terça-feira, outubro 26, 2010

Memórias de uma imprensa bem-comportada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Outubro de 2010
Crónica 36/2010

Esta crise seria uma ocasião excelente para os media provarem a sua utilidade
 
Os jornalistas realizam diferentes tarefas e preenchem  diferentes funções sociais. Uma dessas tarefas consiste em produzir e difundir notícias. Outra função consiste em alimentar o debate de ideias no seio da sociedade.

Porém, aquilo que, aos meus olhos, é a função essencial do jornalista é o que se chama vulgarmente a "fiscalização dos poderes" e a que os anglo-saxónicos chamam de forma mais colorida a função de watchdog - servir de cão de guarda das liberdades cívicas, revelar as actividades de todos os poderes e de todos os poderosos e denunciar abusos.

Esta é a função que só os media levam a cabo de forma independente e constitui o coração do ethos jornalístico. Isto não quer dizer que não possa haver uma organização não-mediática que funcione dessa forma. Mas a prossecução desse objectivo de forma independente - sem qualquer agenda predefinida, sem defender interesses particulares - é a marca de água da actividade jornalística.

Tivemos há dias um exemplo de grande impacto do que pode ser esta fiscalização dos poderes com a publicação pelo site WikiLeaks de milhares de casos de abusos perpetrados pelas tropas americanas e iraquianas no Iraque.

Curiosamente, o líder do WikiLeaks, Julian Assange, não só não se considera um jornalista como recusa com veemência o rótulo, que considera "ofensivo". Porquê? Porque Assange pensa que a esmagadora maioria da imprensa, premeditadamente ou não, não só não fiscaliza os poderes como colabora activamente com eles, escamoteando ou maquilhando as suas práticas mais criticáveis. Um exagero? Talvez. Mas vale a pena, no actual panorama de crise e recessão, quando todos os portugueses têm uma lista de perguntas que gostariam de ver respondidas pelo Governo (sobre as empresas que não pagam impostos, sobre os impostos da banca, sobre a nacionalização do BPN, a política fiscal, o real funcionamento da economia, as razões para o optimismo com que nos regalaram nos últimos dois anos) podemos perguntar-nos a quantas dessas perguntas os media conseguiram responder. Ou quantos nomes foram responsabilizados. Ou quais foram as denúncias que vimos nas páginas dos jornais e nos ecrãs dos noticiários. Existem pequenas excepções singulares, mas contam-se pelos dedos de uma mão. No geral, a imprensa limita-se a reproduzir os discursos existentes na cena política ou económica. Claro que isso significa citar o Governo e a oposição, os patrões e (esporadicamente) os sindicatos, mas a verdade é que isso é dramaticamente insuficiente. Mais do que saber qual é a mensagem que os protagonistas querem transmitir, o que os cidadãos gostariam de ter é um retrato fiel da situação.
Esta crise seria uma ocasião excelente para os media provarem a sua utilidade - para além do consabido "este disse, aquele disse". Todos gostaríamos de saber o que aconteceu de facto com o PEC 1 e 2. Quais são as contas reais do país. O que está a acontecer com as Parcerias Público-Privadas (os factos e não as leituras ideológicas). Com as empresas que não pagam impostos. Com o off-shore da Madeira, com as mil e tal fundações privadas que recebem dinheiro dos nossos impostos, com os privilegiados que acumulam pensões e salários, etc.

A verdade é que a maioria dos media se encontra ou acantonada num confortável conformismo ou numa quase paralisia imposta por uma draconiana redução de despesas, que impede qualquer actividade de investigação. Só que, sem essa investigação, sem essa função irreverente de watchdog, os media apenas repetem as versões que interessam aos poderes. Sobrevivem, mas isso não é vida.

A crise que os media estão a atravessar não é alheia a esta situação. Os media parecem empenhados em provar a sua irrelevância, sem perceberem que é esse o caminho que os está a levar à cova. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 19, 2010

As pensões douradas da oligarquia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Outubro de 2010
Crónica 35/2010

Usar a Segurança Social para que uns milhares de privilegiados possam manter hábitos de luxo é imoral
O Governo tem um problema. Não é o único problema nem o mais importante, mas este é um daqueles que o Governo admite: o Governo não sabe como aplicar o corte de 10 por cento nas pensões acima de 5000 euros.

Se fosse nos salários, era fácil – como vai ser fácil, aliás. Se fosse nas pensões mais baixas também era fácil. Se fosse mais um aumento de IRS era fácil, ou do IVA, ou do IMI, ou do imposto de selo. Mas cortar nos pensionistas de luxo, naqueles que se reformaram aos cinquenta anos para acumular duas ou três pensões (além de continuarem a trabalhar e a receber salários, porque recuperaram milagrosamente do cansaço que os obrigou à reforma) aí, é “complicado”.

Não é que a administração fiscal não saiba quem ganha o quê. Não é que a administração fiscal não saiba quem paga o quê a quem e quanto e quando. Mas é complicado, pronto.
Para começar, nunca se começou. É verdade que esta situação imoral é denunciada há anos, e que todos sabemos que o dinheiro da Segurança Social anda a servir para pagar reformas de luxo a quem não precisa delas, mas nunca se tentou fazer o levantamento ou conceber o sistema que permitiria fazer o levantamento dessas situações. A razão? É complicado, já dissemos.

