terça-feira, março 06, 2001

Imagens de caça

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 6 de Março de 2001
Crónica x/2001


O fotógrafo David Douglas Duncan, conhecido pelos seus retratos de Picasso, acaba de publicar nos Estados Unidos um livro que reúne uma série de instantâneos de um outro monstro sagrado da fotografia, o francês Henri Cartier-Bresson.
A história não teria nada de especial se Cartier-Bresson, actualmente com 92 anos, não tivesse uma enorme aversão a ser fotografado e se o livro não constituísse uma publicação "não autorizada".
Duncan realizou as fotografias quando os dois homens tomavam um café no jardim do Museu Picasso, em Paris. Segundo Duncan, as fotos foram feitas em cinco minutos e Cartier-Bresson não pareceu incomodado pelos disparos. É evidente porém que o francês desconhecia a intenção de Duncan, da mesma forma que se sabe que o americano conhece a aversão de Cartier-Bresson a ver publicada a sua imagem.
O fotógrafo francês, ao ser informado da publicação do livro nos EUA, tentou dissuadir o seu colega, mas sem êxito. Agora, tenta evitar a publicação do livro em França, onde as leis de defesa da vida privada poderão garantir-lhe um êxito relativo — já que os franceses poderão comprar calmamente o livro através da Internet.
A pretensão de Cartier-Bresson é algo ingénua num mundo onde a vampirização da imagem alheia (íntima ou chocante se possível) se transformou numa forma de negócio e onde a "não autorização" constitui um cobiçado suplemento de picante.
Em Portugal, graças a programas como "Big Brother" e "Acorrentados", que exploram e incentivam a exposição da intimidade, o direito "à imagem" e "à reserva da intimidade da vida privada", que a Constituição garante e o Código Penal regula, passaram a ser vistos quase como bizarrices sem razão, valores menores perante a diversão que os programas pretendem promover. Há algo porém que se deve dizer em defesa destes programas: só lá é exibido quem se exibe.
O mesmo já não acontece com "reality shows" como "112", da TVI, ou "Histórias da Noite", da RTP1, que entram pela casa dentro de cidadãos e exibem a sua intimidade de uma forma tanto mais indecorosa quanto é apresentada como "informação". Na semana passada, num destes programas, uma ambulância do INEM acudia a uma mulher com insuficiência respiratória, em sua casa, perante o olhar cru das câmaras e a luz dos projectores, a sua luta para respirar transformada no nosso espectáculo. Depois, enquanto a mulher era levada para o hospital, uma médica do INEM contava-nos sem o mínimo rebuço a história clínica da doente. É irrelevante se a mulher autorizou a divulgação dessa informação, já que é evidente que, nas circunstâncias, não seria possível dar um consentimento livre e informado.
Numa sociedade livre, a intimidade pode ser exposta por quem o desejar, mas esse direito não pode fazer esquecer o da defesa da vida privada de todos os outros. E os jornalistas, em particular, não se podem esquecer de que a vida privada não é um terreno de caça.

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