por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Outubro de 2005
Crónica 31/2005
Cavaco nem pede que o sigam a lado nenhum, pede apenas que lhe passem uma procuração.
Na apresentação da sua candidatura à Presidência da República, Cavaco Silva voltou a sublinhar um aspecto que sempre constituiu um ponto forte da sua imagem e que já se percebeu que vai estar, mais uma vez, no cerne da sua campanha: o seu estatuto de não-político, de alguém que não vive da política e que possui uma competência “real”, que se encontra para além das ilusões retóricas da política.
Trata-se de um caso exemplar da perspectiva tecnocrática, que considera que existem soluções técnicas óptimas para os problemas sociais e que a sua resolução depende, apenas, de reunir as competências necessárias.
A ideologia e a política são para os tecnocratas, no melhor dos casos, um manto anódino de fantasia que se lança sobre o mundo real sem lhe alterar a substância e, no pior caso, uma arte do embuste. A tecnocracia vê as ideologias como possibilidades “estilísticas” da política, mas considera que os problemas reais apenas são abordáveis e resolúveis por quem detenha as competências técnicas adequadas.
Cavaco apresenta-se como o homem que detém essas competências e espera convencer os eleitores de que se encontra para além da retórica, no mundo da acção e não da palavra, que não perde tempo a discutir quando pode resolver e que a sua competência pode transformar, enquanto a política dos outros apenas consegue maquilhar.
Esta mensagem é tanto mais atraente quanto maior for a realidade e a percepção da crise social – não é por acaso que a época de ouro da tecnocracia foi a Grande Depressão americana –, mas radica numa falácia.
Se houvesse uma solução técnica óptima para os problemas sociais ela já teria sido encontrada – ou sentiríamos pelo menos que estamos cada vez mais próximos de a encontrar. Na realidade, e ao invés de existir um solução técnica universal mágica para o desemprego ou para a segurança social, a procura de soluções (numa sociedade democrática) passa pelo confronto pacífico dos vários interesses, pelo debate e pela negociação. A democracia tenta produzir consensos sociais negociados e implica escolhas – é uma questão de eleições, em mais do que um sentido. E essas escolhas mudam com o tempo, estão sujeitas a humores e ilusões, manipulações e chantagens, sonhos e receios. E dependem até (isso sim) do leque de possibilidades técnicas que é posto à disposição dos cidadãos.
Isto não significa que a política não exija líderes com competência e determinação – significa apenas que isso não chega. Exige também cidadãos. E as competências que os líderes devem possuir não se situam fora da política – são, essencialmente, competências políticas, que permitem que um dirigente equacione escolhas, faça propostas à sociedade e mostre capacidade de liderança para as transformar em realidade. São qualidades nobres e necessárias.
Uma das contradições na candidatura de Cavaco é que ele adopta a pose tecnocrática de ministro, enquanto se candidata ao menos técnico e ao mais político dos cargos públicos. Se o Primeiro-ministro pode pôr em prática uma política, o Presidente da República não pode. Pode apenas discursar, lançar debates, promover iniciativas, intermediar e arbitrar.
Cavaco apresenta-se não apenas como um profissional competente mas sublinha que é alguém cuja competência se encontra “fora da política” – como se a política fosse coisa nenhuma ou apenas a arte da indecisão, da ignorância ou do acaso (senão da venalidade). A mensagem é subliminal, mas está lá. E esta ideia de política é errada e é perigosa. Era-o quando Cavaco era primeiro-ministro e é-o hoje. Não é perigosa porque Cavaco seja um ditador em potência: é perigosa porque não contribui para melhorar a política e a democracia, porque apela à menoridade dos portugueses ao prometer-lhes uma tutela em vez de lhes exigir cidadania e participação, é perigosa porque não exige esforço nem qualidade mas pede apenas a mais passiva das fés. Cavaco nem pede que o sigam a lado nenhum, pede apenas que lhe passem uma procuração.
terça-feira, outubro 25, 2005
terça-feira, outubro 18, 2005
O sítio das bananas e a República
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Outubro de 2005
Crónica 30/2005
É bom não esquecer que há quem tenha de viver sob as regras do sítio das bananas em que a Madeira se transformou.
