por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi objecto de notícia há dias nestas páginas uma determinação do comandante do Grupo Territorial de S. João da Madeira da GNR que criticava os seus agentes por não se empenharem mais na sua missão. Essa falta de empenho verificar-se-ia tanto no âmbito das operações de policiamento geral, como na fiscalização rodoviária e na prevenção e combate à criminalidade. O comandante afirmava que essa situação se traduzia no "não levantamento de autos de contra-ordenação" (vulgo multas) e exortava os seus homens a aumentar a sua actividade neste domínio.
A medida levantou um coro de protestos na corporação — ainda que moderado pela lei da rolha aí em vigor — com os agentes a queixar-se de que os queriam lançar na "caça à multa" e a denunciar uma situação generalizada no país segundo a qual se esperaria deles que passassem "cinco multas por mês".
É claro que seria irrazoável e imprudente definir os objectivos de acção de uma corporação como a GNR em termos de um número mínimo de multas a passar por agente por dia. E se é isso o que pretende o comandante em causa, seria conveniente que ele recebesse algum esclarecimento por parte da hierarquia.
Mas, se a existência de multas não prova que tudo esteja bem, a sua ausência garante que algo está mal: não é possível fazer um policiamento irrepreensível sem passar uma multa quando se possuem responsabilidades como o policiamento geral, a fiscalização rodoviária e a prevenção e combate à criminalidade.
Não conheço S. João da Madeira suficientemente bem para poder avaliar as suas necessidades de policiamento (segundo a GNR a zona apresenta "índices elevados" de criminalidade) e muito menos para prever o número médio de multas que poderia ser considerado razoável para um guarda cumpridor e razoável. Mas sei que, em Lisboa, seria preciso que um corpo policial fosse extraordinariamente descuidado (ou algo pior) para que, cumprindo funções como policiamento geral, fiscalização rodoviária e prevenção e combate à criminalidade cada agente apenas levasse a efeito cinco "autos de contra-ordenação" por mês.
A expressão pejorativa "caça à multa" pode aplicar-se a situações onde a polícia emboscada espera o incauto passante num local propício a uma transgressão inócua (ou cuja geografia concreta até a incentiva) para o apanhar com a boca na botija.
Mas não se trata de "caça à multa" quando a polícia multa quem transgride ou prende quem comete um crime. É claro que a polícia não tem de (nem deve) multar sempre que pode. É conveniente que um agente da autoridade seja razoável e compreensivo. Mas não é admissível que ele seja sistematicamente tolerante com todos os desmandos e abusos.
Pelo meu lado, gostaria imenso que as polícias se empenhassem activamente na caça aos condutores embriagados nas noites de sexta-feira, por exemplo. Ou que a inspecção fiscal levasse o seu ardor venatório até à área da caça grossa.
E é lamentável que se passe à polícia a ideia de que não queremos que ela faça isso só por receio de que um dia a multa seja nossa.
terça-feira, maio 29, 2001
terça-feira, maio 22, 2001
Serviços Especiais
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.
terça-feira, maio 15, 2001
A táctica dos noves
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Maio de 2001
Crónica x/2001
“Grande promoção! Aproveite já! Apenas 4.999 escudos!”
Quatro mil novecentos e noventa e nove escudos. Novecentos e noventa e nove escudos. Nove mil novecentos e noventa e nove escudos. Nem chega a quatro contos, a um conto, a dez contos.
Se pertence à minoria a quem estes truques de marketing irritam, para quem esta profusão de noves é uma fiada de grãos de areia a cair nas engrenagens do seu cálculo mental, um carreiro de formigas pretas a esgueirar-se por uma racha aberta na fachada branca da racionalidade, anime-se: não está só. Mas desiluda-se também: pertence a uma pequena minoria incompreendida, que sabe aritmética mas não tem direito a qualquer discriminação positiva.
Porque é que os supermercados, as empresas de telemóveis, os stands de automóveis, as lojas de ferramentas e praticamente todas as outras lojas do mundo oferecem produtos a preços menos que redondos? Porque funciona. É triste mas é verdade.
O que é que você faz quando vê as calças que ambiciona nuns saldos a 4.999 escudos? Pensa que por cinco contos aquelas calças são baratas? Pois (dizem os especialistas) não é isso que a maior parte das pessoas pensa. A maior parte das pessoas (dizem os especialistas) pensa “Uau! Calças destas a quatro contos e tal!”
