terça-feira, março 27, 2001
terça-feira, março 20, 2001
Os tablóides ao serviço do povo?
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 20 de Março de 2001
Crónica x/2001
Num provocador e interessante texto publicado ontem neste jornal ("As lágrimas politicamente incorrectas"), o crítico Eduardo Cintra Torres insurge-se contra aqueles que criticaram o estilo "tablóide" da cobertura televisiva feita à tragédia de Castelo de Paiva.
Na sua opinião, a censura feita a essa cobertura deve-se ao facto de uma certa élite intelectual, habituada a instituir-se como intermediária dos desejos colectivos, considerar por esse facto como "politicamente incorrectas" as "lágrimas do povo". ECT dá mesmo a entender que essas críticas proviriam de uma cumplicidade com o poder, já que "a dor dos que perderam os seus familiares era em si mesma uma insuportável acusação" e as lágrimas vertidas não seriam mais do que a expressão de uma justa revolta.
Tendo escrito nesta mesma coluna na semana passada, em tom crítico, sobre o tema da cobertura televisiva de Castelo de Paiva, não posso deixar de aceitar a provocação de ECT — ainda que não me reveja nem em todas as críticas feitas à televisão nem, provavelmente, em todas as suas intenções.
Antes de mais, é bom lembrar que a linha do bom senso e do bom gosto impõe certas limitações de grau que são sempre difíceis de discutir e que a eventual utilização de um cronómetro também não ajudaria a clarificar. Se há imagens de desespero que pode ser imperativo mostrar, é evidente que existe um momento onde a insistência se torna excessiva. Essa linha, que define a diferença entre a informação com emoção e o vampirismo, é impossível de definir em teoria. E nas imagens de Castelo de Paiva houve muitos momentos, demasiados, onde o vampirismo, a exploração da emoção para fins circenses ou comerciais foi visível. E foi triste de ver. Porque nos sentimos na pele do outro e sabemos que quereríamos e mereceríamos o pudor se lá estivéssemos de facto.
É evidente que é dever do jornalista mostrar o desespero, testemunhar o luto e dar voz à revolta, mas não é isso que constitui um problema. O problema é quando o que se pede ao entrevistado está para lá da possibilidade do discurso. Se há perguntas que dão a voz, há perguntas que a calam e que mais não são do que uma forma de abuso de poder. Uma forma de negação do discurso do outro, de imposição de outro discurso, de exploração.
A crítica feita nesta coluna na semana passada é tanto uma crítica ética como técnica. Há relações, contextos e momentos que admitem que se pergunte "O que sentiu?" e que permitem uma resposta real. Há outros momentos onde ela é uma violação e uma mordaça. Para mais quando sabemos o que significa ser entrevistado na televisão, com um projector na cara, um jornalista que só ouve o som que sai do seu auricular e que pede a nossa cumplicidade para não estragarmos o espectáculo.
Há limites à liberdade de informar. Um desses limites é o âmbito da vida privada. As lágrimas por um filho ou por um pai não são as lágrimas por Amália ou a emoção do Presidente da República. E o jornalista deve ter o pudor de as respeitar.
Texto publicado no Público de 20 de Março de 2001
Crónica x/2001
Num provocador e interessante texto publicado ontem neste jornal ("As lágrimas politicamente incorrectas"), o crítico Eduardo Cintra Torres insurge-se contra aqueles que criticaram o estilo "tablóide" da cobertura televisiva feita à tragédia de Castelo de Paiva.
Na sua opinião, a censura feita a essa cobertura deve-se ao facto de uma certa élite intelectual, habituada a instituir-se como intermediária dos desejos colectivos, considerar por esse facto como "politicamente incorrectas" as "lágrimas do povo". ECT dá mesmo a entender que essas críticas proviriam de uma cumplicidade com o poder, já que "a dor dos que perderam os seus familiares era em si mesma uma insuportável acusação" e as lágrimas vertidas não seriam mais do que a expressão de uma justa revolta.
