por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Abril de 2005
Crónica 11/2005
Que a vida das pessoas está sujeita aos mais mirabolantes acidentes do destino já o sabemos, apesar das ilusões de controlo que a vida moderna nos permite.
Todos sabemos que a vida muda, que as desgraças acontecem, que o futuro é incerto, que a segurança é ilusória, etc. Essas inflexões da vida que foram durante gerações a matéria-prima dos romancistas podem ser devidas à pura sorte ou falta dela (um objecto que se perde, uma pessoa que se encontra, uma coincidência fortuita de factores), à nossa vontade ou a um conjunto de vontades de outrem que se impõe aos fados. O que é mais difícil de aceitar é que um sistema racionalmente concebido para produzir justiça e equidade, mantido pela comunidade em nome desses princípios e accionado por pessoas que não deviam ter outras motivações possa ser gerador das maiores injustiças.
Vem isto a propósito do caso de um inválido, acamado, ligado a um respirador e sem meios de subsistência que o Tribunal de Olhão condenou a uma pena de prisão de 30 dias por não ter pago uma multa de 60 euros (que, com juros, passou a somar 135 euros).
A história pertence ao rol daquelas que muitos juízes, com enorme desfaçatez, nos costumam dizem que não existem: uma pena de prisão por dívidas.
Mas a história é edificante pelo que revela sobre a iniquidade do funcionamento do sistema judicial, da cultura dos juízes e do funcionamento da polícia. Iniquidade é o adjectivo adequado para qualificar um sistema que sistematicamente condena os mais fracos para manifestar a maior compreensão perante os poderosos e que equilibra o rigor da justiça que impõe a uns com a magnanimidade que manifesta em relação a outros.
A história de Joaquim Seco, inválido, ex-comerciante de velharias, começa num dia em que fez uma fogueira sem autorização. A fogueira foi feita com os devidos cuidados e não apresentava perigo de incêndio, mas a GNR decidiu mesmo assim aplicar a lei com rigor e autuar o homem nos tais 60 euros. Tudo seria aceitável, se a GNR decidisse sempre aplicar a lei com esta implacabilidade, mas todos sabemos como as coisas se passam. Fosse Seco um homem desempenado e bem vestido com um belo carro estacionado em cima do passeio que a atitude da polícia seria bem mais compreensiva — vemo-lo todos os dias à frente dos olhos. Depois, seguiu-se o processo e a decisão do tribunal de não aceitar um pagamento da multa em mais do que duas prestações (Seco propunha pagar em três ou quatro prestações) porque isso “descaracterizaria a pena”. Fosse Seco um dirigente de um clube de futebol que o tribunal não veria qualquer inconveniente no pagamento da multa em quantas prestações quisesse, mas Seco era apenas um ferrovelho indigente e por isso seguiu-se uma penhora, uma acusação de desobediência que o acusado não sabe a que se deve e a pena de prisão final.
Este processo (que chegou aos jornais, mas muitos destes não chegam) revela a podridão a que o sistema de justiça chegou. Que o Estado gaste milhares de euros para perseguir um pobre homem que nada fez para prejudicar qualquer outro, que não causou prejuízos a nada nem ninguém (no contexto deste processo, esclareça-se) e que acabe por lhe impor uma pena cruel, desumana e absolutamente desproporcionada face ao crime é abjecto. Que esse mesmo sistema de justiça, paralelamente e diariamente, feche os olhos ou manifeste perante outros crimes e infracções compreensão e magnanimidade, revela a iniquidade do sistema e a sua violenta falta de democracia. A justiça sem magnanimidade é um aborto, mas essa magnanimidade tem de ser ministrada ela própria com justiça, com equidade, com critérios aplicados a todos os cidadãos por igual.
Quando existe vontade de arrepiar caminho, certos erros podem ser úteis e pedagógicos. Esperemos que o triste caso de Joaquim Seco, que nos envergonha e devia envergonhar antes de mais o sistema judicial, possa ser um deles.
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