por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Agosto de 2001
Crónica x/2001
A publicação da lista das notas alcançadas pelos alunos das várias escolas secundárias do país nos exames nacionais do 12º ano deve ser saudada. Ela representa um triunfo do direito dos cidadãos à informação e, particularmente, do direito dos cidadãos a conhecerem o funcionamento do sistema de ensino que financiam e cujo desempenho todos consideram essencial para garantir o futuro.
Deve ser saudada porque vem sublinhar o dever da prestação de contas dos sistemas públicos perante a sociedade.
Deve ser saudada, finalmente, porque representa uma vitória sobre o obscurantismo daqueles que defendiam que o público não estava preparado para conhecer e interpretar estes dados, que extrairia deles conclusões abusivas e incorrectas, que a ordem pública seria alterada para além do tolerável, que, em suma, o país não estava maduro para a democracia.
É evidente que a eficácia do sistema não pode ser avaliada de forma muito rigorosa através desta lista. Mas é melhor possuir alguns indicadores do que nenhuns. Trata-se de uma primeira abordagem, que irá sendo certamente corrigida e melhorada com o tempo.
É evidente que vai haver erros de interpretação, algumas injustiças na avaliação, algumas reputações (boas e más) algo imerecidas. Mas a qualidade dos dados e da sua leitura irá sendo cada vez maior e isso só poderá melhorar o sistema.
É justo sublinhar, neste momento, que esta publicação tem antecedentes: ela dificilmente teria tido lugar se o ministro da Ciência e da Tecnologia, José Mariano Gago, não tivesse tido a coragem, em 1997, de tornar pública a avaliação das unidades de investigação financiadas pelo Estado e de instituir essa divulgação como um princípio (cuja continuidade se espera). Ao princípio, também essa publicação caiu como uma bomba, mas o sistema habituou-se. Também as notas dos exames (que ficam muito aquém da avaliação a que as escolas podiam e deveriam ser submetidas) serão vividas como um choque primeiro e perderão depois o seu dramatismo.
Há quem receie que a publicação destes "rankings" leve a uma prática de benefício dos favorecidos e abandono dos marginalizados. A preocupação é legítima. Mas é inaceitável que, para não correr esse risco, se adopte um injusto igualitarismo, se defenda o anonimato da competência e a impunidade da incompetência, se defenda a própria ignorância do sistema sobre si próprio.
Uma das razões por que é necessário conhecer o desempenho das escolas pode ser para identificar os melhores e para os estimular a não aceitar nada menos do que a excelência. Mas tem de ser também para colmatar as insuficiências dos menos bons e para identificar e combater as razões de insucesso dos piores.
Na educação, como em muitas outras áreas (se não em todas), não há receitas de sucesso. Uma das formas mais eficazes de alcançar bons resultados é o chamado estudo das "boas práticas". A emulação dos melhores pode ajudar-nos a ter uma melhor educação. Cabe-nos exigi-la.
terça-feira, agosto 28, 2001
terça-feira, agosto 21, 2001
O gosto pela leitura
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Agosto de 2001
Crónica x/2001
Há aspectos singulares na actual polémica sobre a alteração aos programas de Língua Portuguesa para o ensino secundário. Um deles é o facto de vermos uma quantidade de gente exaltada pelo facto de o estudo pormenorizado de "Os Lusíadas" ter passado do 10º para o 12º quando muitos destes mesmos críticos apenas tiveram direito à abordagem que se fazia, se faz e vai continuar a fazer no 9º ano, sem que isso lhes tivesse parecido alguma vez um crime de lesa-majestade. A verdade é que se vai dar mais Camões (lírico e épico) nas escolas secundárias do que se dava há 25 anos, ainda que ao ouvir os críticos se fique com a ideia oposta.
Outra singularidade é a contradição entre as preocupações manifestadas pela forma como se ensina literatura nas escolas secundárias — que afastaria os jovens dos clássicos em particular e da leitura em geral — e a preocupação pela retirada de alguns autores da lista de leituras obrigatórias.