Uma das razões por que isso é complicado é que muitos destes pensionistas são pessoas educadíssimas, de excelentes famílias. Alguns são ex-governantes que usufruem das suas pensões por terem exercido cargos políticos. Outros são políticos de outras esferas. Outros são altos funcionários da Administração Pública. Outros são altos quadros de empresas públicas ou privadas. Outros são todas estas coisas juntas. Todos eles se reformaram porque tinham direito à reforma. Melhor, às reformas, porque o que aqui nos preocupa são os acumuladores de pensões e subvenções. E todos eles a solicitaram porque imaginaram que estavam demasiado doentes ou fragilizados para trabalhar e a sua única hipótese de sobreviver era a solidariedade nacional. Depois, quando descobriram que afinal podiam trabalhar e começaram de facto a dar umas aulas aqui, a fazer uma consultoria ali, a receber uma avença acolá, mais um part-time além, ter-se-ão esquecido de que estavam a receber as pensõezinhas.
A imoralidade é clara. Não é admissível que, no contexto actual de cortes salariais, apenas seja objecto de um corte de dez por cento a parcela do cumulo de pensões que exceder 5.000 euros. Por que não se faz então a mesma coisa com os salários? Trata-se apenas de mais uma borla oferecida à oligarquia. Não é admissível que se garanta tão repetidamente que estes cortes apenas vigorarão em 2011, quando a mesma garantia não existe para os salários. Não é admissível que sejam proibidas as acumulações de pensões com salários do Estado mas se permita a acumulação de salários privados com pensões públicas. Finalmente, não é admissível que essa proibição não abranja aqueles que já beneficiam neste momento dessas acumulações e que apenas atinja os futuros pensionistas.

Já se sabe que tudo isto representa apenas uns poucos milhões. Mas usar a depauperada Segurança Social para que uns milhares de privilegiados possam manter hábitos de luxo é imoral.

Há outra norma que seria bom adoptar. Não tenho nada contra o facto de alguém conquistar o direito a uma pensão por inteiro por ter sido deputado ou ministro durante uma dúzia de anos. A regra é defensável. Mas o “direito a uma pensão por inteiro” não significa que essa pensão deva começar a ser paga imediatamente, quando o beneficiário ainda está em idade activa e produtiva e tem, efectivamente, emprego. O que seria lógico e decente seria que esse direito fosse accionado apenas – salvo casos de verdadeira necessidade – no momento da idade da reforma. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 12, 2010

As pensões devem financiar os mais ricos?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Outubro de 2010
Crónica 34/2010

É possível definir um regime justo no domínio da acumulação de salários e pensões

A acumulação de salários e pensões vai ser proibida em Portugal. É só para os futuros pensionistas, mas vai ser a doer. Enfim, todos os salários e todas as pensões, não. Só vai ser proibida a acumulação de salários pagos pelo Estado com as pensões pagas pela Segurança Social. Mas vai ser a doer. Ou talvez não. Afinal pode ser que não seja só para os novos pensionistas! Não é! Vai ser para todos e já. Outra coisa não seria de esperar numa altura em que se pedem tantos sacrifícios a todos os portugueses. (Bom, quase todos.) Não, esperem! Afinal não vai ser para todos e já. Vai ser só para os futuros pensionistas e vai ser daqui a algum tempo. Parece que há um problema qualquer com a Constituição, senão seria para todos e já. Por uma questão de moralidade. Mas sendo assim vai ser só para o ano. Talvez. Melhor: não se sabe ainda quando, nem como, nem com base em que critérios, nem para atingir que objectivos, nem o que vai afectar, nem quem vai afectar, nem em quanto, mas que vai ser a doer vai ser. Alguma coisa vai com certeza acontecer.  Talvez. A menos que alguém se tenha enganado, ou precipitado, ou tenha percebido mal ou tenha falado de mais. Mas, em princípio, alguma coisa vai acontecer. Outra coisa seria inexplicável. A menos que não vá acontecer nada.

Confuso? É natural. Não se preocupe que o problema não é seu. A razão por que não percebe é porque ainda ninguém explicou o que vai acontecer. 

Apesar da confusão, é possível ter uma opinião sobre o que deveria ser um regime justo no domínio da acumulação de salários e pensões, independentemente do que seja (ou vá ser) a posição do Governo.

Antes de mais, convém dizer que parece admissível que se acumulem pensões e salários, devido à frequente exiguidade de uns e outros. Há pensões de miséria e salários de miséria que, mesmo acumulados, não atingem um rendimento suficiente. Proibir essa acumulação seria alinhar os rendimentos por baixo e, afinal, se há alguém que já conquistou o direito à sua pensão e, além disso, ainda pode oferecer algo mais ao país e à economia, por que não incentivar esse contributo?

No entanto, o que já não é admissível é permitir a acumulação de várias pensões (ou pensões com salários) de forma a atingir rendimentos que sejam demasiado elevados, pois teríamos nesse caso a Segurança Social a subsidiar os mais ricos em vez de exercer a sua função de distribuição de riqueza, redução de desigualdades e  satisfação de necessidades dos mais desprotegidos.