As eleições autárquicas deram origem, como era imperativo, a uma catadupa de reflexões sobre o populismo, o caciquismo, a personalização do poder local, os riscos das candidaturas independentes e a necessidade de alterar a lei eleitoral autárquica de forma a evitar a candidatura e eleição de quem não cumpra as suas “obrigações perante a justiça” – uma fórmula hábil do PSD, que não fere a presunção de inocência.
O grupo parlamentar do Partido Socialista, num debate na Assembleia da República, afirmou mesmo que "alguns agentes do poder local constituem um factor de desconfiança nas instituições" e considerou que estávamos a assistir "à emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito".
Estas preocupações são evidentemente legítimas e importantes e temos de seguir atentamente o que sairá delas. Só é estranho que elas surjam na sequência da eleição de indivíduos que são objecto de suspeitas de corrupção e que não tenham sido desencadeadas pelas ameaças, pressões e práticas antidemocráticas do presidente do Governo Regional da Madeira durante a campanha eleitoral para as mesmas eleições autárquicas.
É sabido que Alberto João Jardim, devido a razões históricas, geográficas, políticas e histriónicas atingiu na prática um estatuto de inimputabilidade, mas a questão é demasiada séria para que se possa descartar com um sorriso. Se o personagem é cómico visto do lado de cá do mar, é bom não esquecer que, do lado de lá, há quem veja as suas liberdades coarctadas diariamente e que há quem tenha de viver sob as regras do sítio das bananas em que a Madeira se transformou (dizer República seria dizer demais).
Esta reflexão seria extemporânea se não se desse o caso de termos entrado em pré-pré-campanha para as presidenciais e se não víssemos começar já a alinhar-se os argumentos dos vários candidatos.
Acontece que, no regime semi-presidencial que nos rege, é duvidoso que o futuro Presidente da República possa fazer alguma coisa para melhorar a situação nacional na saúde, na educação ou mesmo na justiça ou na exclusão social – para além da emissão de piedosas mensagens. Mas há áreas que são da sua competência, como sejam a garantia da unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas (Artigo 120º).
É verdade ainda que, devido a razões históricas (o papão do separatismo), a nossa Constituição não escreve preto no branco no rol das competências do Presidente da República que ele pode demitir os Presidentes dos Governos Regionais – apesar de o permitir de forma praticamente discricionária em relação ao Primeiro-Ministro – e que o Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira apenas permite a dissolução dos órgãos de governo regional em caso de “prática de actos graves contrários à Constituição”.
Ou seja: Jorge Sampaio pôde demitir Santana Lopes por ele ser quem era (e fez bem) mas não pode demitir Alberto João Jardim por ele fazer o que faz (o que está mal).
Verificando-se uma situação de capacidade diminuída do Presidente da República no âmbito das Regiões Autónomas e verificando-se uma consabida situação de défice democrático na Madeira (a expressão terá passado de moda mas o défice não desapareceu) seria interessante saber o que pensam e o que propõem neste domínio os nossos candidatos.
É que “o regular funcionamento das instituições democráticas” não está de forma alguma garantido na Madeira e isso é, sem a menor sombra de dúvida, da responsabilidade do PR.
Para já, talvez seja possível, numa daquelas revisões constitucionais que estamos sempre a fazer, encontrar tempo para acrescentar ao artigo 133, relativo às competências do PR: “Demitir os presidentes dos Governos Regionais” e “Dissolver as Assembleias Legislativas Regionais das Regiões Autónomas” – de forma simétrica às suas competências em relação ao todo da República.
Texto publicado no jornal Público a 18 de Outubro de 2005
Crónica 30/2005
É bom não esquecer que há quem tenha de viver sob as regras do sítio das bananas em que a Madeira se transformou.
