por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Três horas e 18 minutos é o tempo que passa em média, por dia, um português diante do seu televisor. Três horas e 18 minutos que poderiam ser, na melhor das hipóteses, de divertimento e descontracção, mas que são compostas principalmente por embrutecimento opiáceo e nesse conformismo envergonhado que se chama "zapping".
Poder-se-á dizer que "há quem goste", mas a questão é que há muita gente que não gosta e, não gostando, vê. Ou que nem se pergunta se gosta e o faz porque a televisão entrou na sua natureza. A televisão inscreveu-se no nosso quotidiano como uma dependência e é como uma dependência que sobrevive, um vício adormecente, que come o nosso tempo como uma térmite, que só tenta acordar-nos para nos lembrar que "shampoo" temos de usar.
Todos sabemos que a televisão pode ser algo de diferente e que às vezes é... mas também sabemos que isso é raro. A maioria do que se vê na televisão é mau, uma grande parte é verdadeiro lixo e depois resta ainda aquela agressão reiterada chamada publicidade.
É por tudo isto que iniciativas como a da Semana Sem Televisão, lançada pela revista canadiana "Adbusters" e que teve ontem início — ou a sua tímida contrapartida nacional, os quinze minutos sem televisão de sábado passado, de 20h00 às 20h15 — são bem-vindos.
Bem-vindos porque nos mostram que há uma alternativa, que não estamos sós e que nos lembram que, se calhar, até podemos realmente mudar o mundo (aquilo a que se chamava política, lembram-se?).
Seria ingenuidade esperar que muita gente aderisse a um programa de protesto tão duro como o canadiano, mas é importante lembrar que é possível agarrar naquelas três horas e 18 minutos e fazer outra coisa.
Pelo menos empenhe-se em baixar a média nacional, olhe para as três horas e 18 minutos e tente reduzir, como faz com os cigarros, como faz com as gorduras.
Na realidade, aquelas três horas e 18 minutos são calorias que você está a consumir a mais, são fatias de toucinho frito que vão encher de gordura as artérias da sua inteligência, atufar de celulite as coxas da sua imaginação. Se não conseguir cortar de repente não corte (até lhe podia fazer mal), mas reduza.
Um telejornal representa pouco mais que uma cenoura cozida, isso pode ver (ainda que às vezes apareçam cheios de molho gordurento) e também pode condescender até um episódio por dia daquele folhetim, mas não se deixe enganar pelos "talk shows" que parecem dietéticos mas estão cheios de colesterol e nem sequer sabem tão bem como isso. E não engula nenhum concurso sem ler antes a informação em letras pequeninas no fundo da caixa. (Atenção que eles às vezes contam as calorias em minutos quando sabem que todos vemos cinquenta minutos mais os intervalos.) Lembre-se de que bastam dez minutos de um concurso para lhe engordurar o olhar e reduzir a libido.
Se não conseguir melhor, fique-se pelas três horas e 17 minutos, mas baixe a média. Comece hoje, comece amanhã, mas comece. Acrescente uns minutos à sua vida. Não ligue a televisão.
terça-feira, abril 24, 2001
terça-feira, abril 17, 2001
Mais leis para a estrada
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 17 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Algumas horas antes do início das mini-férias da Páscoa, onde se esperava a habitual carnificina rodoviária, o Governo veio apresentar um novo pacote de medidas de combate aos acidentes.
A razoabilidade das medidas propostas não está em causa. O que suscita alguma surpresa é o facto de o Governo e a Administração Pública continuarem a falar da sinistralidade como se se tratasse de algo que a simples produção de legislação pudesse controlar.
Ao ouvir os discursos sobre o tema, ficamos com a convicção de que se foram experimentando sucessivas políticas que tudo levava a crer que seriam eficazes, que elas foram falhando sucessivamente para nossa enorme surpresa e que somos obrigados a puxar pela imaginação, tentando abordagens legislativas originais, para ver se se acerta com a solução, que continua a fazer-se esquiva.
A falácia deste raciocínio é que, na realidade, as soluções não foram experimentadas. Tudo aquilo que compõe o Código da Estrada, com excepção da circulação pela direita, é ignorado pela generalidade dos automobilistas, com alegria e impunidade, e vai continuar a sê-lo.
