por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 27 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
A Grande Enciclopédia Portuguesa do Ridículo ganhou na semana passada mais uma entrada de ouro com a queixa apresentada por Jorge Coelho contra a RTP, junto da Alta Autoridade para a Comunicação Social, devido a um invocado caso de favorecimento do PSD no tratamento noticioso (ver "PS Diz Que a RTP Anda a Favorecer o PSD ", PÚBLICO de 21.2.2001 ou http://jornal.publico.pt/2001/02/21/Media/R01.html).
O guião desta farsa é de tal forma ridículo que quase nos faz pensar se não andará por aqui a mão sapuda das Produções Fictícias, mas a história é anti-pedagógica a tantos títulos que será talvez proveitoso enumerá-los.
Primeiro, porque acontece que Jorge Coelho carece de uma posição que lhe permita indignar-se por esta suposta falta de equilíbrio de tratamento — ainda que ela exista — pelo facto de ser colaborador de um canal de televisão concorrente da RTP.
Que um ministro seja ao mesmo tempo consultor de uma empresa, parece a todos como algo naturalmente inconcebível. Devido a uma arcana interpretação da deontologia política, parece porém aceitável que um ministro seja comentador regular de uma televisão privada. Que isso aconteça, é lamentável. Que esse ministro se arvore o direito de dar lições de independência e equidade é uma desfaçatez. Alguma prudência, uma ténue noção de conflito de interesses ou o mero pudor teriam aconselhado o silêncio.
É precisamente a limitação de liberdade imposta por estes laços que aconselha que os políticos se mantenham tão longe quanto possível deste tipo de relação profissional.
(Como nota lateral, diga-se que é também devido à noção da existência de um conflito de interesses — e não apenas devido ao sentimento corporativo, real — que os jornalistas exercem uma tão débil acção crítica dos seus pares).
Segundo, porque a queixa se baseia não num rol de maus tratos mas num único episódio documentado de suposto favorecimento, o que sugere que a matéria de facto capaz de sustentar a acusação é escassa. A ideia com que ficamos depois de conhecer os dados que estão na base da queixa do PS é que a RTP deve ser a mais equilibrada das estações de televisão da Via Láctea... ou talvez a que mais generalizadamente favorece o PS...
Terceiro, porque os critérios de equidade que devem presidir aos julgamentos dos jornalistas não são critérios aritméticos (se o fossem, a informação mais equilibrada seria a dos tempos de antena) mas devem basear-se, pelo contrário, numa justa avaliação da importância da notícia e essa tem sempre um elemento subjectivo e depende dos contextos (das outras notícias do dia, das dos dias anteriores, dos meios existentes na redacção num dado momento, etc).
E, finalmente, porque ao exigir uma "equidade ao segundo", Jorge Coelho tem forçosamente de se colocar no papel irrepreensível de quem a irá garantir em todos os assuntos que lhe passem pelas mãos. Uma perfeita redução ao absurdo.
terça-feira, fevereiro 27, 2001
terça-feira, fevereiro 20, 2001
Representação
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 20 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
A ratificação do Tribunal Penal Internacional deu origem nos últimos dias a uma pequena avalanche de textos de opinião, editoriais e debates.
A discussão não é fácil porque a questão tem a particularidade de colocar frente a frente bens igualmente estimáveis e contraditórios: de um lado, o justo desejo de punir os grandes criminosos negligenciados pelas justiças nacionais e o primado dos Direitos Humanos sobre os códigos nacionais. Do outro, os princípios de soberania nacional e o princípio humanista do Código Penal português que recusa as penas perpétuas — para deixar de lado as imunidades dos detentores de cargos públicos.
Trata-se de saber, neste caso, quais destes bens temos por essenciais e inalienáveis e quais consideramos negociáveis em troca de um menor mal ou de um maior bem — no duplo plano da moral e da política.
(Diga-se à margem que defendo a ratificação do TPI, com algum cepticismo mas sem hesitação.)
O curioso nesta discussão tem sido que, quando se torna evidente o choque entre o desejo de prevenir/punir um genocídio e a necessidade de prescindir da humanidade das penas portuguesas, venha à baila a eventualidade de se realizar um referendo. Como se, confrontados por um dilema que não passa pela facilidade da fracção ideológica, os votos do povo pudessem servir de moeda ao ar.