As eleições autárquicas deram origem, como era imperativo, a uma catadupa de reflexões sobre o populismo, o caciquismo, a personalização do poder local, os riscos das candidaturas independentes e a necessidade de alterar a lei eleitoral autárquica de forma a evitar a candidatura e eleição de quem não cumpra as suas “obrigações perante a justiça” – uma fórmula hábil do PSD, que não fere a presunção de inocência.
O grupo parlamentar do Partido Socialista, num debate na Assembleia da República, afirmou mesmo que "alguns agentes do poder local constituem um factor de desconfiança nas instituições" e considerou que estávamos a assistir "à emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito".
Estas preocupações são evidentemente legítimas e importantes e temos de seguir atentamente o que sairá delas. Só é estranho que elas surjam na sequência da eleição de indivíduos que são objecto de suspeitas de corrupção e que não tenham sido desencadeadas pelas ameaças, pressões e práticas antidemocráticas do presidente do Governo Regional da Madeira durante a campanha eleitoral para as mesmas eleições autárquicas.
É sabido que Alberto João Jardim, devido a razões históricas, geográficas, políticas e histriónicas atingiu na prática um estatuto de inimputabilidade, mas a questão é demasiada séria para que se possa descartar com um sorriso. Se o personagem é cómico visto do lado de cá do mar, é bom não esquecer que, do lado de lá, há quem veja as suas liberdades coarctadas diariamente e que há quem tenha de viver sob as regras do sítio das bananas em que a Madeira se transformou (dizer República seria dizer demais).
Esta reflexão seria extemporânea se não se desse o caso de termos entrado em pré-pré-campanha para as presidenciais e se não víssemos começar já a alinhar-se os argumentos dos vários candidatos.
Acontece que, no regime semi-presidencial que nos rege, é duvidoso que o futuro Presidente da República possa fazer alguma coisa para melhorar a situação nacional na saúde, na educação ou mesmo na justiça ou na exclusão social – para além da emissão de piedosas mensagens. Mas há áreas que são da sua competência, como sejam a garantia da unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas (Artigo 120º).
É verdade ainda que, devido a razões históricas (o papão do separatismo), a nossa Constituição não escreve preto no branco no rol das competências do Presidente da República que ele pode demitir os Presidentes dos Governos Regionais – apesar de o permitir de forma praticamente discricionária em relação ao Primeiro-Ministro – e que o Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira apenas permite a dissolução dos órgãos de governo regional em caso de “prática de actos graves contrários à Constituição”.
Ou seja: Jorge Sampaio pôde demitir Santana Lopes por ele ser quem era (e fez bem) mas não pode demitir Alberto João Jardim por ele fazer o que faz (o que está mal).
Verificando-se uma situação de capacidade diminuída do Presidente da República no âmbito das Regiões Autónomas e verificando-se uma consabida situação de défice democrático na Madeira (a expressão terá passado de moda mas o défice não desapareceu) seria interessante saber o que pensam e o que propõem neste domínio os nossos candidatos.
É que “o regular funcionamento das instituições democráticas” não está de forma alguma garantido na Madeira e isso é, sem a menor sombra de dúvida, da responsabilidade do PR.
Para já, talvez seja possível, numa daquelas revisões constitucionais que estamos sempre a fazer, encontrar tempo para acrescentar ao artigo 133, relativo às competências do PR: “Demitir os presidentes dos Governos Regionais” e “Dissolver as Assembleias Legislativas Regionais das Regiões Autónomas” – de forma simétrica às suas competências em relação ao todo da República.
terça-feira, outubro 11, 2005
O método Wiki
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Outubro de 2005
Crónica 29/2005
Alguém entregaria uma enciclopédia de ciências políticas à autoria colectiva dos habitantes de Felgueiras, Oeiras e Gondomar?
A Wikipédia é uma enciclopédia online que é fruto do trabalho de muitos milhares de colaboradores anónimos e onde toda a gente pode alterar, acrescentar, cortar ou mesmo apagar as entradas feitas pelos outros.
