terça-feira, abril 26, 2005

Relatividade

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 26 de Abril de 2005
Crónica 13/2005

As verdades reveladas são instrumento de todas as opressões.

Os católicos mais optimistas acreditam que a graça de Deus inunda os papas no momento em que estes são ungidos, isentando-os de todos os pensamentos, palavras, sentimentos e actos erróneos que tenham cometido e de todas as imperfeições que tenham exibido até aí, numa espécie de novo baptismo que os redime e lhes confere a sageza que os seus actos até então não tinham revelado.

E isso que explica o sorriso de êxtase com que católicos habitualmente razoáveis conseguem comentar a cooptação do novo papa Bento XVI de entre o colégio cardinalício, e manifestar esperança no seu pontificado. Esperam que o Espírito Santo, pela vias que costuma usar e cuja compreensão está vedada à razão, transforme o antigo chefe de polícia da Igreja Católica num pastor cristão.

A primeira mensagem substantiva do novo papa (transmitida, é verdade, antes da sua entronização) centrou-se na necessidade dos católicos evitarem a ditadura do relativismo moral que caracterizaria a sociedade moderna.

A frase caiu bem, foi citada e entendeu-se que vai ser um dos princípios centrais do novo pontificado – ainda que envolta em declarações pró-ecuménicas e pelo diálogo inter-religioso.
Como acontece com outras, a expressão "relativismo moral" pode ter a mais honesta das aplicações e a mais desonesta. A expressão visa condenar aquilo que se considera duplicidade de critérios, desonestidade intelectual ou tibieza moral. E emprega-se para afirmar uma ortodoxia relativamente a desvios – é a arma dos rectos e a máscara dos fanáticos. Todas as dúvidas, as discussões, as aberturas e as concessões podem ser criticadas como "relativismo moral". A luta contra o relativismo moral afirma uma verdade, uma certeza: a de quem a proclama.

É evidente que há valores que devemos afirmar como universais e defender sem tibieza – a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de expressão, a recusa do terrorismo – mas essa afirmação não pode ser uma defesa do fanatismo. E isto porque os valores que pretendemos defender dessa forma universal têm de ser escolhidos, o que significa debatê-los de forma democrática. As verdades reveladas e não discutidas são instrumento de todas as opressões.

Não pode haver um valor que se imponha aos outros, pois considerar isso seria aceitar o sacrifício de todos os outros. As páginas negras da História foram escritas em nome de princípios que se pretendiam superiores a todos os outros. Cada sociedade e cada ser humano tem de fazer uma escolha, um debate difícil consigo e com os outros, para em cada momento fazer escolhas, equilibrar os vários valores e tentar produzir o maior bem e causar o menor mal.

Quando alguém como Ratzinger chama a atenção para o "relativismo moral" da sociedade moderna mas, ao mesmo tempo afirma que "não há salvação fora da Igreja Católica" (como continua a ser arrepiante a ressonância desta expressão com as da ortodoxia comunista que sustentava o Gulag) ou condena o aborto em nome da defesa da vida mas se mostra compreensivo para com a pena de morte, compreendemos que os "valores morais universais e absolutos" que defende são apenas a supremacia das posições do Vaticano sobre todas as outras, com as variantes regionais e temporais que este entenda defender.

O Vaticano não possui qualquer autoridade para falar de "relativismo moral", pois essa é a sua moeda corrente. Um dos domínios onde isso é gritante – e só não vê quem não quer ver – é a questão dos direitos das mulheres no seio da Igreja. A Igreja não pode considerar que o mais alto papel a que uma mulher pode aspirar é lavar os pés do Papa e falar de duplicidade de critérios.

Como não pode abençoar torcionários e autores de massacres e falar do direito à vida, ou amordaçar as opiniões divergentes no seu seio e falar dos direitos humanos. Ou condenar milhões de africanos a morrer de sida ameaçando-os com o inferno se usarem o preservativo e falar da piedade, do perdão e do amor de Cristo.

