terça-feira, outubro 23, 2012

Um problema de torneiras

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Outubro de 2012
Crónica 42/2012


A renegociação da dívida poderá ser feita em redondilha maior ou menor, mas é inevitável e desejável

1. Temos uma dívida pública superior ao produto nacional. Segundo a troika, a dívida será de 124 por cento do PIB em 2013 - e isto, sublinha-se, diz apenas respeito à dívida pública.
As taxas a que temos de pagar este dinheiro parecem estar actualmente a rondar os cinco por cento ao ano. Na realidade, é difícil saber exactamente. Cada fatia de financiamento vem com uma taxa diferente e cada uma delas ainda se divide por vários credores e depois há renegociações e trocas de títulos... Mesmo os especialistas têm dificuldade para encontrar os dados nas páginas oficiais, porque o Governo, tão lesto a meter-nos a mão no bolso e a tirar o pão da boca das crianças que desmaiam nas escolas, é avaro a fornecer informação.
Quanto à riqueza que produzimos ela está não a aumentar, mas a encolher. Este ano deve encolher 3 por cento. E para o ano não se espera nada melhor - a não ser que se acredite nos números do Orçamento de 2013, o que parece não ser o caso de nenhuma pessoa com os dois hemisférios cerebrais em comunicação.
O que temos é pois um problema de torneiras. Temos dois tanques com água: o tanque A tem 124 litros de água e uma torneira que despeja lá para dentro 5 litros de água por hora. O tanque B tem 100 litros de água e um ralo por onde se escoam 3 litros de água por hora. Vítor Gaspar jura-nos que, se esperarmos tempo suficiente, o tanque A vai ficar vazio e o tanque B vai ficar cheio. E, perante as expressões de dúvida à sua volta, lembra-nos que o país fez um enorme investimento na sua educação. É o argumento de autoridade (“Que raio! Se ele é assim tão caro deve ser mesmo bom!”). Não é sofisticado, mas é eficaz. Talvez o tanque encha, talvez o outro se esvazie. Talvez ele faça milagres. Talvez faça prestidigitação. Não pode ser um aldrabão de feira ou um louco, um homem com uma educação tão cara!
É claro que, em rigor, mesmo com estes números, não é impossível pagar a dívida. Temos é de vender umas coisinhas. E há muito para vender. Podem vender-se as empresas públicas todas. Como muitas são monopólios naturais, os compradores levam como brinde uma clientela cativa. Pode vender-se o litoral para empreendimentos turísticos. Podem vender-se reservas naturais. Podem vender-se palácios e igrejas. Mas atenção: não convém pagar tudo demasiado depressa. Os credores vivem da dívida. Se não tivessem devedores como viveriam os pobres diabos? Somos a galinha dos ovos de ouro. E eles não querem empresas, que dão trabalho. Querem dinheiro.
Claro que, mais cedo ou mais tarde, a dívida vai ter de ser renegociada. Mas o Governo quer que seja o mais tarde possível. Só quando a gansa já não conseguir pôr ovos. Até lá...
A renegociação da dívida poderá ser feita em redondilha maior ou menor, mas é inevitável e desejável. E a melhor maneira de lhe dar início seria declarar uma moratória aos juros da dívida. Juros agiotas, excessivos, criminosos, imorais. Seriam necessários sacrifícios, mas seriam sacrifícios que o país compreenderia.

2. A cada dia que passa, a teoria radical, esquerdista, anarquista, comunista, bombista, terrorista e cataclista (espuma ao canto da boca) da renegociação da dívida ganha mais adeptos. (Claro que não Pedro Passos Coelho, que se licenciou em economia na Universidade Lusíada e que estudou afincadamente economia técnica, que é algo semelhante ao inglês técnico mas em cadernos quadriculados).
Desta vez foi Miguel Cadilhe, que defendeu uma renegociação da dívida mas não a renegociação radical-esquerdista-anarquista-comunista-bombista-terrorista-e-cataclista (espuma ao canto da boca). Nada disso. Cadilhe defendeu na Fundação de Serralves a renegociação, mas uma “renegociação honrada”. Antes de mais, o facto de ter sido numa conferência na Fundação de Serralves faz toda a diferença. Há quem defenda a renegociação em discursos na rua ou na Aula Magna, o que é sinal de esquerdismo. Mas uma renegociação honrada defendida em Serralves é outra coisa. Para benefício dos menos versados em questões financeiras, explico que a “renegociação honrada da dívida” está para a “renegociação da dívida” como “fazer amor à merceeiro” está para “fazer amor”. É exactamente a mesma coisa, mas com um lápis na orelha.

3. A grande diferença entre este Governo e os outros é que os outros (mesmo os piores) queriam ser reeleitos. Este não se preocupa com as eleições. Que se lixem as eleições. O que este Governo quer é a pilhagem do Estado e dos cidadãos. Ser Governo de novo? Para quê, quando há tantas empresas agradecidas onde se pode arranjar emprego logo ao fim de quatro anos? A política está bem durante uns anos mas só os tansos é que lá ficam. Para facturar a sério é na bolsa, na banca, nos off-shores. Alguém acha que Vítor Gaspar vai ficar na política, a ganhar só o ordenado de ministro ou deputado, para pagar o investimento que o país fez nele? Vai uma aposta? (jvmalheiros@gmail.com)

1 comentário:

Anónimo disse...

http://www.dinheirovivo.pt/Economia/Artigo/CIECO067230.html

Regras de três simples aplicadas à notícia de cima:

Nunca ninguém diz quanto é o PIB... Mas se 7200 milhões de euros são 4,4%, supõe-se que seja de 163,6 mil milhões.

Se a dívida constitui pouco mais ou menos, por conveniência, 120% do PIB, será portanto de 196,32 mil milhões de euros. Assim, aqueles 7200 milhões de «juros e outros encargos» correspondem a uma TANB (?) de 3,6667%.

Mas imaginemos que o Estado pagava por exemplo uma TANB de 1,0590% (Euribor a 3 meses mais spread 0,4). Esse valor baixava mais de cinco mil milhões de euros, para 2,07 mil milhões...