por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Janeiro de 2012
Crónica 5/2012
Na prática, um "comissário do orçamento” é uma coisa muito parecida com um governador colonial
Um diplomata europeu citado por The Economist considerava há dias que o novo pacto orçamental que a Alemanha quer impor aos países do Eurogrupo consistia em assinar “um tratado que torna o keynesianismo ilegal".
Já há muitos anos que os países mais ricos da União Europeia têm vindo a impor aos seus confrades (com maior ou menor diplomacia, com mais ou menor oposição, com maior ou menor publicidade, com maior ou menos compreensão por parte dos cidadãos europeus) medidas que tornam uma política de esquerda ilegal ou impraticável, dificultando de todas as formas possíveis, em nome da defesa do mercado e da livre concorrência, intervenções dos Estados na economia que permitiriam regular determinados sectores e evitar o agravamento de desigualdades na sociedade. Pode-se dizer que todas estas medidas foram adoptadas devido a um consenso - que envolveu tanto Governos de direita como Governos auto-intitulados sociais-democratas - em torno do pensamento neoliberal, que prometeu o bem-estar como resultado mágico do mercado livre. Pode-se dizer que todas estas medidas foram adoptadas em Conselhos Europeus constituídos por Governos democraticamente eleitos. No entanto, o facto persiste que, para levar a cabo uma política minimamente de esquerda num qualquer país da UE, passou a ser necessário não só um Governo maioritário no país em questão como a determinação de combater milímetro a milímetro uma Comissão Europeia e um Conselho Europeu armados de toda a espécie de determinações neoliberais plasmadas em tratados e normas.
Agora, a Alemanha quer tornar ilegal – para já na Grécia, mas é evidente que o país que se segue é Portugal e depois seguir-se-ão outros – o exercício da soberania nacional nos países endividados. Um país com dívidas não tem direito a tomar decisões sobre a sua política interna. Claro que a proposta de Berlim diz apenas respeito às decisões que possam pôr em causa os objectivos financeiros e o pagamento das dívidas - o "comissário do orçamento” nomeado pelo Eurogrupo para a Grécia deveria ter apenas o poder de vetar as decisões do Governo grego com incidência orçamental. Só que é difícil imaginar que medidas governamentais se podem considerar sem impacto orçamental. Na prática, o "comissário do orçamento” seria a coisa mais parecida com um governador colonial, garantindo que os direitos da “metrópole” (leia-se dos credores) se sobreporiam em todas as circunstâncias aos direitos das populações locais. É uma colonização à distância, um telecolonialismo, uma ocupação financeira.
O secretário-geral do PS português considerou que a proposta alemã ofende princípios básicos de soberania e "a própria dignidade dos povos". Tem razão. Mas a proposta vem na sequência de outras atitudes do mesmo tipo - lembram-se da proposta do comissário alemão Gunther Oettinger de pôr a meia-haste nos edifícios europeus as bandeiras dos países endividados?
O presidente do Eurogrupo, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, discordou da ideia do "comissário do orçamento”. Mas há chefes de Governo a quem a proposta pareceu interessante. E, mesmo que não seja adoptada por agora (à hora que escrevo não se conhece a decisão da cimeira europeia) ela está no ar do tempo. O trágico é que a União Europeia não só parece ter abandonado toda a ideia de solidariedade e de coesão, toda a ideia de igualdade entre os Estados, como os seus membros mais ricos parecem empenhados na submissão dos mais pobres e na sua exploração através do mecanismo da dívida. A ideia da Europa nunca pareceu tão longínqua.
2. O desemprego acabou por conquistar direito de cidade na cimeira europeia e, em geral, nos debates sobre a crise financeira. Lentamente, a realidade da economia e a praga do desemprego acabou por conseguir ganhar um espaço no discurso, entre o pagamento imperativo da dívida, a inevitabilidade da austeridade, a necessidade de privatizar, a conveniência de reduzir os apoios sociais, o corte de gorduras do Estado. Foi preciso o número de desempregados na UE chegar a 23 milhões (5,3 milhões de desempregados só em Espanha) para o tema se tornar importante. Mas é interessante ver como o tema aparece no discurso dos políticos e nas notícias de política e economia. O desemprego é considerado como preocupante porque afecta as empresas (o retalho sofre) ou porque o elevado número de desempregados (principalmente de jovens desempregados, principalmente de jovens desempregados qualificados) faz recear tumultos generalizados ou mesmo... uma “Primavera europeia”, exigindo não só empregos como democracia.
É pasmoso que o discurso político esteja cheio de preocupação com o desemprego devido aos seus efeitos na economia (ou seja, nas empresas) e não devido ao seu efeito nos próprios desempregados e nas suas famílias, devido ao sofrimento físico e moral que ele lhes causa, devido à miséria a que as famílias são condenadas pelo desemprego, devido à perda de auto-estima e ao desespero a que os desempregados são condenados, à destruição das suas condições de vida, da sua saúde, da sua educação, da sua participação cívica.
O trabalho não é apenas - nem sequer acima de tudo - uma necessidade para a economia. É uma necessidade para as pessoas, para a sua dignidade, para a sua relação com os outros e com a sociedade em geral. É triste constatar que tantos políticos se esqueceram disso. De que mais se terão esquecido? (jvmalheiros@gmail.com)