É indubitável que a Igreja Católica (talvez por milagre) continua a ter um papel meritório nalgumas áreas da sociedade. Mas a mensagem de Cristo é cada vez mais um passageiro clandestino desta Igreja.

terça-feira, abril 19, 2005

Mandatos a prazo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Abril de 2005
Crónica 12/2005

Um prazo de validade não pode ser um substituto da aplicação da lei

A limitação de mandatos dos detentores de cargos políticos tem uma base racional. Por um lado, ela visa um objectivo que se pode qualificar como da ordem da gestão: a limitação de mandatos leva a uma maior rotação dos dirigentes políticos, o que permite o acesso a esses lugares de caras novas, que se espera que possuam visões mais frescas dos problemas, novas ideias para a sua resolução, novas estratégias e propostas. No mínimo, essa renovação quebra a rotina e obriga a repensar as práticas instaladas, o que não pode deixar de ser positivo, além de que todos gostamos de acreditar que o estímulo de novos desafios pode trazer à tona o que de melhor há nas pessoas.

Por outro lado, a limitação dos mandatos visa objectivos que são especificamente da ordem do político: ela visa impedir a eternização no poder de pessoas e grupos que podem acabar por dominar o aparelho de Estado (mesmo sem atropelos evidentes da lei) e tornar difícil ou impossível a alternância democrática.

No limite, a limitação de mandatos pretende ser uma última válvula de segurança para impedir catástrofes de abuso de poder. Um dirigente corrupto, que abuse do poder em benefício próprio, que esbulhe o património da comunidade, que se ria das leis, mesmo que consiga instaurar um clima de compadrio e intimidação que o reeleja sistematicamente e que consiga fugir sempre às teias da lei, pode desta forma ser afastado da cadeira, sem dramas e sem sangue. É a última alternativa caso as coisas corram mesmo mal.

Claro que a limitação de mandatos tem as suas próprias limitações. Uma delas é que ela apenas diz respeito a indivíduos (quando sabemos que a corrupção vive em bandos) e não impede habilidades como o recurso a um mandato intercalar a cargo de um cunhado acomodatício. No entanto, o espírito de uma lei de limitação de mandatos é claro e poderia ter uma função pedagógica.

Outros problemas prendem-se com o âmbito de uma medida desta ordem, que deveria limitar-se aos autarcas e dirigentes regionais - pois são estes que se encontram em posição de influenciar indevidamente o voto dos seus concidadãos de forma a eternizar-se no poder – mas que o receio de ofender as bases partidárias fez alargar também aos primeiros-ministros.

Quanto ao problema da suposta retroactividade ele não existe, pois a lei não pode nem vai sancionar (proibindo ou autorizando) práticas anteriores à sua publicação, mas apenas define prazos cuja contagem se inicia antes da sua publicação. Basta que se permita aos autarcas “fora de prazo” completar os mandatos para que foram eleitos.

O principal problema da limitação de mandatos é que ela parece estar a ser proposta não como uma última válvula de segurança para casos extremos mas sim como uma forma cómoda de os partidos se verem livres das suas figuras mais embaraçosas sem o ónus público (e interno) de uma expulsão, um escândalo político ou um inquérito policial.

A questão é que um critério automático como um prazo de validade para os políticos não pode ser um substituto da aplicação da lei.

Um partido não pode imaginar resolver o problema da corrupção nas autarquias ou do défice democrático na Madeira dizendo a si mesmo e aos cidadãos que pelo menos os protagonistas vão mudar de doze em doze anos. A ideia não é que um dirigente corrupto apenas roube durante três mandatos – é que não o possa fazer de todo e, se o fizer, que seja perseguido pela justiça. De outra forma, a limitação de mandatos transformar-se-á apenas numa forma de garantir uma maior rotação de dirigentes corruptos num mesmo lugar. A dança das cadeiras só é melhor que o Parque Jurássico se se conseguir melhorar a qualidade dos dirigentes políticos e isso faz-se com auditorias, transparência e com a aplicação da lei.

terça-feira, abril 12, 2005

Igual para todos?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Abril de 2005
Crónica 11/2005

Que a vida das pessoas está sujeita aos mais mirabolantes acidentes do destino já o sabemos, apesar das ilusões de controlo que a vida moderna nos permite.