O projecto nasceu em 2001 e cresceu até atingir quase dois milhões de artigos em duzentas línguas – tudo fruto de colaborações a título gracioso. Não é possível fazer uma visita à Wikipédia sem ficar fascinado pelo projecto e o site wikipedia.org tornou-se nos últimos anos provavelmente a obra de referência mais consultada no mundo. É frequente as entradas da Wikipedia aparecem entre os primeiros resultados devolvidos pelos motores de pesquisa da Web.
O projecto deve a sua existência a Jimmy Wales, um ex-yuppie americano de 38 anos. Wales foi o fundador do projecto, o seu primeiro financiador e continua a ser o seu dirigente máximo, continuando a deter a última palavra sobre os critérios da obra, que não possui fins lucrativos e se alimenta de donativos. Wales acredita que a sua enciclopédia pode atingir a perfeição se houver participação de um número suficientemente alargado de gente e que do confronto dos vários autores nascerá a excelência, de acordo com os princípios da selecção natural: as entradas erradas serão corrigidas, a superficialidade dará lugar à profundidade, a mediocridade ao brilhantismo e os debates encontrarão um ponto óptimo de consenso. É uma fé que nada garante mas que possui inúmeros seguidores. E a verdade é que a maior parte dos artigos da Wikipedia possui uma qualidade apreciável e que a maior parte das entradas evidencia uma preocupação de rigor e isenção, mesmo nos temas mais sensíveis.
Do outro lado, têm aparecido críticos do movimento Wiki (a Wikipedia é apenas a parte mais visível do movimento Wiki, que se traduz em sites onde toda a gente pode editar o conteúdo) que ressaltam a falta de garantia de fiabilidade do conteúdo deste sites, a impossibilidade de responsabilização dos autores (ninguém sabe quem escreve), a disparidade de critérios de relevância, a vulnerabilidade dos sites perante manipuladores organizados ou a tendência para uma mediania sem brilho em muitas das participações.
É inegável que o modelo Wiki possui imensa potencialidade e é animado por ideias interessantes, como os conceitos de trabalho cooperativo, debate permanente, a abertura à participação de todos, etc. No entanto, apesar da organização alternativa do trabalho que ele propõe, o modelo está longe de ser o movimento anticapitalista e alterglobalista que muitos imaginam. Wales é o mais conservador dos visionários e economicamente situa-se claramente no campo ultraliberal. Na origem da Wikipedia está viva uma doutrina populista e anti-elitista e Wales gosta de contrapor o seu “método de produção democrático” ao “método meritocrático” que define o mundo científico para concluir que a sua abordagem “é mais democrática”. Será, mas a questão não é essa.
O problema desta ideia, segundo a qual o mercado, a competição aberta, permite alcançar o melhor resultado possível não apenas na economia mas na ciência e na informação é que... não é assim. De facto, existe um mundo objectivo que pode ser estudado e há pessoas que o estudam e que adquirem mais conhecimentos sobre determinadas áreas do que outras.
De facto, a democracia é o primado da maioria... nas escolhas políticas. Ninguém em seu perfeito juízo decidiria o tratamento médico que deve seguir com base num referendo no seu bairro. Ou entregaria uma enciclopédia de ciências políticas à autoria colectiva dos habitantes de Felgueiras, Oeiras e Gondomar.
O movimento Wiki ainda está a dar os primeiros passos e existem inúmeras tarefas estimulantes e úteis que poderão ser levadas a cabo colectivamente (ou no âmbito de certos grupos) com estas ferramentas. Mas daí a considerar que o mercado é a melhor escola possível para os nossos filhos e que a “selecção natural da informação” vai permitir encontrar os factos mais relevantes para lhes transmitir vai um fosso que não é obrigatório transpor.
Entretanto, a Wikipedia é um excelente site para procurar pistas sobre as mais diversas matérias. Desde que as possa verificar em verdadeiras obras de referência, escritas por especialistas em quem confie.
Texto publicado no jornal Público a 11 de Outubro de 2005
Crónica 29/2005
Alguém entregaria uma enciclopédia de ciências políticas à autoria colectiva dos habitantes de Felgueiras, Oeiras e Gondomar?
