terça-feira, fevereiro 27, 2001

O ridículo e o absurdo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 27 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


A Grande Enciclopédia Portuguesa do Ridículo ganhou na semana passada mais uma entrada de ouro com a queixa apresentada por Jorge Coelho contra a RTP, junto da Alta Autoridade para a Comunicação Social, devido a um invocado caso de favorecimento do PSD no tratamento noticioso (ver "PS Diz Que a RTP Anda a Favorecer o PSD ", PÚBLICO de 21.2.2001 ou http://jornal.publico.pt/2001/02/21/Media/R01.html).
O guião desta farsa é de tal forma ridículo que quase nos faz pensar se não andará por aqui a mão sapuda das Produções Fictícias, mas a história é anti-pedagógica a tantos títulos que será talvez proveitoso enumerá-los.
Primeiro, porque acontece que Jorge Coelho carece de uma posição que lhe permita indignar-se por esta suposta falta de equilíbrio de tratamento — ainda que ela exista — pelo facto de ser colaborador de um canal de televisão concorrente da RTP.
Que um ministro seja ao mesmo tempo consultor de uma empresa, parece a todos como algo naturalmente inconcebível. Devido a uma arcana interpretação da deontologia política, parece porém aceitável que um ministro seja comentador regular de uma televisão privada. Que isso aconteça, é lamentável. Que esse ministro se arvore o direito de dar lições de independência e equidade é uma desfaçatez. Alguma prudência, uma ténue noção de conflito de interesses ou o mero pudor teriam aconselhado o silêncio.
É precisamente a limitação de liberdade imposta por estes laços que aconselha que os políticos se mantenham tão longe quanto possível deste tipo de relação profissional.
(Como nota lateral, diga-se que é também devido à noção da existência de um conflito de interesses — e não apenas devido ao sentimento corporativo, real — que os jornalistas exercem uma tão débil acção crítica dos seus pares).
Segundo, porque a queixa se baseia não num rol de maus tratos mas num único episódio documentado de suposto favorecimento, o que sugere que a matéria de facto capaz de sustentar a acusação é escassa. A ideia com que ficamos depois de conhecer os dados que estão na base da queixa do PS é que a RTP deve ser a mais equilibrada das estações de televisão da Via Láctea... ou talvez a que mais generalizadamente favorece o PS...
Terceiro, porque os critérios de equidade que devem presidir aos julgamentos dos jornalistas não são critérios aritméticos (se o fossem, a informação mais equilibrada seria a dos tempos de antena) mas devem basear-se, pelo contrário, numa justa avaliação da importância da notícia e essa tem sempre um elemento subjectivo e depende dos contextos (das outras notícias do dia, das dos dias anteriores, dos meios existentes na redacção num dado momento, etc).
E, finalmente, porque ao exigir uma "equidade ao segundo", Jorge Coelho tem forçosamente de se colocar no papel irrepreensível de quem a irá garantir em todos os assuntos que lhe passem pelas mãos. Uma perfeita redução ao absurdo.

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