E o “tal” dissolve os 999 escudos restantes com a eficácia de ácido sulfúrico derramado em cima de uma moeda de cobre.
Claro que a empregada da caixa não vai ter um escudo (nem dois escudos, porque você comprou dois pares de calças) para lhe dar de troco, o que faz com que as calças lhe tenham custado uns redondíssimos cinco contos, mas no momento em que você sai da loja, feliz a abanar o saco de papel, os noves fizeram o seu trabalho.
Implícita na táctica dos noves está a depreciativa ideia de que você e eu não sabemos somar e que só conseguimos reparar no primeiro algarismo de um dado número. Pelo meu lado, sinto que o escudo que falta nestes preços é meu e que me foi ilegitimamente surripiado só porque os vendedores deste mundo acham que sou trouxa. Com aquele escudo, eles querem comprar a nossa aquiescência, o nosso sentido crítico, a nossa consciência.
Eles sabem que o meu preço devia levar três zeros com o devido salto para o milhar seguinte (já para não falar do caso em que as calças até custam normalmente 4800 escudos). Mas tiram-me o escudo, fazendo alarde da generosidade, e vendem-mo como uma maçã à qual faltasse uma dentada, como um bife pesado com o dedo na balança, como um livro sem uma página.
Acha que não posso dizer que me roubam porque, de facto, vou pagar menos, nem que seja só um escudo (se a menina da caixa tivesse o escudo para o troco)?
Não é assim. Quando compramos um produto, uma das coisas que compramos é o seu preço. Quando uma etiqueta anuncia 4.999 escudos, a mensagem subliminar que ela nos pretende transmitir é que as calças custam “quatro contos e tal”. E todos sabemos que isso não é verdade.
Os “999” não são senão uma forma de publicidade enganosa dos preços. Não se deixe enganar. Quando for às compras, exija os seus preços inteiros. Não permita que lhe roubem um único escudo.
Texto publicado no jornal Público a 15 de Maio de 2001
Crónica x/2001
“Grande promoção! Aproveite já! Apenas 4.999 escudos!”
Quatro mil novecentos e noventa e nove escudos. Novecentos e noventa e nove escudos. Nove mil novecentos e noventa e nove escudos. Nem chega a quatro contos, a um conto, a dez contos.
Se pertence à minoria a quem estes truques de marketing irritam, para quem esta profusão de noves é uma fiada de grãos de areia a cair nas engrenagens do seu cálculo mental, um carreiro de formigas pretas a esgueirar-se por uma racha aberta na fachada branca da racionalidade, anime-se: não está só. Mas desiluda-se também: pertence a uma pequena minoria incompreendida, que sabe aritmética mas não tem direito a qualquer discriminação positiva.
Porque é que os supermercados, as empresas de telemóveis, os stands de automóveis, as lojas de ferramentas e praticamente todas as outras lojas do mundo oferecem produtos a preços menos que redondos? Porque funciona. É triste mas é verdade.
O que é que você faz quando vê as calças que ambiciona nuns saldos a 4.999 escudos? Pensa que por cinco contos aquelas calças são baratas? Pois (dizem os especialistas) não é isso que a maior parte das pessoas pensa. A maior parte das pessoas (dizem os especialistas) pensa “Uau! Calças destas a quatro contos e tal!”
E o “tal” dissolve os 999 escudos restantes com a eficácia de ácido sulfúrico derramado em cima de uma moeda de cobre.
Claro que a empregada da caixa não vai ter um escudo (nem dois escudos, porque você comprou dois pares de calças) para lhe dar de troco, o que faz com que as calças lhe tenham custado uns redondíssimos cinco contos, mas no momento em que você sai da loja, feliz a abanar o saco de papel, os noves fizeram o seu trabalho.
Implícita na táctica dos noves está a depreciativa ideia de que você e eu não sabemos somar e que só conseguimos reparar no primeiro algarismo de um dado número. Pelo meu lado, sinto que o escudo que falta nestes preços é meu e que me foi ilegitimamente surripiado só porque os vendedores deste mundo acham que sou trouxa. Com aquele escudo, eles querem comprar a nossa aquiescência, o nosso sentido crítico, a nossa consciência.