Os automobilistas portugueses não vêem o Código da Estrada como um instrumento social que visa garantir a fluidez e a segurança do tráfego, mas como uma ferramenta legal para decidir quem paga quando se bate. O problema é que às vezes não se bate apenas mas também se mata.
A verdade é que as leis que regulam a circulação não são aplicadas, a não ser em períodos excepcionais de zelo como as tontas operações de "tolerância zero" — que não são senão caricaturas de medidas razoáveis. Não é uma multa por se exceder o limite de velocidade em 10 quilómetros à hora que leva um automobilista a sentir a necessidade de cumprir a lei. Pelo contrário.
Todos sabemos a razão da esmagadora maioria dos acidentes na estrada: excesso de velocidade, ultrapassagens irregulares, etc. É evidente que seria possível identificar os prevaricadores perigosos e aplicar a lei de forma dissuasora (já experimentaram colocar-se na faixa da esquerda de uma auto-estrada a 120 quilómetros à hora? Subir a Av. da República de Lisboa a 100 à hora e ver se conseguem ultrapassar alguém? Contar quantos carros passam com vermelho na Av. da Liberdade?), mas é claro que o Governo não o pretende fazer. E não o quer fazer porque sabe que isso seria visto como um ataque por aquela faixa do seu eleitorado para quem o carro é parte integrante da imagem do seu corpo — a imagem mais correcta é a de um implante peniano, o que também é válido para as mulheres.
A aplicação da lei não basta. A existência de transportes públicos que sejam uma alternativa possível e agradável ao transporte privado é essencial. Mas sem a vontade de afrontar aqueles que acham que têm um direito divino a ultrapassar pela direita, os mortos e os feridos vão continuar.
Texto publicado no Público de 17 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Algumas horas antes do início das mini-férias da Páscoa, onde se esperava a habitual carnificina rodoviária, o Governo veio apresentar um novo pacote de medidas de combate aos acidentes.
A razoabilidade das medidas propostas não está em causa. O que suscita alguma surpresa é o facto de o Governo e a Administração Pública continuarem a falar da sinistralidade como se se tratasse de algo que a simples produção de legislação pudesse controlar.
Ao ouvir os discursos sobre o tema, ficamos com a convicção de que se foram experimentando sucessivas políticas que tudo levava a crer que seriam eficazes, que elas foram falhando sucessivamente para nossa enorme surpresa e que somos obrigados a puxar pela imaginação, tentando abordagens legislativas originais, para ver se se acerta com a solução, que continua a fazer-se esquiva.
A falácia deste raciocínio é que, na realidade, as soluções não foram experimentadas. Tudo aquilo que compõe o Código da Estrada, com excepção da circulação pela direita, é ignorado pela generalidade dos automobilistas, com alegria e impunidade, e vai continuar a sê-lo.
Os automobilistas portugueses não vêem o Código da Estrada como um instrumento social que visa garantir a fluidez e a segurança do tráfego, mas como uma ferramenta legal para decidir quem paga quando se bate. O problema é que às vezes não se bate apenas mas também se mata.
A verdade é que as leis que regulam a circulação não são aplicadas, a não ser em períodos excepcionais de zelo como as tontas operações de "tolerância zero" — que não são senão caricaturas de medidas razoáveis. Não é uma multa por se exceder o limite de velocidade em 10 quilómetros à hora que leva um automobilista a sentir a necessidade de cumprir a lei. Pelo contrário.
Todos sabemos a razão da esmagadora maioria dos acidentes na estrada: excesso de velocidade, ultrapassagens irregulares, etc. É evidente que seria possível identificar os prevaricadores perigosos e aplicar a lei de forma dissuasora (já experimentaram colocar-se na faixa da esquerda de uma auto-estrada a 120 quilómetros à hora? Subir a Av. da República de Lisboa a 100 à hora e ver se conseguem ultrapassar alguém? Contar quantos carros passam com vermelho na Av. da Liberdade?), mas é claro que o Governo não o pretende fazer. E não o quer fazer porque sabe que isso seria visto como um ataque por aquela faixa do seu eleitorado para quem o carro é parte integrante da imagem do seu corpo — a imagem mais correcta é a de um implante peniano, o que também é válido para as mulheres.