A Wikipédia é uma enciclopédia online que é fruto do trabalho de muitos milhares de colaboradores anónimos e onde toda a gente pode alterar, acrescentar, cortar ou mesmo apagar as entradas feitas pelos outros.
O projecto nasceu em 2001 e cresceu até atingir quase dois milhões de artigos em duzentas línguas – tudo fruto de colaborações a título gracioso. Não é possível fazer uma visita à Wikipédia sem ficar fascinado pelo projecto e o site wikipedia.org tornou-se nos últimos anos provavelmente a obra de referência mais consultada no mundo. É frequente as entradas da Wikipedia aparecem entre os primeiros resultados devolvidos pelos motores de pesquisa da Web.
O projecto deve a sua existência a Jimmy Wales, um ex-yuppie americano de 38 anos. Wales foi o fundador do projecto, o seu primeiro financiador e continua a ser o seu dirigente máximo, continuando a deter a última palavra sobre os critérios da obra, que não possui fins lucrativos e se alimenta de donativos. Wales acredita que a sua enciclopédia pode atingir a perfeição se houver participação de um número suficientemente alargado de gente e que do confronto dos vários autores nascerá a excelência, de acordo com os princípios da selecção natural: as entradas erradas serão corrigidas, a superficialidade dará lugar à profundidade, a mediocridade ao brilhantismo e os debates encontrarão um ponto óptimo de consenso. É uma fé que nada garante mas que possui inúmeros seguidores. E a verdade é que a maior parte dos artigos da Wikipedia possui uma qualidade apreciável e que a maior parte das entradas evidencia uma preocupação de rigor e isenção, mesmo nos temas mais sensíveis.
Do outro lado, têm aparecido críticos do movimento Wiki (a Wikipedia é apenas a parte mais visível do movimento Wiki, que se traduz em sites onde toda a gente pode editar o conteúdo) que ressaltam a falta de garantia de fiabilidade do conteúdo deste sites, a impossibilidade de responsabilização dos autores (ninguém sabe quem escreve), a disparidade de critérios de relevância, a vulnerabilidade dos sites perante manipuladores organizados ou a tendência para uma mediania sem brilho em muitas das participações.
É inegável que o modelo Wiki possui imensa potencialidade e é animado por ideias interessantes, como os conceitos de trabalho cooperativo, debate permanente, a abertura à participação de todos, etc. No entanto, apesar da organização alternativa do trabalho que ele propõe, o modelo está longe de ser o movimento anticapitalista e alterglobalista que muitos imaginam. Wales é o mais conservador dos visionários e economicamente situa-se claramente no campo ultraliberal. Na origem da Wikipedia está viva uma doutrina populista e anti-elitista e Wales gosta de contrapor o seu “método de produção democrático” ao “método meritocrático” que define o mundo científico para concluir que a sua abordagem “é mais democrática”. Será, mas a questão não é essa.
O problema desta ideia, segundo a qual o mercado, a competição aberta, permite alcançar o melhor resultado possível não apenas na economia mas na ciência e na informação é que... não é assim. De facto, existe um mundo objectivo que pode ser estudado e há pessoas que o estudam e que adquirem mais conhecimentos sobre determinadas áreas do que outras.
De facto, a democracia é o primado da maioria... nas escolhas políticas. Ninguém em seu perfeito juízo decidiria o tratamento médico que deve seguir com base num referendo no seu bairro. Ou entregaria uma enciclopédia de ciências políticas à autoria colectiva dos habitantes de Felgueiras, Oeiras e Gondomar.
O movimento Wiki ainda está a dar os primeiros passos e existem inúmeras tarefas estimulantes e úteis que poderão ser levadas a cabo colectivamente (ou no âmbito de certos grupos) com estas ferramentas. Mas daí a considerar que o mercado é a melhor escola possível para os nossos filhos e que a “selecção natural da informação” vai permitir encontrar os factos mais relevantes para lhes transmitir vai um fosso que não é obrigatório transpor.