Eles sabem que o meu preço devia levar três zeros com o devido salto para o milhar seguinte (já para não falar do caso em que as calças até custam normalmente 4800 escudos). Mas tiram-me o escudo, fazendo alarde da generosidade, e vendem-mo como uma maçã à qual faltasse uma dentada, como um bife pesado com o dedo na balança, como um livro sem uma página.
Acha que não posso dizer que me roubam porque, de facto, vou pagar menos, nem que seja só um escudo (se a menina da caixa tivesse o escudo para o troco)?
Não é assim. Quando compramos um produto, uma das coisas que compramos é o seu preço. Quando uma etiqueta anuncia 4.999 escudos, a mensagem subliminar que ela nos pretende transmitir é que as calças custam “quatro contos e tal”. E todos sabemos que isso não é verdade.
Os “999” não são senão uma forma de publicidade enganosa dos preços. Não se deixe enganar. Quando for às compras, exija os seus preços inteiros. Não permita que lhe roubem um único escudo.
terça-feira, maio 08, 2001
Os votantes distraídos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Maio de 2001
Crónica x/2001
O congresso do Partido Socialista que teve lugar este fim-de-semana foi exactamente aquilo que esperavam os que tinham menos esperanças: uma cerimónia de entronização da actual liderança, a formalização de uma purga das vozes críticas e uma constatação geral da crise volitiva que (des)anima o partido.
O congresso navegou entre a ausência daquela paixão que animou a primeira legislatura socialista e uma boa consciência contentada, que seria ridícula mas não seria preocupante se não se desse o caso de este ser o estado de espírito do partido que está no Governo e se o estado do país não fosse o que é.
Os "debates" com que o congresso arrancou na sexta-feira — numa cosmética mas frustrada tentativa de injectar na reunião algo do ânimo dos Estados Gerais — acabaram por dar o tom geral.
O que é mais incongruente na posição deste PS é a sensação que dá de achar que ninguém tem o direito de lhe pedir mais, como se a urgência e a insatisfação perante o "status quo" não fossem precisamente uma marca da esquerda e a razão das vitórias socialistas.
Mais paixão da educação? Mas o "slogan" já durou quatro anos, o que se pode pedir mais? Guterres não disse já que a tarefa é para uma geração? Justiça social? Mas não se criou o Rendimento Mínimo Garantido? O que se pode querer mais? Saúde? Justiça? Reforma fiscal? Mas não se sabe que o Governo faz o que pode? Quem é que tem a lata de exigir mais?
Como se fosse necessária uma prova documental da futilidade deste congresso, da pouca seriedade da discussão e da sua falta de ambição, ela veio com a notícia de que o próprio primeiro-ministro — assim como Almeida Santos, Jorge Coelho e muitos outros — tinha votado, por pura distracção, a favor de uma moção sectorial, apresentada pela secção socialista da EDP, onde se exige uma "imediata remodelação governamental" e se acusa o Governo de ter "prosseguido uma política cinzenta" que "mantém o estrangulamento do progresso do país".
O documento, que foi aprovado por esmagadora maioria, afirma ainda que o PS "não desenvolveu uma reforma de fundo em sectores como a saúde, justiça, fiscalidade, educação", diz que a reforma fiscal não é mais que uma simples "operação de cosmética" e — com uma clarividência premonitória — garante que a democracia interna no partido não passa de um "mero formalismo".
A pergunta que se coloca é: o que vai agora fazer a direcção nacional do PS? Vai aplicar as propostas da moção? Vai impugnar a sua aprovação? Vai desafiar a secção socialista da EDP a apresentar um candidato a secretário-geral?
O mais provável é que venha dizer, simplesmente, que a moção não vale porque estavam todos distraídos quando votaram. Afinal não acontece tantas vezes votar-se nalguma coisa ou nalgum partido por estarmos distraídos? Não aconteceu isso a tanta gente nas últimas eleições?
Texto publicado no jornal Público a 8 de Maio de 2001
Crónica x/2001
O congresso do Partido Socialista que teve lugar este fim-de-semana foi exactamente aquilo que esperavam os que tinham menos esperanças: uma cerimónia de entronização da actual liderança, a formalização de uma purga das vozes críticas e uma constatação geral da crise volitiva que (des)anima o partido.