A aplicação da lei não basta. A existência de transportes públicos que sejam uma alternativa possível e agradável ao transporte privado é essencial. Mas sem a vontade de afrontar aqueles que acham que têm um direito divino a ultrapassar pela direita, os mortos e os feridos vão continuar.
terça-feira, abril 10, 2001
O Volvo em cima do passeio
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 10 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Domingo, depois do almoço. Um dia glorioso. O sítio é a esplanada do Jardim das Oliveiras, no Centro Cultural de Belém.
Um carro avança ao longo do CCB, frente ao rio, pelo caminho que dá acesso ao parque de estacionamento subterrâneo. Passa a entrada do parque e vai estacionar umas dezenas de metros mais à frente, duas rodas sobre o passeio, duas rodas no asfalto, na via de saída do parque de estacionamento para a Av. da Índia, a dois passos da escada de pedra que dá acesso ao terraço.
O Secretário de Estado da Defesa Nacional, Miranda Calha, sai do carro, indumentária informal de fim de semana, seguido de uns acompanhantes e dirige-se ao recinto do CCB. Uma tarde descontraída em Belém.
O parque de estacionamento do CCB está praticamente vazio. Não foi por falta de lugar que o condutor preferiu não estacionar o carro no parque. Nenhum dos seus passageiros dá mostras de dificuldades de locomoção que possam justificar o recurso ao lugar escolhido (nem este aliás parece mais acessível que o parque).
As pessoas que, do alto do terraço, olham o político sair do carro e o acompanham com o olhar enquanto ele se dirige à esplanada, não parecem nem surpreendidas nem chocadas com o lugar do estacionamento. Aqueles lugares costumam estar ocupados por carros cujos donos preferem poupar os 200 escudos do parque, ainda que as cilindradas levem a crer que o desembolso fosse suportável.
Afinal é domingo, está um lindo dia, e estacionar displicentemente em cima do passeio tem algo de desportivo — ainda que o carro não seja um todo-o terreno especialmente desenhado para galgar passeios mas sim um Volvo de proporções governamentais.
Sejamos justos e sistemáticos. É possível que o membro do Governo tenha estacionado em cima do passeio por várias razões:
a) o estacionamento é pago e a infracção de borla
b) um membro do Governo tem de mostrar que o poder é imune às críticas
c) pensava que o estacionamento em cima do passeio tinha passado a ser obrigatório desde a última revisão constitucional
d) nunca lhe disseram que isso dificulta a vida dos peões porque há vários anos que não fala com nenhum
e) tem a certeza de que nenhum agente da autoridade está a trabalhar neste dia glorioso e, se estiver, sabe que ele/ela nunca terá a irrazoabilidade de o multar
f) o ar domingueiro é apenas um disfarce. O membro do Governo está na realidade envolvido numa operação vital para a Defesa Nacional e é fundamental estacionar num local que lhe permita uma fuga rápida
g) as leis que regulam o estacionamento, os limites de velocidade ou o pagamento de impostos são apenas armadilhas para capturar os indivíduos sem iniciativa e Portugal precisa de iniciativa para vencer os desafios do futuro
h) o Secretário de Estado está-se borrifando para as normas de estacionamento, os peões, a lei, o bem-estar das pessoas que não usam um Volvo de proporções governamentais e para este teste de escolha múltipla.
Pode escolher mais de uma resposta.
Texto publicado no Público de 10 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Domingo, depois do almoço. Um dia glorioso. O sítio é a esplanada do Jardim das Oliveiras, no Centro Cultural de Belém.
Um carro avança ao longo do CCB, frente ao rio, pelo caminho que dá acesso ao parque de estacionamento subterrâneo. Passa a entrada do parque e vai estacionar umas dezenas de metros mais à frente, duas rodas sobre o passeio, duas rodas no asfalto, na via de saída do parque de estacionamento para a Av. da Índia, a dois passos da escada de pedra que dá acesso ao terraço.
