segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O céu nosso de cada dia - Versão 1.0

Texto integral


Texto escrito para inclusão no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade, que seria depois reduzido, por imperativos de espaço.
Museu da Electricidade, Lisboa, de 29 de Março a 17 de Junho de 2012
http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/cartas-celestes-cruzamentos-largos-bifurcacao/58


A primeira pergunta é clássica. Tão clássica que é uma das perguntas que mais vezes ouvimos no cinema: Onde estou? Que lugar é este?
Ou, sendo mais preciso, porque o que importa aqui não é o lugar do corpo mas o lugar do olhar: De onde olho? Para onde olho? O que vejo?

A segunda pergunta é filosófica. Porque há aquilo e não o nada? Porque estou aqui e não ali? Quem está ali? Quem poderá estar ali? Quem poderá olhar-me? Que me diz o olhar de quem me olha? O que me devolve o meu olhar? Que relação existe entre mim e o que vejo?
A terceira pergunta é científica. O que são estas luzes? Por que têm cores diferentes? Por que têm tamanhos diferentes? Movem-se ou estão fixas? Que padrões distingo nestes pontos? A que distância estão? Como posso aproximar-me?

Não há nenhuma novidade nestas perguntas. Há séculos que as sentimos e que as fazemos quando olhamos o céu nocturno estrelado. Aquele céu de que nos falam nos livros de escola e que já não existe nas cidades. Há séculos que esse céu alimenta poemas, geometrias, terrores, devoções, juras, sonhos e insónias.

Só que depressa reparamos que este céu é estranho, que estas galáxias têm algo de orgânico, organizado, inteligente, geométrico. Há desenho aqui, há régua e esquadro neste céu. Que céu é este? Que lugar irreconhecível é este? Onde está o céu nosso de cada dia?


É paradoxal que, para os antigos, a organização em constelações fosse a forma mais repousante de organizar o céu - fornecendo à confusão do firmamento a relativa racionalidade do Olimpo e uma narrativa com sentido -, e que, para nós, a inteligência que intuímos nestas cartas celestes seja tão perturbadora. A ausência de caos destas galáxias é arrepiante. São civilizações extraterrestres que nos espreitam? O que são estas constelações estranhas que se espalham neste céu como signos na faixa do Zodíaco? Há qualquer coisa de mitológico no seu desenho, mais do que mítico. Quem fez estas galáxias?

As legendas ajudam-nos a perceber. Aquele mundo é afinal o nosso. É ali que nós estamos. Estamos ali, aqui, a olhar para cima, para este espelho que nos põe no céu. Estamos ali, naquelas constelações. Somos nós, aquelas constelações. É ali que vivemos, que viajamos, que sonhamos ir.


Estamos em baixo olhando para cima e em cima olhando para baixo e pensamos ver a mesma coisa. "O que está em cima é igual ao que está em baixo. O que está em baixo é igual ao que está em cima”. É impossível não evocar o princípio hermético.
Não há nada tão longínquo e tão desconhecido como as galáxias e nada tão próximo e tão familiar como a cidade onde vivemos. Aqui, os dois mundos colidem e coincidem, atravessam-se, a familiaridade torna-se distante, a distância familiar. A desolação sideral e fria do espaço funde-se com o espaço urbano frenético e quente. E quando conseguimos imaginar de novo o caos microscópico que habita estas galáxias, as pessoas, carros, néons, crimes, desencontros, conseguimos respirar de novo. Afinal não há nenhuma inteligência que tenha organizado o universo. Estas imagens que projectámos no céu fomos nós que as fizemos. São afinal humanas. As linhas rectas continuam a ser apenas humanas. Nenhum deus desenha como nós.

Quando vemos enfim as cidades, quando reconhecemos o alinhamento das avenidas, a primeira correspondência, quase imediata, é com os mapas do urbanista Richard Florida. Mas aqui não vemos as cidades iluminadas pela realidade virtual das estatísticas. Aqui não há rankings de cidades ou regiões, não há concorrência entre constelações, nenhuma tenta atrair mais talentos que a sua vizinha, não se trata de criatividade ou de inovação e, se existe boémia nestas cidades, está para além da resolução do nosso telescópio. Cada constelação vale por si, é um mundo por si, indiferente aos outros.