Um preocupante corolário que se pode extrair desta proposição é que os nossos representantes eleitos parecem considerar-se as melhores pessoas para tomar as decisões relativamente às quais os partidos têm posições claras e opostas, mas já não para decidir questões de maior profundidade filosófica. O que é perturbador para aqueles (poucos) que se apressam a falar de referendo não é o confronto nem as ideais em presença, mas a dúvida.
Para este tipo de questão, o referendo não pode ser uma possibilidade. O referendo é adequado para que uma população escolha entre duas possibilidades aceitáveis (ambas) no plano dos princípios, mas não pode ser a base da moral ou da política. Serve para ver de que lado estão mais interesses — o que é legítimo e razoável em muitos casos. Mas não pode ser um escape para a pusilanimidade.
É precisamente neste tipo de questões que a democracia representativa tem de mostrar a sua virtude. Esta parece-nos um melhor sistema que a democracia directa não só porque é mais eficaz, nem só porque nos permite eleger os melhores de entre nós, mas também porque obriga os eleitos a representar-nos de forma pública — comprometendo-se a representar (há uma componente teatral na política) o papel de políticos honestos, competentes, corajosos e empenhados no interesse público. Independentemente da qualidade da nossa escolha, a visibilidade da representação garante de alguma forma que os nossos eleitos serão melhores do que nós (ou se esforçarão por sê-lo), ainda que o não fossem à partida — numa espécie de profecia auto-realizadora positiva.
Texto publicado no Público de 20 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
A ratificação do Tribunal Penal Internacional deu origem nos últimos dias a uma pequena avalanche de textos de opinião, editoriais e debates.
A discussão não é fácil porque a questão tem a particularidade de colocar frente a frente bens igualmente estimáveis e contraditórios: de um lado, o justo desejo de punir os grandes criminosos negligenciados pelas justiças nacionais e o primado dos Direitos Humanos sobre os códigos nacionais. Do outro, os princípios de soberania nacional e o princípio humanista do Código Penal português que recusa as penas perpétuas — para deixar de lado as imunidades dos detentores de cargos públicos.
Trata-se de saber, neste caso, quais destes bens temos por essenciais e inalienáveis e quais consideramos negociáveis em troca de um menor mal ou de um maior bem — no duplo plano da moral e da política.
(Diga-se à margem que defendo a ratificação do TPI, com algum cepticismo mas sem hesitação.)
O curioso nesta discussão tem sido que, quando se torna evidente o choque entre o desejo de prevenir/punir um genocídio e a necessidade de prescindir da humanidade das penas portuguesas, venha à baila a eventualidade de se realizar um referendo. Como se, confrontados por um dilema que não passa pela facilidade da fracção ideológica, os votos do povo pudessem servir de moeda ao ar.
Um preocupante corolário que se pode extrair desta proposição é que os nossos representantes eleitos parecem considerar-se as melhores pessoas para tomar as decisões relativamente às quais os partidos têm posições claras e opostas, mas já não para decidir questões de maior profundidade filosófica. O que é perturbador para aqueles (poucos) que se apressam a falar de referendo não é o confronto nem as ideais em presença, mas a dúvida.
Para este tipo de questão, o referendo não pode ser uma possibilidade. O referendo é adequado para que uma população escolha entre duas possibilidades aceitáveis (ambas) no plano dos princípios, mas não pode ser a base da moral ou da política. Serve para ver de que lado estão mais interesses — o que é legítimo e razoável em muitos casos. Mas não pode ser um escape para a pusilanimidade.
É precisamente neste tipo de questões que a democracia representativa tem de mostrar a sua virtude. Esta parece-nos um melhor sistema que a democracia directa não só porque é mais eficaz, nem só porque nos permite eleger os melhores de entre nós, mas também porque obriga os eleitos a representar-nos de forma pública — comprometendo-se a representar (há uma componente teatral na política) o papel de políticos honestos, competentes, corajosos e empenhados no interesse público. Independentemente da qualidade da nossa escolha, a visibilidade da representação garante de alguma forma que os nossos eleitos serão melhores do que nós (ou se esforçarão por sê-lo), ainda que o não fossem à partida — numa espécie de profecia auto-realizadora positiva.
terça-feira, fevereiro 13, 2001
Precisamos de saber
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 13 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
Há uma pergunta que pode ser declinada de inúmeras maneiras, mas que condiciona todas as outras. Como é que devemos viver? Que princípios nos devem conduzir nos nossos actos? O que é que está certo e o que é que está errado?