Poder-se-ia pensar que aqueles que acreditam que a inclusão de um autor no programa oficial reduz de forma dramática as probabilidades de ele voltar a ser lido alguma vez na vida, veriam com bons olhos a sua retirada da lista obrigatória. No entanto, o coração tem razões que a razão não conhece e não é essa a reacção mais frequente.
A aprendizagem da Língua Portuguesa tem fins utilitários (compreender um texto; aprender a exprimir conceitos, sentimentos), culturais (compreender a história, a diversidade de olhares), artísticos (aprender a fruir, a criar) mas deve ter como objectivo principal a aquisição pelos jovens do gosto pela leitura. Não pelos clássicos, mas pela leitura. E, para isso, é muito mais importante o "como" do que o "quê". Decidir se um autor é ou não é obrigatório, se ele vai ter direito à leitura de duas páginas e a quarenta minutos de atenção por parte do professor tem uma importância muito menor do que saber o que pode fazer esse professor para fomentar o gosto pela leitura. A primeira coisa que pode fazer para fomentar esse gosto é pôr os alunos a ler. Ler realmente, romances ou poemas, seja de que tipo for. Para descobrir que a leitura pode ser emoção e prazer, riso, aventura, paixão, é preciso antes de mais começar a ler. Antes de gostar de Eça gosta-se de Robinson Crusoe ou mesmo de livros de cóbois. Quando a escola se preocupar em levar a leitura aos jovens em vez de "dar" autores servidos em excertos esquartejados, o seu trabalho estará meio feito.
Dizer que a escola destrói os autores e os transforma em cascas secas não é uma questão de opinião. Há autores que resistem ao tratamento (Camões é certamente um deles), mas são raros. Há alunos que gostam de Eça APESAR de terem "dado" Eça na escola, mas estes alunos também são raros. Há quem descubra a leitura na escola mas, por cada um destes, há dez que passam a identificar leitura com sacrifício e secura. É mais importante discutir isso que a composição da Lista. Se a Lista for um instrumento de obscurantismo será uma bênção e uma honra não constar dela.
Texto publicado no jornal Público a 21 de Agosto de 2001
Crónica x/2001
Há aspectos singulares na actual polémica sobre a alteração aos programas de Língua Portuguesa para o ensino secundário. Um deles é o facto de vermos uma quantidade de gente exaltada pelo facto de o estudo pormenorizado de "Os Lusíadas" ter passado do 10º para o 12º quando muitos destes mesmos críticos apenas tiveram direito à abordagem que se fazia, se faz e vai continuar a fazer no 9º ano, sem que isso lhes tivesse parecido alguma vez um crime de lesa-majestade. A verdade é que se vai dar mais Camões (lírico e épico) nas escolas secundárias do que se dava há 25 anos, ainda que ao ouvir os críticos se fique com a ideia oposta.
Outra singularidade é a contradição entre as preocupações manifestadas pela forma como se ensina literatura nas escolas secundárias — que afastaria os jovens dos clássicos em particular e da leitura em geral — e a preocupação pela retirada de alguns autores da lista de leituras obrigatórias.
Poder-se-ia pensar que aqueles que acreditam que a inclusão de um autor no programa oficial reduz de forma dramática as probabilidades de ele voltar a ser lido alguma vez na vida, veriam com bons olhos a sua retirada da lista obrigatória. No entanto, o coração tem razões que a razão não conhece e não é essa a reacção mais frequente.