O Secretário de Estado da Defesa Nacional, Miranda Calha, sai do carro, indumentária informal de fim de semana, seguido de uns acompanhantes e dirige-se ao recinto do CCB. Uma tarde descontraída em Belém.
O parque de estacionamento do CCB está praticamente vazio. Não foi por falta de lugar que o condutor preferiu não estacionar o carro no parque. Nenhum dos seus passageiros dá mostras de dificuldades de locomoção que possam justificar o recurso ao lugar escolhido (nem este aliás parece mais acessível que o parque).
As pessoas que, do alto do terraço, olham o político sair do carro e o acompanham com o olhar enquanto ele se dirige à esplanada, não parecem nem surpreendidas nem chocadas com o lugar do estacionamento. Aqueles lugares costumam estar ocupados por carros cujos donos preferem poupar os 200 escudos do parque, ainda que as cilindradas levem a crer que o desembolso fosse suportável.
Afinal é domingo, está um lindo dia, e estacionar displicentemente em cima do passeio tem algo de desportivo — ainda que o carro não seja um todo-o terreno especialmente desenhado para galgar passeios mas sim um Volvo de proporções governamentais.
Sejamos justos e sistemáticos. É possível que o membro do Governo tenha estacionado em cima do passeio por várias razões:
a) o estacionamento é pago e a infracção de borla
b) um membro do Governo tem de mostrar que o poder é imune às críticas
c) pensava que o estacionamento em cima do passeio tinha passado a ser obrigatório desde a última revisão constitucional
d) nunca lhe disseram que isso dificulta a vida dos peões porque há vários anos que não fala com nenhum
e) tem a certeza de que nenhum agente da autoridade está a trabalhar neste dia glorioso e, se estiver, sabe que ele/ela nunca terá a irrazoabilidade de o multar
f) o ar domingueiro é apenas um disfarce. O membro do Governo está na realidade envolvido numa operação vital para a Defesa Nacional e é fundamental estacionar num local que lhe permita uma fuga rápida
g) as leis que regulam o estacionamento, os limites de velocidade ou o pagamento de impostos são apenas armadilhas para capturar os indivíduos sem iniciativa e Portugal precisa de iniciativa para vencer os desafios do futuro
h) o Secretário de Estado está-se borrifando para as normas de estacionamento, os peões, a lei, o bem-estar das pessoas que não usam um Volvo de proporções governamentais e para este teste de escolha múltipla.
Pode escolher mais de uma resposta.
terça-feira, abril 03, 2001
O eterno ("handicap") feminino
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 3 de Abril de 2001
Crónica x/2001
As propostas de quotas mínimas para cada um dos sexos (leia-se para as mulheres) nas listas eleitorais e nos órgãos políticos vão ser votadas esta semana no Parlamento.
O facto das quotas para as mulheres constituírem uma medida de discriminação (positiva, mas discriminação), tem sido suficiente para que algumas vozes tenham criticado a medida por uma questão de princípio. Para estes críticos, a democracia deve ver todos os cidadãos como seres iguais em direitos e deveres, não permitindo e muito menos proporcionando tratamentos de favor seja a que grupos for.
De facto, porém, as situações de favorecimento de certos grupos sociais considerados à partida menos favorecidos sempre existiram. São medidas de discriminação positiva o estacionamento reservado aos deficientes motores, a prioridade nas bichas para as mulheres grávidas, o acesso à habitação proporcionado aos moradores de bairros degradados ou os princípios que facilitam o acesso das regiões mais pobres a certos financiamentos comunitários.
Nenhum destes princípios parece criticável porque se considera que eles pretendem corrigir uma injusta desigualdade existente à partida e proporcionar igualdade de oportunidades a indivíduos que, sem algum favorecimento, nunca ficariam nas mesmas circunstâncias que os restantes.
É evidente que se pode argumentar que a discriminação positiva atribui um estatuto de menoridade aos indivíduos cujo espaço pretende assegurar. Mas este é um risco que, na maior parte dos casos, compensa largamente os riscos da inacção: o crescimento da dualidade, numa bola de neve de discriminação social.