A pergunta é particularmente difícil porque não tem uma resposta, mas milhões. Intuímos que deve haver uma forma simples de responder, uma fórmula universal, mas a nossa experiência ensina-nos que essa resposta é diferente para cada caso, cada época, cada país. É uma pergunta a que não se responde apenas com uma receita, com um preceito, mas com os actos que praticamos todos os dias, a cada momento — é uma pergunta à qual não se consegue fugir com a batota das declarações de princípio.
No tempo em que as regras de comportamento e a definição do bem e do mal eram ditadas pelos deuses, as coisas eram mais simples. Havia uma doutrina e sacerdotes capazes de a interpretar, recompensas e castigos que marcavam claramente a escolha certa e o caminho da danação. Nas sociedades democráticas e laicas, a lei é o que mais se aproxima desse corpo normativo, mas preocupa-se apenas em definir interditos ou em impor regras convencionais — que são práticas, mas não se podem confundir com a ética.
As escolhas raramente são evidentes (ou pelo menos nunca o são quando já nos surgem como questões éticas) porque nos obrigam quase sempre a equilibrar valores que são todos importantes mas que não deixam por esse facto de ser contraditórios. Seria demasiado fácil.
Como devemos viver? Não há manuais que nos possam responder. Os códigos deontológicos que existem nalgumas profissões são isso mesmo, deontológicos, definem deveres profissionais.
A ética não tem códigos, vive da jurisprudência. Vive de analogias, de comparações, de exemplos, da análise das consequências. As suas referências são os exemplos vivos, ao nosso lado, os exemplos mortos da História.
Para saber como devemos viver, não é possível ignorar como viveram os que viveram antes.
Vem tudo isto a propósito da polémica sobre a colaboração da IBM com o regime nazi. Que a IBM colaborou com os nazis, está para além da dúvida. Os documentos citados no livro de Edwin Black provam-no (mesmo que nos atenhamos apenas às citações desses documentos). Mas é importante saber até que ponto colaborou, saber o que sabiam os administradores em Nova Iorque sobre o fim dos recenseamentos, sobre o uso dado às máquinas que se encontravam nos campos da morte, o que sabiam os responsáveis das várias filiais da empresa, saber por quanta eficiência (por quantas mortes) a tecnologia IBM foi responsável, conhecer a verdadeira dimensão desse envolvimento.
A IBM tem o dever de abrir os seus arquivos, de permitir o escrutínio de cada guia de remessa, de cada nota de encomenda, de cada carta e de cada factura, porque as pessoas tem o direito de saber. Têm direito a saber todos os que foram vítimas do nazismo, todos os familiares dos exterminados e todos os outros. Temos o direito de saber porque precisamos de saber. Precisamos de saber porque precisamos de poder julgar, de poder avaliar, perdoar e condenar. Precisamos de poder julgar porque a equidade do tratamento é uma das bases da nossa ética, que impõe a reciprocidade e a equidade como uma norma. Porque não podemos condenar uns e perdoar outros que tenham cometidos os mesmos actos.
Precisamos de saber o que fizeram essas pessoas da IBM, há 60 anos, porque as instituições (e as marcas) transportam valores (e bens) para além do período de vida das pessoas e têm de ser julgadas não apenas pelos actos das pessoas que as compõem mas também pelos actos que praticaram como instituições. Ou não são as empresas as primeiras a invocar a sua tradição e os seus actos passados quando se trata de afirmar as qualidades de uma marca?
Neste novo século, não queremos ter de tornar de novo a descrever o indescritível, não queremos ter de encarar o insuportável, de sofrer o inexplicável. Para isso, é preciso que possamos aprender com os nossos erros. E, para isso, é preciso que os conheçamos.
Mais ainda neste novo mundo onde nos dizem que a concorrência global é o único caminho para o bem-estar, onde só pode haver vencedores, onde a ideologia da vitória parece querer tornar-se o único critério de decisão.
Texto publicado no Público de 13 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
Há uma pergunta que pode ser declinada de inúmeras maneiras, mas que condiciona todas as outras. Como é que devemos viver? Que princípios nos devem conduzir nos nossos actos? O que é que está certo e o que é que está errado?