O congresso navegou entre a ausência daquela paixão que animou a primeira legislatura socialista e uma boa consciência contentada, que seria ridícula mas não seria preocupante se não se desse o caso de este ser o estado de espírito do partido que está no Governo e se o estado do país não fosse o que é.
Os "debates" com que o congresso arrancou na sexta-feira — numa cosmética mas frustrada tentativa de injectar na reunião algo do ânimo dos Estados Gerais — acabaram por dar o tom geral.
O que é mais incongruente na posição deste PS é a sensação que dá de achar que ninguém tem o direito de lhe pedir mais, como se a urgência e a insatisfação perante o "status quo" não fossem precisamente uma marca da esquerda e a razão das vitórias socialistas.
Mais paixão da educação? Mas o "slogan" já durou quatro anos, o que se pode pedir mais? Guterres não disse já que a tarefa é para uma geração? Justiça social? Mas não se criou o Rendimento Mínimo Garantido? O que se pode querer mais? Saúde? Justiça? Reforma fiscal? Mas não se sabe que o Governo faz o que pode? Quem é que tem a lata de exigir mais?
Como se fosse necessária uma prova documental da futilidade deste congresso, da pouca seriedade da discussão e da sua falta de ambição, ela veio com a notícia de que o próprio primeiro-ministro — assim como Almeida Santos, Jorge Coelho e muitos outros — tinha votado, por pura distracção, a favor de uma moção sectorial, apresentada pela secção socialista da EDP, onde se exige uma "imediata remodelação governamental" e se acusa o Governo de ter "prosseguido uma política cinzenta" que "mantém o estrangulamento do progresso do país".
O documento, que foi aprovado por esmagadora maioria, afirma ainda que o PS "não desenvolveu uma reforma de fundo em sectores como a saúde, justiça, fiscalidade, educação", diz que a reforma fiscal não é mais que uma simples "operação de cosmética" e — com uma clarividência premonitória — garante que a democracia interna no partido não passa de um "mero formalismo".
A pergunta que se coloca é: o que vai agora fazer a direcção nacional do PS? Vai aplicar as propostas da moção? Vai impugnar a sua aprovação? Vai desafiar a secção socialista da EDP a apresentar um candidato a secretário-geral?
O mais provável é que venha dizer, simplesmente, que a moção não vale porque estavam todos distraídos quando votaram. Afinal não acontece tantas vezes votar-se nalguma coisa ou nalgum partido por estarmos distraídos? Não aconteceu isso a tanta gente nas últimas eleições?
terça-feira, maio 01, 2001
O CCB foi uma festa
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2001
Crónica x/2001
A Festa da Música encheu este fim-de-semana mais uma vez o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, oferecendo três magníficos dias cheios de concertos dedicados à música russa.
É um privilégio viver uma Festa da Música porque a multiplicação da oferta de concertos e a concentração de excelentes intérpretes provoca uma excitação particular. Se os gafanhotos se excitam através da fricção das asas uns nos outros e se os centros comerciais são estudados para fornecer a agitação necessária e suficiente para promover a fúria de comprar, os melómanos excitam-se através da troca de comentários à saída dos auditórios, do som das ovações que sai das salas para onde não conseguiram bilhete, dos comentários dos amigos que se encontram sempre nestas ocasiões. "Impressionantes os coros!", "Já ouviste o Berezovsky?", "E os Momentos Musicais pelo Lugansky!?" Em duas horas, todos os intérpretes e compositores se tornam muito de lá de casa.
Uma parte da excitação vem do facto de se saber que ali, numa daquelas salas aveludadas, dos dedos de um daqueles homens e mulheres que atravessam os corredores transportando caixas de formas estranhas, uns de fraque, outros em mangas de camisa, vai sair provavelmente algo de sublime. Aconteceu com o violoncelista Alexander Kniazev, com o consagrado Pieter Wispelwey, com o Quarteto Debussy, e certamente em muitos mais momentos, fugazes mas mágicos, nas muitas salas da Festa.
Claro que os 41.000 bilhetes vendidos deste ano não representam 41.000 espectadores (os espectadores compram bilhetes para a Festa às meias-dúzias e às dúzias) e seria bom que o espectáculo pudesse alargar-se a um público ainda mais amplo. Seria bom ver mais crianças de todas as idades e famílias inteiras na Festa, seria bom poder tocar e ouvir música ao ar livre (nem todos os instrumentos se prestam, é verdade), seria bom ter músicos que falassem mais com o público, que aqui e ali a dessacralização fosse levada um pouco mais longe, que houvesse espaços pensados para mais contactos informais com os músicos. Tudo isso seria ainda melhor.