As medidas de discriminação positiva são aceitáveis quando se trata de corrigir um desequilíbrio provisório e apenas como medidas pontuais. Sem isso, acabarão inevitavelmente por ser vistas como injustas e por criar dois tipos de cidadãos, vários níveis de direitos. Um indivíduo nascido num bairro de lata não deve contar ao longo da vida com apoios especiais por esse facto (no acesso à escola, à habitação, ao emprego, ao crédito, à reforma) mas é razoável e desejável que, num dado momento, ele beneficie de um empurrão para lhe permitir ultrapassar esse "handicap" de partida.
É por isso que a questão das quotas parece longe de resolver o problema da falta de poder das mulheres. Se se oferecerem às mulheres lugares cativos no Parlamento apenas por serem mulheres, estaremos a dizer que o facto de ser mulher constituiu um “handicap”. E como é pouco provável que as mulheres deixem de o ser (ou seja, como o "handicap" é inultrapassável), um benefício deste tipo arrisca-se a ter de se eternizar sem jamais resolver a questão de fundo.
A única acção razoável consiste em identificar as razões que fazem com que as mulheres não possuam a proeminência social e política que pensamos que seria justa e atacar as raízes do mal. As propostas existem, só que nunca foram postas em prática.
Texto publicado no Público de 3 de Abril de 2001
Crónica x/2001
As propostas de quotas mínimas para cada um dos sexos (leia-se para as mulheres) nas listas eleitorais e nos órgãos políticos vão ser votadas esta semana no Parlamento.
O facto das quotas para as mulheres constituírem uma medida de discriminação (positiva, mas discriminação), tem sido suficiente para que algumas vozes tenham criticado a medida por uma questão de princípio. Para estes críticos, a democracia deve ver todos os cidadãos como seres iguais em direitos e deveres, não permitindo e muito menos proporcionando tratamentos de favor seja a que grupos for.
De facto, porém, as situações de favorecimento de certos grupos sociais considerados à partida menos favorecidos sempre existiram. São medidas de discriminação positiva o estacionamento reservado aos deficientes motores, a prioridade nas bichas para as mulheres grávidas, o acesso à habitação proporcionado aos moradores de bairros degradados ou os princípios que facilitam o acesso das regiões mais pobres a certos financiamentos comunitários.
Nenhum destes princípios parece criticável porque se considera que eles pretendem corrigir uma injusta desigualdade existente à partida e proporcionar igualdade de oportunidades a indivíduos que, sem algum favorecimento, nunca ficariam nas mesmas circunstâncias que os restantes.
É evidente que se pode argumentar que a discriminação positiva atribui um estatuto de menoridade aos indivíduos cujo espaço pretende assegurar. Mas este é um risco que, na maior parte dos casos, compensa largamente os riscos da inacção: o crescimento da dualidade, numa bola de neve de discriminação social.
As medidas de discriminação positiva são aceitáveis quando se trata de corrigir um desequilíbrio provisório e apenas como medidas pontuais. Sem isso, acabarão inevitavelmente por ser vistas como injustas e por criar dois tipos de cidadãos, vários níveis de direitos. Um indivíduo nascido num bairro de lata não deve contar ao longo da vida com apoios especiais por esse facto (no acesso à escola, à habitação, ao emprego, ao crédito, à reforma) mas é razoável e desejável que, num dado momento, ele beneficie de um empurrão para lhe permitir ultrapassar esse "handicap" de partida.
É por isso que a questão das quotas parece longe de resolver o problema da falta de poder das mulheres. Se se oferecerem às mulheres lugares cativos no Parlamento apenas por serem mulheres, estaremos a dizer que o facto de ser mulher constituiu um “handicap”. E como é pouco provável que as mulheres deixem de o ser (ou seja, como o "handicap" é inultrapassável), um benefício deste tipo arrisca-se a ter de se eternizar sem jamais resolver a questão de fundo.
A única acção razoável consiste em identificar as razões que fazem com que as mulheres não possuam a proeminência social e política que pensamos que seria justa e atacar as raízes do mal. As propostas existem, só que nunca foram postas em prática.
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