A pergunta é particularmente difícil porque não tem uma resposta, mas milhões. Intuímos que deve haver uma forma simples de responder, uma fórmula universal, mas a nossa experiência ensina-nos que essa resposta é diferente para cada caso, cada época, cada país. É uma pergunta a que não se responde apenas com uma receita, com um preceito, mas com os actos que praticamos todos os dias, a cada momento — é uma pergunta à qual não se consegue fugir com a batota das declarações de princípio.
No tempo em que as regras de comportamento e a definição do bem e do mal eram ditadas pelos deuses, as coisas eram mais simples. Havia uma doutrina e sacerdotes capazes de a interpretar, recompensas e castigos que marcavam claramente a escolha certa e o caminho da danação. Nas sociedades democráticas e laicas, a lei é o que mais se aproxima desse corpo normativo, mas preocupa-se apenas em definir interditos ou em impor regras convencionais — que são práticas, mas não se podem confundir com a ética.
As escolhas raramente são evidentes (ou pelo menos nunca o são quando já nos surgem como questões éticas) porque nos obrigam quase sempre a equilibrar valores que são todos importantes mas que não deixam por esse facto de ser contraditórios. Seria demasiado fácil.
Como devemos viver? Não há manuais que nos possam responder. Os códigos deontológicos que existem nalgumas profissões são isso mesmo, deontológicos, definem deveres profissionais.
A ética não tem códigos, vive da jurisprudência. Vive de analogias, de comparações, de exemplos, da análise das consequências. As suas referências são os exemplos vivos, ao nosso lado, os exemplos mortos da História.
Para saber como devemos viver, não é possível ignorar como viveram os que viveram antes.
Vem tudo isto a propósito da polémica sobre a colaboração da IBM com o regime nazi. Que a IBM colaborou com os nazis, está para além da dúvida. Os documentos citados no livro de Edwin Black provam-no (mesmo que nos atenhamos apenas às citações desses documentos). Mas é importante saber até que ponto colaborou, saber o que sabiam os administradores em Nova Iorque sobre o fim dos recenseamentos, sobre o uso dado às máquinas que se encontravam nos campos da morte, o que sabiam os responsáveis das várias filiais da empresa, saber por quanta eficiência (por quantas mortes) a tecnologia IBM foi responsável, conhecer a verdadeira dimensão desse envolvimento.
A IBM tem o dever de abrir os seus arquivos, de permitir o escrutínio de cada guia de remessa, de cada nota de encomenda, de cada carta e de cada factura, porque as pessoas tem o direito de saber. Têm direito a saber todos os que foram vítimas do nazismo, todos os familiares dos exterminados e todos os outros. Temos o direito de saber porque precisamos de saber. Precisamos de saber porque precisamos de poder julgar, de poder avaliar, perdoar e condenar. Precisamos de poder julgar porque a equidade do tratamento é uma das bases da nossa ética, que impõe a reciprocidade e a equidade como uma norma. Porque não podemos condenar uns e perdoar outros que tenham cometidos os mesmos actos.
Precisamos de saber o que fizeram essas pessoas da IBM, há 60 anos, porque as instituições (e as marcas) transportam valores (e bens) para além do período de vida das pessoas e têm de ser julgadas não apenas pelos actos das pessoas que as compõem mas também pelos actos que praticaram como instituições. Ou não são as empresas as primeiras a invocar a sua tradição e os seus actos passados quando se trata de afirmar as qualidades de uma marca?
Neste novo século, não queremos ter de tornar de novo a descrever o indescritível, não queremos ter de encarar o insuportável, de sofrer o inexplicável. Para isso, é preciso que possamos aprender com os nossos erros. E, para isso, é preciso que os conheçamos.
Mais ainda neste novo mundo onde nos dizem que a concorrência global é o único caminho para o bem-estar, onde só pode haver vencedores, onde a ideologia da vitória parece querer tornar-se o único critério de decisão.
terça-feira, fevereiro 06, 2001
Vivam as escadas
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 6 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.
Crónica
$Vivam as escadas
José Vítor Malheiros
Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.
Texto publicado no Público de 6 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001
Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.
Crónica
$Vivam as escadas
José Vítor Malheiros
Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.
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