Entretanto, a Wikipedia é um excelente site para procurar pistas sobre as mais diversas matérias. Desde que as possa verificar em verdadeiras obras de referência, escritas por especialistas em quem confie.
terça-feira, outubro 04, 2005
Só para brancos?
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Outubro de 2005
Crónica 28/2005
Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter.
Em declarações ao Público, no âmbito de um trabalho do jornalista Ricardo Dias Felner, publicado a propósito do vigésimo aniversário do Centro Comercial das Amoreiras, a sua directora de marketing, Maria Galvão Sousa, refere-se à descida do número de frequentadores do centro para explicar que não o considera preocupante e acrescenta que ele teve mesmo um lado positivo: traduziu-se no desaparecimento dos frequentadores “de cor”.
Diz Maria Galvão Sousa: "Nós tínhamos pessoas de cor - é chato dizer isto, e eu não tenho nada contra as pessoas de cor - e deixámos de ter. Portanto, esta quebra de três por cento até foi bem vinda".
Se se desse o caso de haver frequentadores “de cor” que provocassem desacatos e se Maria Galvão Sousa escolhesse referir a sua cor – isso seria criticável e inaceitável por si. Mas, neste caso, não há referência a quaisquer problemas que tenham existido com algum tipo de frequentadores, mas apenas à cor de alguns. É isso que incomoda Maria Galvão Sousa.
Porque é que seria racista referir a cor da pele do autor de um desacato (se fosse esse o caso)? Porque referir a cor de forma selectiva, como acontece com frequência nos “faits divers”, alimenta a ideia de que apenas as pessoas de pele escura cometem desacatos ou de que os cometem com mais frequência que os outros. As notícias nunca dizem “Branco assalta bomba de gasolina” ou “Português ataca idosa no metro”, mas sim, criando e alimentando o estereótipo racista, “Negro assalta loja” ou “Ucraniano agride colega”.
Na sequência das declarações de Maria Galvão Sousa, levantou-se um coro de protestos em blogs e fóruns da Internet e em círculos privados. O coro foi demasiado discreto para a enormidade que lhe deu origem, mas Portugal é o país dos brandos protestos. Não houve manifestações ou piquetes à frente das Amoreiras (como seria normal que tivesse havido), nem petições e queixas às autoridades (como deveria ter havido), nem uma onda de recolha de depoimentos indignados pela televisão (como teria acontecido se as declarações dissessem respeito a gente do Porto ou apoiantes de um clube de futebol).
Apesar disso, a Mundicenter, empresa proprietária do Amoreiras (assim como dos centros comerciais Odivelas Parque, Oeiras Parque, Braga Parque e Olivais Shopping Center), entendeu que as declarações de Maria Galvão Sousa eram deploráveis e fez publicar um comunicado onde garantem que elas vão contra “a gestão, cultura e missão da Mundicenter”, onde pede desculpa por elas e onde garante ir tomar medidas para que tais situações não se repitam. Para mais, segundo a agência de comunicação da Mundicenter, Maria Galvão Sousa foi “afastada das suas funções anteriores” e “não possui neste momento quaisquer novas funções” na empresa.
O incidente parece sanado mas, antes que ele se deva considerar encerrado, não podemos deixar de fazer algumas perguntas:
- Como se compreende que alguém que pensa (e fala) como Maria Galvão Sousa chegue a um lugar de direcção– para mais quando as suas convicções humanas vão frontalmente contra “a gestão, cultura e missão” do seu empregador?
- Como se compreende que esta mulher seja uma especialista de marketing - aquela área onde se aprende a fazer tudo para dar uma boa imagem e para proporcionar satisfação aos clientes?
- Que medidas terá tomado Maria Galvão Sousa para atingir a brancura das Amoreiras, que sabemos hoje que era um dos seus desejos?
Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter. É que Maria Galvão Sousa está afastada das suas funções de responsável de marketing, mas há pessoas que são afastadas para fora, outras para baixo, outras para o lado e outras até para cima. Por outro lado, se não for possível despedir alguém com justa causa por defender os preconceitos mais geradores de ódio do mundo, há certamente algo a alterar nas leis laborais.
