São quase oito da manhã e a praça está quase deserta. Deserta, silenciosa e ainda fresca da noite.
Uma praça deserta e silenciosa na frescura da manhã. Parece uma cena de filme. Não porque estejam a acontecer coisas que parecem saídas de um filme mas porque a cena convida a um travelling lento, um deslizar calmo e perscrutador, que nos desafia a ver para além da superfície das coisas, as coisas escondidas à frente dos nossos olhos, coisas que nos dizem coisas sobre nós e o mundo.
No pequeno jardim central um homem rega os canteiros. Não parece um empregado da câmara. Está vestido normalmente, os seus gestos são lentos e tranquilos e a mangueira não tem o ar robusto dos equipamentos camarários. É uma mangueira de jardim e do seu extremo sai um chuveiro aberto e plácido, que cai num arco suave sobre as flores. Parece ser um vizinho apiedado das plantas que vão ter de sobreviver a mais um dia de canícula. O homem rega como quem pensa, anda de um lado para o outro, despeja o arco de chuva sobre um canteiro florido, depois sobre outro e outro e a chuva brilhante cai tão pensativamente como ele, em agulhas de luz, sob o olhar orgulhoso do busto de bronze do Doutor António Padinha, que dá o nome à praça.
O sino de igreja bate as oito horas. São exactamente 07h57. Daqui a um minuto outro sino baterá as mesmas oito. Cinco minutos depois tocará um terceiro sino e ainda serão as mesmas oito horas. As horas passam devagar em Tavira em Agosto.
Na esplanada do café Távila a empregada enrola as copas dos enormes guarda-sóis que ficaram abertos durante toda a noite.
O único ruído que se ouve é o guincho da manivela com que o dono da Pastelaria Alagoa, do outro lado da praça, desenrola o toldo. Uma mulher passa um pano nas mesas.
Um carro pára na praça e de lá de dentro saem dois rapazes a cair de bêbados. Riem-se, provocam-se, empurram-se, cambaleiam. Estão a acabar a noite. Do carro sai uma rapariga magra. Os dois rapazes falam com a rapariga que ficou no carro. A rapariga magra tenta despedir-se dos rapazes que não a ouvem. As atenções dos dois estão concentradas na rapariga que ficou no carro, que tem a cabeça fora da janela. A rapariga que saiu faz nova tentativa para chamar a atenção dos dois rapazes, sacode-os, grita-lhes, mas eles continuam a falar à rapariga que está à janela e a dizer-lhe graçolas de que ela ri. A rapariga magra encolhe os ombros e mete pela rua que leva à ponte.
Nas esplanadas da praça há só três mesas ocupadas. Um casal de turistas asiáticos, que toma um pequeno-almoço de mesa cheia e faca e garfo, uma família de turistas provavelmente franceses que toma um pequeno-almoço colorido por grandes copos de sumo de laranja com rodelas de laranja penduradas na borda e uma mulher que toma um café com a trela de um cão enfiada na perna da mesa.
A empregada do Távila senta-se na esplanada depois de enrolar os guarda-sóis. Não tem a chave e espera o patrão, que não vai vir.
Um camião branco de caixa fechada pára no meio da praça. Entrega de pão.
Uma família de ciclistas, equipada como se fosse para a Volta a Portugal, pára de pé no chão e negoceia o percurso a fazer.
Um casal idoso senta-se a meu lado e pega na ementa para escolher o pequeno-almoço. Não são portugueses. Os portugueses não escolhem o pequeno-almoço pela ementa.
Na esplanada do lado senta-se uma mulher. Olha em volta de pescoço esticado como se procurasse alguém. Não é nova mas é lindíssima. Olha em volta mas só quer ser vista. Olho-a com a segurança de que o meu olhar não lhe desagrada.
Uma mulher entra na praça com uma trela pela mão, saída de uma das ruas estreitas, também a olhar em volta e ar ligeiramente perdido, e chama “Cooper!” ou “Cuca!”. Um cão vem buscá-la, num passo alegre, e a dona abana a cauda com um sorriso. Já não está sozinha.
De vez em quando um carro passa, devagar, sem fazer demasiado ruído, em sinal de respeito pelo silêncio da praça e pela paz da hora matinal.
O único sinal do que virá depois é uma mota ruidosa, que não repara na hora, nem na calma, nem na paz e passa a acelerar como se quisesse rebentar com o dia inteiro. Mas nem isso consegue estragar a praça e atrás de si fica o mesmo silêncio de antes.
Uma mulher puxa um miúdo de uns oito anos, carregado com uma mochila de escola a abarrotar. Não é dia de aulas. Deve ir passar uns dias de férias a casa de alguém e a roupa deve ir no lugar dos livros. A mãe puxa-o e diz-lhe alguma coisa, impaciente. Estão atrasados, mas não vão nem em direcção à estação de comboios nem de autocarros.
A praça está tão calma que se vê tudo. Tão silenciosa que se ouve tudo.
O meu olhar continua a deslizar pela praça e roda em torno desta ou daquela cena para a mostrar de todos os ângulos possíveis, como no início de um filme.
Um homem de gravata deambula de mãos atrás das costas, num passo lento bem marcado, para deixar claro que é uma pessoa séria, preocupada com coisas sérias e pára de supetão em frente do busto de bronze, de pernas abertas, e olha-o pensativo.
Daqui a umas horas a praça vai encher-se de carros que passam e de gente que grita. As esplanadas vão encher-se de clientes e tudo vai deixar de fazer sentido. A praça vai tornar-se uma cacofonia, com o bulício de um formigueiro, gente a andar em todos os sentidos. O ruído de fundo vai tornar indistinguíveis os sons isolados que agora têm um significado preciso.
No café a empregada já sabe que o patrão não virá e que o café afinal não vai abrir. “Aconteceu uma coisa muito má!” O filho do dono do café deu uma queda na noite anterior. Caiu da açoteia da casa da avó. Uma criança de quatro anos. Fractura de crânio. Morte imediata. Uma altura de nada. Seis metros. Podia não ter sido nada. Pouca sorte. Açoteia. Tragédia algarvia.
Uma turista gorda e loura, máquina fotográfica em riste, levanta-se de uma mesa disposta a caçar a primeira imagem que lhe salte à vista. Vê o busto do Doutor António Padinha, aproxima-se, assesta a máquina, dispara. Olha a máquina para verificar se a foto ficou mesmo lá dentro. Ficou. O busto do Doutor António Padinha incha de orgulho. Acontece muito. Raros são os turistas que resistem a um busto de bronze. A turista avança para a presa seguinte. A fachada da igreja.
Hoje à tarde os vizinhos e os conhecidos vão vir e parar na esplanada, que vai manter os guarda-sóis fechados apesar do sol abrasador, os clientes vão interrogar-se da razão das portas fechadas e serão informados pelos que sabem a resposta. Todos olharão por entre os taipais que cobrem as janelas e para as portas cobertas por cartazes de gelados e uma ementa antiga que propõe cocktails com nomes alegres e agora sem sentido. Vão tentar procurar explicações para uma coisa sem sentido, trocarão olhares de espanto e incredulidade apesar de já saberem tudo e de não haver nada a explicar.