A aprendizagem da Língua Portuguesa tem fins utilitários (compreender um texto; aprender a exprimir conceitos, sentimentos), culturais (compreender a história, a diversidade de olhares), artísticos (aprender a fruir, a criar) mas deve ter como objectivo principal a aquisição pelos jovens do gosto pela leitura. Não pelos clássicos, mas pela leitura. E, para isso, é muito mais importante o "como" do que o "quê". Decidir se um autor é ou não é obrigatório, se ele vai ter direito à leitura de duas páginas e a quarenta minutos de atenção por parte do professor tem uma importância muito menor do que saber o que pode fazer esse professor para fomentar o gosto pela leitura. A primeira coisa que pode fazer para fomentar esse gosto é pôr os alunos a ler. Ler realmente, romances ou poemas, seja de que tipo for. Para descobrir que a leitura pode ser emoção e prazer, riso, aventura, paixão, é preciso antes de mais começar a ler. Antes de gostar de Eça gosta-se de Robinson Crusoe ou mesmo de livros de cóbois. Quando a escola se preocupar em levar a leitura aos jovens em vez de "dar" autores servidos em excertos esquartejados, o seu trabalho estará meio feito.
Dizer que a escola destrói os autores e os transforma em cascas secas não é uma questão de opinião. Há autores que resistem ao tratamento (Camões é certamente um deles), mas são raros. Há alunos que gostam de Eça APESAR de terem "dado" Eça na escola, mas estes alunos também são raros. Há quem descubra a leitura na escola mas, por cada um destes, há dez que passam a identificar leitura com sacrifício e secura. É mais importante discutir isso que a composição da Lista. Se a Lista for um instrumento de obscurantismo será uma bênção e uma honra não constar dela.
terça-feira, agosto 14, 2001
Não há vida na Avenida
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2001
Crónica x/2001
É domingo à tarde. As faixas centrais da Avenida da Liberdade, em Lisboa, estão vazias. Deixando escorrer o olhar desde o Marquês de Pombal aos Restauradores, vê-se meia dúzia de passeantes que, em vez de caminhar pelo passeio, se aventuraram no alcatrão e avançam ao longo do lancil, tentando não fugir demasiado à sombra das árvores. Os calções, os bonés e o varrimento semicircular do olhar denunciam-nos como turistas. Lá em baixo, na placa central dos Restauradores, sob o sol, meia dúzia de miúdos ensaiam acrobacias de skate, envolvidos no ruído emitido por uma poderosa instalação sonora.
As áleas laterais estão atulhadas de carros e alguns autocarros, que avançam a passo lento.
A parte central da Avenida está (tem estado) fechada ao trânsito aos domingos no âmbito de uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa chamada "Há vida na Avenida". A imagem da Avenida desmente o "slogan": quase não há vivalma na Avenida. De vez em quando passa pelo meio do alcatrão um ou dois ciclistas ou uma trotinete, um casal empurra uma criança num carrinho de pedais ao longo do corredor do Bus, mas é tudo. Não há nesta Avenida mais vida do que num domingo normal, quando o trânsito automóvel está aberto e os autocarros da Carris passam galhardamente a 80 quilómetros à hora avenida abaixo e os carros aproveitam, para evitar o desperdício de um cruzamento vazio, aqueles primeiros três segundos de sinal vermelho em que os outros carros ainda não se atreveram a arrancar.
Todas as entradas na parte central da Avenida estão devidamente fechadas, com barreiras de plástico amarelas, fitas de plástico e polícias postados em todos os cruzamentos, não vá uma manifestação de camionistas querer entrar à força naqueles dois quilómetros reservados àquele cidadão australiano que sobe o alcatroado, ou tentar roubar uma das barreiras amarelas.
É verdade que há tão poucas ideias nesta Câmara que custa criticar quando aparece uma, mas a desproporção entre o custo e o benefício desta é descomunal. É possível que a ideia tenha tido alguma generosidade, querido dar a cidade a fruir aos seus cidadãos, dar lugar aos peões, etc. Mas a forma de a pôr em prática é tão ineficiente que seria mais inteligente dar-lhe um fim rápido. É verdade que a Câmara tentou organizar algumas actividades de animação de rua, mas foram tão pindéricas que é mais piedoso ignorá-las.