Texto publicado no jornal Público a 4 de Outubro de 2005
Crónica 28/2005
Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter.
Em declarações ao Público, no âmbito de um trabalho do jornalista Ricardo Dias Felner, publicado a propósito do vigésimo aniversário do Centro Comercial das Amoreiras, a sua directora de marketing, Maria Galvão Sousa, refere-se à descida do número de frequentadores do centro para explicar que não o considera preocupante e acrescenta que ele teve mesmo um lado positivo: traduziu-se no desaparecimento dos frequentadores “de cor”.
Diz Maria Galvão Sousa: "Nós tínhamos pessoas de cor - é chato dizer isto, e eu não tenho nada contra as pessoas de cor - e deixámos de ter. Portanto, esta quebra de três por cento até foi bem vinda".
Se se desse o caso de haver frequentadores “de cor” que provocassem desacatos e se Maria Galvão Sousa escolhesse referir a sua cor – isso seria criticável e inaceitável por si. Mas, neste caso, não há referência a quaisquer problemas que tenham existido com algum tipo de frequentadores, mas apenas à cor de alguns. É isso que incomoda Maria Galvão Sousa.
Porque é que seria racista referir a cor da pele do autor de um desacato (se fosse esse o caso)? Porque referir a cor de forma selectiva, como acontece com frequência nos “faits divers”, alimenta a ideia de que apenas as pessoas de pele escura cometem desacatos ou de que os cometem com mais frequência que os outros. As notícias nunca dizem “Branco assalta bomba de gasolina” ou “Português ataca idosa no metro”, mas sim, criando e alimentando o estereótipo racista, “Negro assalta loja” ou “Ucraniano agride colega”.
Na sequência das declarações de Maria Galvão Sousa, levantou-se um coro de protestos em blogs e fóruns da Internet e em círculos privados. O coro foi demasiado discreto para a enormidade que lhe deu origem, mas Portugal é o país dos brandos protestos. Não houve manifestações ou piquetes à frente das Amoreiras (como seria normal que tivesse havido), nem petições e queixas às autoridades (como deveria ter havido), nem uma onda de recolha de depoimentos indignados pela televisão (como teria acontecido se as declarações dissessem respeito a gente do Porto ou apoiantes de um clube de futebol).
Apesar disso, a Mundicenter, empresa proprietária do Amoreiras (assim como dos centros comerciais Odivelas Parque, Oeiras Parque, Braga Parque e Olivais Shopping Center), entendeu que as declarações de Maria Galvão Sousa eram deploráveis e fez publicar um comunicado onde garantem que elas vão contra “a gestão, cultura e missão da Mundicenter”, onde pede desculpa por elas e onde garante ir tomar medidas para que tais situações não se repitam. Para mais, segundo a agência de comunicação da Mundicenter, Maria Galvão Sousa foi “afastada das suas funções anteriores” e “não possui neste momento quaisquer novas funções” na empresa.
O incidente parece sanado mas, antes que ele se deva considerar encerrado, não podemos deixar de fazer algumas perguntas:
- Como se compreende que alguém que pensa (e fala) como Maria Galvão Sousa chegue a um lugar de direcção– para mais quando as suas convicções humanas vão frontalmente contra “a gestão, cultura e missão” do seu empregador?
- Como se compreende que esta mulher seja uma especialista de marketing - aquela área onde se aprende a fazer tudo para dar uma boa imagem e para proporcionar satisfação aos clientes?
- Que medidas terá tomado Maria Galvão Sousa para atingir a brancura das Amoreiras, que sabemos hoje que era um dos seus desejos?
Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter. É que Maria Galvão Sousa está afastada das suas funções de responsável de marketing, mas há pessoas que são afastadas para fora, outras para baixo, outras para o lado e outras até para cima. Por outro lado, se não for possível despedir alguém com justa causa por defender os preconceitos mais geradores de ódio do mundo, há certamente algo a alterar nas leis laborais.
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