por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Dezembro de 2011
Crónica 52/2011
Passos Coelho diz que, em 2012, vamos assistir a uma “democratização da economia”. E se alguém lhe perguntasse o que quer isso dizer?
Quando eu era pequeno, era imperativo comer 12 passas de uva na passagem do Ano.
Só que as coisas não eram assim tão fáceis, porque era preciso comer as 12 passas ao mesmo tempo que batiam as doze badaladas da meia-noite e não era fácil arranjar maneira de ouvir as doze badaladas. Acabávamos sempre por ter de encaixar as doze passas e as doze badaladas mentais nos dez segundos que os locutores da televisão e da rádio anunciavam em voz alta.
Mas a dificuldade não se ficava por aqui. Também era preciso pensar num desejo por cada passa, o que tornava a operação um sprint mental infernal. Isto limitava de forma radical os desejos. Não podíamos ter um desejo que levasse mais de um segundo a enunciar mentalmente, mas havia a possibilidade de convocar o desejo sob forma de imagem, em formato JPEG (ainda que na altura não se dissesse assim). Tínhamos de ter doze desejos curtinhos preparados, em fila indiana, para os fazer desfilar no ecrã da mente à medida que íamos comendo as passas. Os desejos não se podiam dizer a ninguém, nem escrever, porque tinham de ser mantidos secretos, o que conferia à operação um risco acrescido. Naturalmente que um desejo não expresso não se iria realizar no ano seguinte e, por isso, para reduzir o risco de esquecimento, era prudente começar pelos mais importantes e deixar os secundários para o fim. Mas se tudo o que tivéssemos de fazer fosse alinhar doze desejos em fila, com os mais altos à frente e os mais baixinhos atrás, e dizê-los por ordem sem perder mais de 12 segundos no total, seria tudo muito fácil. Ao mesmo tempo, era preciso garantir que se comia uma, mas não mais de uma, passa de cada vez, o que não era fácil porque elas se colavam umas às outras. Quando chegávamos ao desejo 10 e víamos que só nos restava uma passa era preciso pensar depressa. Ou se tinham comido duas passas com um desejo anterior, o que significava que estávamos atrasados um desejo e era preciso invocá-lo depressa e saltar para o 12º, ou significava que o nosso pacotinho de passas só continha 11 passas. Neste caso tínhamos de tirar uma passa extra da tacinha da passas, mas era preciso ter a certeza absoluta que não tínhamos mesmo comido duas passas de uma só vez porque, se tivesse sido esse o caso, isso queria dizer que estaríamos a comer 13 passas na passagem do ano, número aziago que punha em causa a realização não de um, mas de todos os desejos. Era preciso pensar depressa, pesar os riscos da não realização do 12º desejo (por falta de passa) com o risco de um ano de azares (por passa a mais) e decidir num ápice.
A contagem e embalagem das passas em pacotinhos de papel de seda de cores diferentes era, por esta razão, uma operação delicada, que o meu pai levava a cabo com minúcia e que tinha de ser depois verificada pela minha mãe, que recontava tudo e verificava que havia um pacotinho de passas para cada conviva.
Com o correr dos anos comecei a descurar a disciplina do ritual e na minha adolescência marcava a minha rebeldia engolindo o monte de passas de uma só vez e exprimindo um só desejo para o ano seguinte.
Hoje em dia, continuo a seguir o ritual mas de forma descontraída: ponho as passas numa taça e quem quiser comer que coma, quem quiser contar que conte, quem quiser desejar que deseje. Mas já pensei se as desgraças dos últimos anos não terão algo a ver com os desejos não satisfeitos que eu terei provocado com o meu método iconoclasta. E se as superstições tivessem mesmo a sua razão de ser? Isso podia explicar o subprime, a crise da dívida soberana, Putin, a Goldman Sachs, Passos Coelho.
Por isso pensei que este ano, só para experimentar, podíamos todos exprimir um desejo comum para 2012, só para ver se obrigamos as coisas a mudar no bom sentido. Como é uma experiência, podemos começar por uma coisa positiva mas simplezinha, para não sobrecarregar os lares, as parcas ou seja qual for a entidade que trata disso. Lembrei-me que podíamos desejar, por exemplo, que, quando o primeiro-ministro fala de “democratização da economia”, como falou na sua mensagem de Natal, os comentadores políticos e os portugueses em geral lhe explicassem que democracia quer dizer “poder do povo” e lhe dissessem que não querem continuar a assistir à prostituição desta e de outras palavras, cuja história contém mais nobreza do que o primeiro-ministro pode imaginar. Que democratizar a economia quereria dizer, se houvesse sinceridade nas suas palavras, recuperar para a democracia o poder que o sistema financeiro sem rosto e sem lei roubou aos cidadãos, concentrando nas mãos de alguns poucos as riquezas do globo. Que lhe dissessem que, se quer democratizar a economia, deve ter um plano para isso, contrariando tudo o que disse e fez até agora, e que temos todos curiosidade em ouvir esse plano.
Podíamos ainda desejar que os jornalistas deixassem de servir de pés de microfone e interpelassem os políticos quando eles prometem coisas como “democratizar a economia”. E que continuassem a perguntar até ter respostas. E que pedissem explicações para as contradições que encontrassem nas respostas. E que deixassem de tratar a propaganda do Governo como factos e as propostas das restantes forças políticas como inexistentes.
São desejos pequeninos, mas seriam um bom sinal.
Eu, pelo sim, pelo não, este ano vou voltar a fazer pacotinhos de uvas. Nunca se sabe e mal não faz. E pôr uma vela a Santo António. Santo António era alguém respeitável. Alguém de quem não sentiríamos vergonha se nos dirigisse uma mensagem de Natal.
Desejo a todos nós um ano onde tudo aconteça precisamente ao contrário daquilo que espera o Governo. (jvmalheiros@gmail.com)