Mas a verdade é que a Festa oferece uma verdadeira barrigada de música e deixa, no fim, como toda a verdadeira festa, a nostalgia e as saudades da Festa do ano que vem (já afiamos o dente para Haydn e Mozart). Claro que haverá outros concertos e entretanto gozaremos os discos das peças e dos intérpretes que descobrimos aqui, mas a Festa é algo que já se tornou indispensável, de que já sentimos a falta.
A Festa da Música foi o melhor presente de despedida que Miguel Lobo Antunes nos podia deixar, no momento em que abandona o Centro Cultural de Belém, rumo não se sabe onde. É estranho que saia sem que o Estado lhe faça uma proposta aliciante para continuar a exercer os seus talentos em proveito público, seja onde for. Mas seria lamentável que a sua saída se saldasse por um retrocesso no caminho traçado até aqui pelo CCB na conquista de novos públicos para a cultura.
Obrigado, Miguel Lobo Antunes.
Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2001
Crónica x/2001
A Festa da Música encheu este fim-de-semana mais uma vez o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, oferecendo três magníficos dias cheios de concertos dedicados à música russa.
É um privilégio viver uma Festa da Música porque a multiplicação da oferta de concertos e a concentração de excelentes intérpretes provoca uma excitação particular. Se os gafanhotos se excitam através da fricção das asas uns nos outros e se os centros comerciais são estudados para fornecer a agitação necessária e suficiente para promover a fúria de comprar, os melómanos excitam-se através da troca de comentários à saída dos auditórios, do som das ovações que sai das salas para onde não conseguiram bilhete, dos comentários dos amigos que se encontram sempre nestas ocasiões. "Impressionantes os coros!", "Já ouviste o Berezovsky?", "E os Momentos Musicais pelo Lugansky!?" Em duas horas, todos os intérpretes e compositores se tornam muito de lá de casa.
Uma parte da excitação vem do facto de se saber que ali, numa daquelas salas aveludadas, dos dedos de um daqueles homens e mulheres que atravessam os corredores transportando caixas de formas estranhas, uns de fraque, outros em mangas de camisa, vai sair provavelmente algo de sublime. Aconteceu com o violoncelista Alexander Kniazev, com o consagrado Pieter Wispelwey, com o Quarteto Debussy, e certamente em muitos mais momentos, fugazes mas mágicos, nas muitas salas da Festa.
Claro que os 41.000 bilhetes vendidos deste ano não representam 41.000 espectadores (os espectadores compram bilhetes para a Festa às meias-dúzias e às dúzias) e seria bom que o espectáculo pudesse alargar-se a um público ainda mais amplo. Seria bom ver mais crianças de todas as idades e famílias inteiras na Festa, seria bom poder tocar e ouvir música ao ar livre (nem todos os instrumentos se prestam, é verdade), seria bom ter músicos que falassem mais com o público, que aqui e ali a dessacralização fosse levada um pouco mais longe, que houvesse espaços pensados para mais contactos informais com os músicos. Tudo isso seria ainda melhor.
Mas a verdade é que a Festa oferece uma verdadeira barrigada de música e deixa, no fim, como toda a verdadeira festa, a nostalgia e as saudades da Festa do ano que vem (já afiamos o dente para Haydn e Mozart). Claro que haverá outros concertos e entretanto gozaremos os discos das peças e dos intérpretes que descobrimos aqui, mas a Festa é algo que já se tornou indispensável, de que já sentimos a falta.
A Festa da Música foi o melhor presente de despedida que Miguel Lobo Antunes nos podia deixar, no momento em que abandona o Centro Cultural de Belém, rumo não se sabe onde. É estranho que saia sem que o Estado lhe faça uma proposta aliciante para continuar a exercer os seus talentos em proveito público, seja onde for. Mas seria lamentável que a sua saída se saldasse por um retrocesso no caminho traçado até aqui pelo CCB na conquista de novos públicos para a cultura.
Obrigado, Miguel Lobo Antunes.
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