Tendo escrito nesta mesma coluna na semana passada, em tom crítico, sobre o tema da cobertura televisiva de Castelo de Paiva, não posso deixar de aceitar a provocação de ECT — ainda que não me reveja nem em todas as críticas feitas à televisão nem, provavelmente, em todas as suas intenções.
Antes de mais, é bom lembrar que a linha do bom senso e do bom gosto impõe certas limitações de grau que são sempre difíceis de discutir e que a eventual utilização de um cronómetro também não ajudaria a clarificar. Se há imagens de desespero que pode ser imperativo mostrar, é evidente que existe um momento onde a insistência se torna excessiva. Essa linha, que define a diferença entre a informação com emoção e o vampirismo, é impossível de definir em teoria. E nas imagens de Castelo de Paiva houve muitos momentos, demasiados, onde o vampirismo, a exploração da emoção para fins circenses ou comerciais foi visível. E foi triste de ver. Porque nos sentimos na pele do outro e sabemos que quereríamos e mereceríamos o pudor se lá estivéssemos de facto.
É evidente que é dever do jornalista mostrar o desespero, testemunhar o luto e dar voz à revolta, mas não é isso que constitui um problema. O problema é quando o que se pede ao entrevistado está para lá da possibilidade do discurso. Se há perguntas que dão a voz, há perguntas que a calam e que mais não são do que uma forma de abuso de poder. Uma forma de negação do discurso do outro, de imposição de outro discurso, de exploração.
A crítica feita nesta coluna na semana passada é tanto uma crítica ética como técnica. Há relações, contextos e momentos que admitem que se pergunte "O que sentiu?" e que permitem uma resposta real. Há outros momentos onde ela é uma violação e uma mordaça. Para mais quando sabemos o que significa ser entrevistado na televisão, com um projector na cara, um jornalista que só ouve o som que sai do seu auricular e que pede a nossa cumplicidade para não estragarmos o espectáculo.
Há limites à liberdade de informar. Um desses limites é o âmbito da vida privada. As lágrimas por um filho ou por um pai não são as lágrimas por Amália ou a emoção do Presidente da República. E o jornalista deve ter o pudor de as respeitar.
terça-feira, março 13, 2001
terça-feira, março 06, 2001
Imagens de caça
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 6 de Março de 2001
Crónica x/2001
O fotógrafo David Douglas Duncan, conhecido pelos seus retratos de Picasso, acaba de publicar nos Estados Unidos um livro que reúne uma série de instantâneos de um outro monstro sagrado da fotografia, o francês Henri Cartier-Bresson.
A história não teria nada de especial se Cartier-Bresson, actualmente com 92 anos, não tivesse uma enorme aversão a ser fotografado e se o livro não constituísse uma publicação "não autorizada".
Duncan realizou as fotografias quando os dois homens tomavam um café no jardim do Museu Picasso, em Paris. Segundo Duncan, as fotos foram feitas em cinco minutos e Cartier-Bresson não pareceu incomodado pelos disparos. É evidente porém que o francês desconhecia a intenção de Duncan, da mesma forma que se sabe que o americano conhece a aversão de Cartier-Bresson a ver publicada a sua imagem.
O fotógrafo francês, ao ser informado da publicação do livro nos EUA, tentou dissuadir o seu colega, mas sem êxito. Agora, tenta evitar a publicação do livro em França, onde as leis de defesa da vida privada poderão garantir-lhe um êxito relativo — já que os franceses poderão comprar calmamente o livro através da Internet.
A pretensão de Cartier-Bresson é algo ingénua num mundo onde a vampirização da imagem alheia (íntima ou chocante se possível) se transformou numa forma de negócio e onde a "não autorização" constitui um cobiçado suplemento de picante.
Em Portugal, graças a programas como "Big Brother" e "Acorrentados", que exploram e incentivam a exposição da intimidade, o direito "à imagem" e "à reserva da intimidade da vida privada", que a Constituição garante e o Código Penal regula, passaram a ser vistos quase como bizarrices sem razão, valores menores perante a diversão que os programas pretendem promover. Há algo porém que se deve dizer em defesa destes programas: só lá é exibido quem se exibe.
