não deverá ter levantado qualquer objecção. Imagino o técnico do FMI que recebeu a encomenda de Pedro Passos Coelho (“Oxalá todos os Governos nos pedissem isto!” pensou).
Foi por isso que tiveram o escrupuloso cuidado de não contactar alguém que pudesse pôr em causa os seus dados, os seus preconceitos, as suas conclusões.
Sabem a anedota onde se pergunta a um engenheiro, a um matemático e a um gestor quanto é dois mais dois? O engenheiro diz “Quatro.”, o matemático pergunta “Em que base?” e o gestor pede uns dias para pensar, regressa passado uma semana e pergunta “A que resultado é que queriam chegar?”. O FMI e o Governo são os gestores da anedota. São os batoteiros do jogo.
Que o relatório não é sério, já sabemos. Que foi encomendado pelo Governo com uma conclusão prévia, já sabemos. Que o FMI diz ter como exclusiva preocupação a estabilidade financeira mas que é, de facto, uma organização ponta-de-lança do neoliberalismo desenfreado, já sabemos (é verdade que nem todos os economistas do FMI são fanáticos de direita, mas não são eles que definem a estratégia da organização, da mesma forma que a inscrição de Heidegger no Partido Nazi não o transformou num clube de reflexão filosófica). Que as receitas preconizadas pelo FMI defendem a finança e destroem as pessoas, já sabemos. Que o FMI acha a democracia uma praga social a erradicar, já sabemos. Que a maioria das medidas preconizadas no documento já tinham sido avançadas pelos lacaios mais servis do capital da nossa praça (peço desculpa pelo cliché, mas estou a tentar ser rigoroso), já sabemos. Apesar disso, há imensa gente à direita a dizer que não se deve perder esta oportunidade de “discutir” o Estado e as suas funções como se houvesse algo para discutir e como se este documento não estivesse envenenado pela sua génese política e pelo processo da sua produção.
Este documento, muito para além dos erros técnicos que possa conter (que Lobo Xavier considera “detalhes” e que o inefável Ferreira Machado, director da escola de negócios da Nova, considera irrelevantes) possui o pequeno problema de ter sido produzido por uma entidade que é não apenas parte interessada (um dos principais credores de Portugal) como uma potência ocupante do país.
Portugal está a ser não apenas objecto de uma intervenção mas de uma ocupação, por parte de uma entidade colectiva que, sob o pretexto da insolvência do Estado português, sequestrou o Estado democrático e procede à pilhagem sistemática das riquezas das populações, com a conivência entusiástica do PSD e a conivência recalcitrante do CDS.
Trata-se de dois partidos que, numa situação de emergência nacional, de dependência extrema dos credores internacionais, decidiram nem sequer tentar defender os interesses nacionais - em Portugal, na União Europeia ou noutros fóruns - e alinharam de armas e bagagens do lado do ocupante, colocando acima de tudo a satisfação das exigências desse ocupante, acima da lei e dos direitos, mesmo que para tal fosse necessário sacrificar a vida das populações, os serviços públicos construídos nas últimas décadas e a própria democracia. Chama-se a isto colaboracionismo.
O PSD e o CDS são colaboracionistas activos, ao serviço da execução da política da potência ocupante e da liquidação do Estado português. (jvmalheiros@gmail.com)
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