terça-feira, fevereiro 19, 2013

O respeitinho é uma coisa muito bonita


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Fevereiro de 2013 (não foi publicada crónica no dia 12 de Fevereiro) Crónica 6/2013
É mais fácil um jornal escrever “tomar no cu” do que criticar o memorando da troika

1. Quem acha que a política financeira e económica do Governo português reúne o apoio maioritário dos especialistas na área ou que as medidas propostas no memorando da troika fazem sentido e nos estão a levar no bom caminho teria feito bem em passar no sábado pela Fundação Calouste Gulbenkian, para assistir à conferência Economia Portuguesa - Propostas com Futuro. A reunião, organizada pela rede Economia com Futuro, um conjunto de cerca de duas centenas de investigadores e professores universitários de Economia e outras ciências sociais, contou com um auditório cheio de manhã à noite. Não só o pensamento único que ouvimos repetido em todos os telejornais possui alternativas, como estas são abraçadas por um número crescente de especialistas. No entanto, os media continuam a mostrar-nos Passos Coelho a defender o memorando da troika e Seguro a dizer que quer o memorando da troika mas com uma salada mista em vez da batata frita. Quando apenas se representarem a eles próprios, os media irão continuar a citá-los e a escamotear o resto do país, do mundo e da realidade?
2. O poeta espanhol Francisco de Quevedo foi, durante grande parte da vida, um homem da corte (de Filipe III e Filipe IV) e, sendo um homem de grande cultura, de alucinada verve e aguçada língua, amante de aventuras e comportamento truculento, é o protagonista de inúmeras histórias, inventadas quase todas, verdadeiras algumas, que circulam na cultura oral espanhola. Cresci a ouvir muitas delas e uma reza assim: um dia, em conversa com o rei e um grupo de fidalgos, Quevedo declarou que um pedido de desculpas podia ser mais humilhante para quem o recebia que um insulto. O rei considerou o comentário um completo disparate e disse-o ao poeta, mas este manteve a sua posição, para irritação do rei que (na minha versão), acabou por lhe dizer: “Se não provas o que dizes antes que o sol se ponha, mandarei cortar-te a cabeça!” E saiu da sala. Mas, ao passar por Quevedo, este não se lembrou de outra coisa senão de lançar a mão às nádegas reais e apalpar-lhe o rabo, para estupor da assistência. O rei, apopléctico, voltou-se para ver quem era o atrevido e, quando deu de caras com Quevedo, balbuciou, louco de raiva: “Quevedo! Como te atreves?”, ao que o poeta respondeu sem hesitar: “Perdoe-me, Majestade! Pensei que era a rainha!”. A história acaba com o rei a rebentar numa gargalhada, Quevedo mantendo a sua cabeça e, provavelmente, com os dois a irem juntos aos copos, já que se diz que Filipe IV era amigo da pândega.

Lembrei-me desta história, exemplo de iconoclastia q.b. sem nunca antagonizar o soberano, ao ler num blog o post do ex-secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, onde este se revolta contra a obrigação de os compradores exigirem factura de todas as suas compras, por pequenas que sejam, e a concomitante obrigação de exibirem esses documentos aos fiscais das finanças que estejam emboscados à saída dos cafés e que saltem às canelas dos contribuintes para lhos exigir.

O post “tornou-se viral” devido à sua brejeirice, por FJV dizer que convidará o fiscal que lhe exija essas facturas a “ir tomar no cu”. De facto, não se trata de uma expressão que seja comum um ex-governante pôr por escrito, muito menos no âmbito de uma crítica a uma medida do Governo - ainda que seja pelo menos igualmente raro neste contexto o uso do verbo “tomar” em vez do vernáculo “levar”, mas deixemos isso por agora - e não faltou quem elogiasse o desplante do ex-governante, o seu regresso à fileira dos livre-escrevedores e outras coisas igualmente disparatadas.

O que retive do post foi o facto de, apesar do seu autor saber e dizer claramente que o “pobre funcionário não tem culpa nenhuma” e que a responsabilidade cabe exclusivamente à Autoridade Tributária e Aduaneira, esta não merecer da sua parte a mínima agressão verbal. Claro que seria difícil dizer a algo tão sério, circunspecto e impessoal como a Autoridade Tributária e Aduaneira para ir tomar no cu”, tanto mais que são eles que fiscalizam os nossos impostos, mas havia uma outra possibilidade, que Francisco José Viegas não ignorava, como se prova pelo facto de lhe ter dirigido o seu post: o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, que manda na Autoridade Tributária e Aduaneira, que manda no pobre funcionário que não tem culpa nenhuma a quem Francisco José Viegas manda tomar no cu”. E por cima de Paulo Núncio há ainda o inefável ministro de Estado e ministro das Finanças Vítor Gaspar, que manda no Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, que manda na Autoridade Tributária e Aduaneira, que manda no pobre funcionário que não tem culpa nenhuma a quem Francisco José Viegas manda tomar no cu”. Seria pois de toda a lógica que Francisco José Viegas, sabendo o que sabe e pensando o que pensa, mandasse tomar no cu” não o pobre funcionário que não tem culpa nenhuma mas o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio ou o ministro de Estado e ministro das Finanças Vítor Gaspar que têm toda a culpa que o pobre funcionário não tem. Mas não.
Francisco José Viegas sabe que o respeitinho é uma coisa muito bonita. E mostra que o respeitinho brejeiro pode ser ainda mais respeitoso pois, se declara que a brejeirice existe (Olhem para mim a ser tão atrevido!), garante que ela nunca será posta ao serviço da iconoclastia (Caro Paulo Núncio, posso asseverar-lhe que...). Uma mão lava a outra e ambas lavam o cu. (jvmalheiros@gmail.com)

1 comentário:

chinfrim disse...

Genial hahahah! Gostei muito e realmente a sua lógica faz todo o sentido.