O mesmo já não acontece com "reality shows" como "112", da TVI, ou "Histórias da Noite", da RTP1, que entram pela casa dentro de cidadãos e exibem a sua intimidade de uma forma tanto mais indecorosa quanto é apresentada como "informação". Na semana passada, num destes programas, uma ambulância do INEM acudia a uma mulher com insuficiência respiratória, em sua casa, perante o olhar cru das câmaras e a luz dos projectores, a sua luta para respirar transformada no nosso espectáculo. Depois, enquanto a mulher era levada para o hospital, uma médica do INEM contava-nos sem o mínimo rebuço a história clínica da doente. É irrelevante se a mulher autorizou a divulgação dessa informação, já que é evidente que, nas circunstâncias, não seria possível dar um consentimento livre e informado.
Numa sociedade livre, a intimidade pode ser exposta por quem o desejar, mas esse direito não pode fazer esquecer o da defesa da vida privada de todos os outros. E os jornalistas, em particular, não se podem esquecer de que a vida privada não é um terreno de caça.
Texto publicado no Público de 6 de Março de 2001
Crónica x/2001
O fotógrafo David Douglas Duncan, conhecido pelos seus retratos de Picasso, acaba de publicar nos Estados Unidos um livro que reúne uma série de instantâneos de um outro monstro sagrado da fotografia, o francês Henri Cartier-Bresson.
A história não teria nada de especial se Cartier-Bresson, actualmente com 92 anos, não tivesse uma enorme aversão a ser fotografado e se o livro não constituísse uma publicação "não autorizada".
Duncan realizou as fotografias quando os dois homens tomavam um café no jardim do Museu Picasso, em Paris. Segundo Duncan, as fotos foram feitas em cinco minutos e Cartier-Bresson não pareceu incomodado pelos disparos. É evidente porém que o francês desconhecia a intenção de Duncan, da mesma forma que se sabe que o americano conhece a aversão de Cartier-Bresson a ver publicada a sua imagem.
O fotógrafo francês, ao ser informado da publicação do livro nos EUA, tentou dissuadir o seu colega, mas sem êxito. Agora, tenta evitar a publicação do livro em França, onde as leis de defesa da vida privada poderão garantir-lhe um êxito relativo — já que os franceses poderão comprar calmamente o livro através da Internet.
A pretensão de Cartier-Bresson é algo ingénua num mundo onde a vampirização da imagem alheia (íntima ou chocante se possível) se transformou numa forma de negócio e onde a "não autorização" constitui um cobiçado suplemento de picante.
Em Portugal, graças a programas como "Big Brother" e "Acorrentados", que exploram e incentivam a exposição da intimidade, o direito "à imagem" e "à reserva da intimidade da vida privada", que a Constituição garante e o Código Penal regula, passaram a ser vistos quase como bizarrices sem razão, valores menores perante a diversão que os programas pretendem promover. Há algo porém que se deve dizer em defesa destes programas: só lá é exibido quem se exibe.
O mesmo já não acontece com "reality shows" como "112", da TVI, ou "Histórias da Noite", da RTP1, que entram pela casa dentro de cidadãos e exibem a sua intimidade de uma forma tanto mais indecorosa quanto é apresentada como "informação". Na semana passada, num destes programas, uma ambulância do INEM acudia a uma mulher com insuficiência respiratória, em sua casa, perante o olhar cru das câmaras e a luz dos projectores, a sua luta para respirar transformada no nosso espectáculo. Depois, enquanto a mulher era levada para o hospital, uma médica do INEM contava-nos sem o mínimo rebuço a história clínica da doente. É irrelevante se a mulher autorizou a divulgação dessa informação, já que é evidente que, nas circunstâncias, não seria possível dar um consentimento livre e informado.
Numa sociedade livre, a intimidade pode ser exposta por quem o desejar, mas esse direito não pode fazer esquecer o da defesa da vida privada de todos os outros. E os jornalistas, em particular, não se podem esquecer de que a vida privada não é um terreno de caça.
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