A preocupação da autarquia tem de ser uma estratégia de desenvolvimento sustentável e não a táctica das medidas de emergência. A Avenida não é um bom lugar para esta ideia porque é demasiado importante como artéria rodoviária, mesmo aos domingos; porque é a subir; porque não tem lojas abertas; porque quase não tem cafés; porque não tem equipamentos; porque não tem a beleza e a frescura que um local ao pé do rio (por exemplo) pode ter; porque não é um local de passeio habitual dos lisboetas; e, finalmente, porque a animação da cidade deve ser uma prática que embebe toda a actividade da autarquia e não pode ser concebida à maneira de uma táctica de guerrilha urbana, que obriga a cortar as ruas principais.
Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2001
Crónica x/2001
É domingo à tarde. As faixas centrais da Avenida da Liberdade, em Lisboa, estão vazias. Deixando escorrer o olhar desde o Marquês de Pombal aos Restauradores, vê-se meia dúzia de passeantes que, em vez de caminhar pelo passeio, se aventuraram no alcatrão e avançam ao longo do lancil, tentando não fugir demasiado à sombra das árvores. Os calções, os bonés e o varrimento semicircular do olhar denunciam-nos como turistas. Lá em baixo, na placa central dos Restauradores, sob o sol, meia dúzia de miúdos ensaiam acrobacias de skate, envolvidos no ruído emitido por uma poderosa instalação sonora.
As áleas laterais estão atulhadas de carros e alguns autocarros, que avançam a passo lento.
A parte central da Avenida está (tem estado) fechada ao trânsito aos domingos no âmbito de uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa chamada "Há vida na Avenida". A imagem da Avenida desmente o "slogan": quase não há vivalma na Avenida. De vez em quando passa pelo meio do alcatrão um ou dois ciclistas ou uma trotinete, um casal empurra uma criança num carrinho de pedais ao longo do corredor do Bus, mas é tudo. Não há nesta Avenida mais vida do que num domingo normal, quando o trânsito automóvel está aberto e os autocarros da Carris passam galhardamente a 80 quilómetros à hora avenida abaixo e os carros aproveitam, para evitar o desperdício de um cruzamento vazio, aqueles primeiros três segundos de sinal vermelho em que os outros carros ainda não se atreveram a arrancar.
Todas as entradas na parte central da Avenida estão devidamente fechadas, com barreiras de plástico amarelas, fitas de plástico e polícias postados em todos os cruzamentos, não vá uma manifestação de camionistas querer entrar à força naqueles dois quilómetros reservados àquele cidadão australiano que sobe o alcatroado, ou tentar roubar uma das barreiras amarelas.
É verdade que há tão poucas ideias nesta Câmara que custa criticar quando aparece uma, mas a desproporção entre o custo e o benefício desta é descomunal. É possível que a ideia tenha tido alguma generosidade, querido dar a cidade a fruir aos seus cidadãos, dar lugar aos peões, etc. Mas a forma de a pôr em prática é tão ineficiente que seria mais inteligente dar-lhe um fim rápido. É verdade que a Câmara tentou organizar algumas actividades de animação de rua, mas foram tão pindéricas que é mais piedoso ignorá-las.
A preocupação da autarquia tem de ser uma estratégia de desenvolvimento sustentável e não a táctica das medidas de emergência. A Avenida não é um bom lugar para esta ideia porque é demasiado importante como artéria rodoviária, mesmo aos domingos; porque é a subir; porque não tem lojas abertas; porque quase não tem cafés; porque não tem equipamentos; porque não tem a beleza e a frescura que um local ao pé do rio (por exemplo) pode ter; porque não é um local de passeio habitual dos lisboetas; e, finalmente, porque a animação da cidade deve ser uma prática que embebe toda a actividade da autarquia e não pode ser concebida à maneira de uma táctica de guerrilha urbana, que obriga a cortar as ruas principais.
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