Todos sabemos que a vida muda, que as desgraças acontecem, que o futuro é incerto, que a segurança é ilusória, etc. Essas inflexões da vida que foram durante gerações a matéria-prima dos romancistas podem ser devidas à pura sorte ou falta dela (um objecto que se perde, uma pessoa que se encontra, uma coincidência fortuita de factores), à nossa vontade ou a um conjunto de vontades de outrem que se impõe aos fados. O que é mais difícil de aceitar é que um sistema racionalmente concebido para produzir justiça e equidade, mantido pela comunidade em nome desses princípios e accionado por pessoas que não deviam ter outras motivações possa ser gerador das maiores injustiças.

Vem isto a propósito do caso de um inválido, acamado, ligado a um respirador e sem meios de subsistência que o Tribunal de Olhão condenou a uma pena de prisão de 30 dias por não ter pago uma multa de 60 euros (que, com juros, passou a somar 135 euros).

A história pertence ao rol daquelas que muitos juízes, com enorme desfaçatez, nos costumam dizem que não existem: uma pena de prisão por dívidas.

Mas a história é edificante pelo que revela sobre a iniquidade do funcionamento do sistema judicial, da cultura dos juízes e do funcionamento da polícia. Iniquidade é o adjectivo adequado para qualificar um sistema que sistematicamente condena os mais fracos para manifestar a maior compreensão perante os poderosos e que equilibra o rigor da justiça que impõe a uns com a magnanimidade que manifesta em relação a outros.

A história de Joaquim Seco, inválido, ex-comerciante de velharias, começa num dia em que fez uma fogueira sem autorização. A fogueira foi feita com os devidos cuidados e não apresentava perigo de incêndio, mas a GNR decidiu mesmo assim aplicar a lei com rigor e autuar o homem nos tais 60 euros. Tudo seria aceitável, se a GNR decidisse sempre aplicar a lei com esta implacabilidade, mas todos sabemos como as coisas se passam. Fosse Seco um homem desempenado e bem vestido com um belo carro estacionado em cima do passeio que a atitude da polícia seria bem mais compreensiva — vemo-lo todos os dias à frente dos olhos. Depois, seguiu-se o processo e a decisão do tribunal de não aceitar um pagamento da multa em mais do que duas prestações (Seco propunha pagar em três ou quatro prestações) porque isso “descaracterizaria a pena”. Fosse Seco um dirigente de um clube de futebol que o tribunal não veria qualquer inconveniente no pagamento da multa em quantas prestações quisesse, mas Seco era apenas um ferrovelho indigente e por isso seguiu-se uma penhora, uma acusação de desobediência que o acusado não sabe a que se deve e a pena de prisão final.

Este processo (que chegou aos jornais, mas muitos destes não chegam) revela a podridão a que o sistema de justiça chegou. Que o Estado gaste milhares de euros para perseguir um pobre homem que nada fez para prejudicar qualquer outro, que não causou prejuízos a nada nem ninguém (no contexto deste processo, esclareça-se) e que acabe por lhe impor uma pena cruel, desumana e absolutamente desproporcionada face ao crime é abjecto. Que esse mesmo sistema de justiça, paralelamente e diariamente, feche os olhos ou manifeste perante outros crimes e infracções compreensão e magnanimidade, revela a iniquidade do sistema e a sua violenta falta de democracia. A justiça sem magnanimidade é um aborto, mas essa magnanimidade tem de ser ministrada ela própria com justiça, com equidade, com critérios aplicados a todos os cidadãos por igual.

Quando existe vontade de arrepiar caminho, certos erros podem ser úteis e pedagógicos. Esperemos que o triste caso de Joaquim Seco, que nos envergonha e devia envergonhar antes de mais o sistema judicial, possa ser um deles.