Mas, se se deve impor um limite à acumulação de pensões e salários, qual deve ser esse limite? O que é, neste contexto, um rendimento “demasiado elevado”? Basta tomar como referência aquela que já é a referência da administração pública: o salário do Presidente da República. Não se deve permitir uma acumulação de salários e pensões que exceda esse limite. E isto sejam os salários públicos ou privados. Qual será a fórmula para assegurar que esse limite não será ultrapassado é secundário, desde que essa fórmula garanta a maior economia possível ao erário público. Quem quer ganhar fortunas deve poder ganhá-las se o mercado de trabalho o permitir. Mas não à custa do bolo que a Segurança Social criou para defender os velhos e os mais frágeis.

Quando é que estas medidas deviam entrar em vigor? Já. E para todos os pensionistas. Por muito que isso doa ao actual PR e ao candidato à Presidência Manuel Alegre (ambos acumuladores de pensões). Não há razão para não aplicar a lei desde já e a todos. Dizer que a lei seria ”retroactiva” porque iria frustrar as expectativas daqueles que estão a receber várias pensões que somam mais do que o ordenado do PR não faz sentido e é socialmente injusto. Afinal, todos os aumentos de impostos, de taxas, todos os cortes nas isenções fiscais, redução de prestações sociais e aumento da idade de reforma também frustram (justas) expectativas e isso não evita que os Governos legislem nesse sentido. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 05, 2010

O fim do caminho

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Outubro de 2010
Crónica 33/2010

O PS deve algo melhor do que José Sócrates ao povo português

Há sempre uma altura em que um líder partidário (ou de qualquer outra organização) deixa de ser um trunfo para passar a ser um peso morto, uma desvantagem, um obstáculo, uma liability. Os mais argutos apercebem-se dos primeiros sinais da coisa e saem graciosamente – ou pelo menos discretamente. Aos menos subtis é preciso empurrá-los. Para José Sócrates essa ladeira escorregadia começou há muito tempo, com a história de uma licenciatura take-away (cuja importância os seus correligionários nunca perceberam) e, depois de muitas peripécias eivadas de enredos judiciários, acabou na semana passada, quando se provou à saciedade que o retrato que fazia do país nos últimos meses (anos?), as garantias que dava e as promessas que fazia em matéria financeira eram absolutamente infundadas. Podemos discutir se se tratou de um optimismo desmedido, de cegueira selectiva, de uma abençoada ignorância, de um vício contumaz de mentira compulsiva (uma condição que dá pelo poético nome clínico de pseudologia fantastica) ou de mera desfaçatez, mas a verdade é que um equívoco desta dimensão é insustentável. Tão insustentável como o caminho das finanças públicas. Seja ele inocente ou calculado.

Os sacrifícios que o primeiro-ministro veio pedir ao país – e que não poupam sequer os mais pobres dos pobres – poderiam eventualmente ser aceitáveis se José Sócrates possuísse uma honorabilidade a toda a prova – mas, infelizmente, não é isso que acontece.
Os sacrifícios poderiam ser aceitáveis se o primeiro-ministro, num gesto de normal humildade, viesse dizer que tinha avaliado mal a situação e explicasse que o tinha feito com razões e até pelas melhores razões. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.

Os sacrifícios poderiam ser aceitáveis se o primeiro-ministro aproveitasse esta circunstância excepcional para impor alguma equidade ao sistema fiscal e, ao mesmo tempo que taxa os mais pobres, corta abonos de família, reduz prestações sociais e participações em medicamentos, viesse anunciar o fim do paraíso fiscal da Madeira, a taxação das empresas que o usam para fugir aos impostos, um tratamento fiscal dos bancos e das grandes empresas em linha com o que acontece ao comum das empresas portuguesas, o recurso aos sinais exteriores de riqueza para combater a fraude e a corrupção. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.

Os sacrifícios poderiam finalmente ser aceitáveis se o primeiro-ministro apontasse alguns caminhos para o país que não passassem pela adopção da miséria durante os próximos anos como meio de atingir a simples sobrevivência, se tivesse avançado alguma ideia mobilizadora, se conseguisse, enfim, dizer aos portugueses em nome de que lhes pede agora estes sacrifícios e o que podem esperar deles no futuro, se os convencesse de que não estão simplesmente a pagar os benefícios de que os accionistas e gestores do BPN gozaram abusivamente nos últimos anos. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.
O que é espantoso é que o partido que apoia o Governo parece não se dar conta de que a credibilidade do líder do Governo – e, por extensão, do Governo - chegou ao fim, e continua a defendê-lo como uma simples vítima da conjuntura internacional hostil, perdendo com isso uma preciosa réstia de credibilidade. Que o Governo finja que não vê, percebe-se e espera-se. Que o PS finja que não vê é irresponsável e inaceitável. Veremos nos próximos anos se o PS deve algo a José Sócrates. Do que não há dúvida é de que deve algo melhor do que José Sócrates ao povo português. (jvmalheiros@gmail.com)