por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Setembro de 2009
Crónica x/2009
Texto publicado no jornal Público a 29 de Setembro de 2009
Crónica x/2009
Abster-se é passar uma procuração a um vizinho que não conhecemos muito bem
As eleições de domingo registaram, para além de outras novidades, o recorde de abstenções em eleições legislativas: 39,4 por cento. E, segundo os especialistas, a percentagem é bastante mais elevada entre os jovens. A política não interessa muito aos cidadãos em geral e interessa ainda menos aos mais jovens. Em qualquer outro domínio, se tivéssemos um grupo onde 40 por cento das pessoas preferisse cruzar os braços, isso seria considerado inacreditável. Imaginem a comoção e o escândalo que seria se isso acontecesse numa empresa, numa equipa de futebol, no corpo docente de uma escola (não serão perfeitos, mas foram os melhores exemplos que encontrei). Nas eleições isso é banal e é mesmo justificado com o que acontece “noutros países”, onde há abstenções maiores e com o facto de haver por cá eleições com taxas de participação ainda mais baixas. Nas eleições europeias, já todos aceitaram que só um em cada três eleitores se dê à maçada de ir meter o voto na urna e isso é considerado normal, porque votar para o Parlamento Europeu ainda nos parece uma coisa cosmopolita, como fazer uma viagem de avião em Business e achamos normal que isso não seja para toda a gente.
É possível fazer uma leitura optimista da abstenção: no fundo, e por muito que digam o contrário, os abstencionistas abstêm-se porque não receiam que os resultados eleitorais ponham em causa questões fundamentais ou levar o país para o desastre. Mas é também possível fazer uma leitura menos optimista: eles abstêm-se porque não acreditam que seja possível evitar o desastre ou melhorar a situação do país (da educação, da justiça, da economia, do trabalho).
A verdade é que quem se abstém deixa a decisão nas mãos dos outros – abster-se é, de facto, como passar uma procuração ao vizinho, só que é um vizinho que nós não conhecemos bem, que só vimos a sair do carro uma vez e que um dia vimos no café e que se calhar nem é nosso vizinho. Na realidade, não sabemos nada dele.
Há quem mascare a sua abstenção para reduzir a ansiedade e mitigar a culpa. Um amigo a quem perguntei no domingo às seis e meia da tarde se já tinha votado disse-me: “Não estou para perder tempo com esse disparate. Mas a minha mulher já votou!”. É como se tivéssemos voltado ao voto salazarista do “cabeça de casal” (sempre apreciei o subliminar masculino: “o cabeça”), mas a sensação de segurança é falsa: ele nem sabe o que a mulher votou, nem sabe que a procuração dele foi direitinha não para ela, mas para o tipo que eu vi no café.
Se há pessoas que não votam porque, aconteça o que acontecer, está tudo bem, e outras que não votam porque, aconteça o que acontecer, está tudo mal, há também imensa gente que não vota por vergonha. A verdade é que todos sabemos que mesmo o melhor partido de todos ou o menos mau de todos nos vai envergonhar. Sabemos isso de ciência tão certa como sabemos que Cavaco vai esclarecer toda a questão das escutas hoje ou amanhã (a menos que nos vá também envergonhar). É fatal como o destino. E como muita gente não consegue manter durante quatro anos o jogo infantil “Votei-mas-não-te-digo-em qual- porque-o-voto-é-secreto!” e sabe que, se disser aos amigos em quem votou, mais tarde ou mais cedo vai ser enxovalhado… prefere abster-se.
A verdade é que estas pessoas não se abstêm porque os partidos não são suficientemente bons. Abstêm-se porque acham os partidos tão maus que se sentem envergonhadas simplesmente por votar neles. Nem todos os abstencionistas são assim, mas há muitos assim.
Há uma coisa certa: não são os apelos ao voto que acabam com a abstenção. Muito menos os apelos do Presidente da República, que sempre preferiu abster-se de nos contar o que sabe. (jvmalheiros@gmail.com)