E estas luzes que vemos não são as luzes da cidade, não são a economia, nem a criação, nem a agitação, nem os mercados, nem a arte. Nem são a cidade. São sinais da cidade. Pontos criados pelo cruzamento de linhas. Reflexos num espelho. Marcas feitas a lápis num papel. São um levantamento das cidades. Um levantamento possível. Um levantamento que as coloca no céu. Um levantamento à maneira de Hubble.

Há uma tristeza fria nestas cidades. A distância deserta que nos separa destas cidades, onde vivemos, está preenchida por um éter gelado, talvez impossível de percorrer. Adivinha-se uma démarche arqueológica nestas imagens. Estas imagens especulares mostram-nos as nossas cidades como elas poderiam viajar no espaço - as imagens das nossas cidades viajam de facto no espaço, à velocidade da luz, como todas as imagens -, como elas poderiam ser vistas quando já não existirem, se houvesse alguém para as olhar. São Cidades Celestiais, como a Cidade Proibida de Pequim ou Damasco sonharam ser, como nos dizem que foram as cidades da Idade do Ouro, aquele tempo que nunca existiu onde todos fomos felizes. Há uma história alternativa nas cartas destas cidades, que nunca saberemos como poderia ter sido.

Estas imagens são um futuro possível das cidades. Um dia, um astrónomo do futuro numa civilização distante poderá ver projectada no espelho do seu telescópio a imagem velha das nossas cidades, já mortas, sem luz, e verá uma imagem invertida que se assemelhará a estas. E talvez veja nas encruzilhadas, nas praças, sinais de algum encontro. Quando ele vir essa imagem, as cidades, essas, terão desaparecido há muito.

Estas pinturas são prova evidente de prática ilegal da astronomia, como o foram as observações e os desenhos do alemão Wilhelm Tempel (1821-1889), litógrafo transformado em descobridor de cometas que toda a vida teve de justificar perante uma comunidade científica corporativa e classista a sua falta de formação académica. As descobertas de Tempel costumavam enfrentar o desdém do establishment até serem confirmadas por um astrónomo “oficial”. Max Ernst dedicou-lhe um livro, “Maximiliana ou o exercício ilegal da astronomia”, considerado um dos mais belos livros do século XX e uma obra de referência para a escrita assémica, onde ele próprio comete graficamente o mesmo crime, que invade aliás toda a sua obra, recheada de astros e de sóis.

É também de escrita assémica que se trata aqui, nestas Cartas Celestes, uma acepção facilitada pela polissemia da palavra “carta”. Alguém diz aqui alguma coisa. Não sabemos o quê, nem a quem, mas alguma coisa é dita. Estas cidades falam, na sua caligrafia regular e fria, como um aeroporto fala a um avião, uma pauta a uma pena, um espectro a um astrofísico. Algo se escreve e algo se inscreve, necessariamente, nesta matéria negra de fundo.

É curioso como estas cartas nos devolvem um céu que a luz das cidades nos roubou e como delas essa luz está ausente. Os pontos são aqui apenas encruzilhadas e não lâmpadas. As estrelas destas cartas assinalam cruzamentos, encontros, coincidências, mas não ofuscamentos. Daí a sua falta de concentração, a fraca centralidade, o seu carácter distribuído. Daí o tratamento democrático do espaço. Não há nenhum atractor estranho que arrebate tudo à sua volta. Podem ser imponentes, misteriosas ou sedutoras, mas nenhuma destas cidades celestes é imperial. E todas são postas em diálogo com os seus cemitérios, metáfora por excelência do hostil e mudo espaço sideral, como que para lhes segredar ao ouvido que são mortais.

José Vítor Malheiros
Fevereiro 2012

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