por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Junho de 2010
Crónica 24/2010
Crónica 24/2010
Há uma espantosa minimização da dimensão colectiva nas vidas e nas preocupações reveladas neste estudo
O estudo Necessidades em Portugal: Tradição e Tendências emergentes (1), que foi anteontem lançado em Lisboa, contém uma imensa riqueza de dados, de histórias, de conclusões e de recomendações que merecem uma leitura e análise cuidadas e que não se esgotam num simples comentário. O estudo pode ler-se como uma deprimente lista de carências. É evidente que se avançou muito na última geração (se comparássemos com o Neolítico, teríamos leituras ainda mais risonhas), mas há ainda um mar de necessidades por satisfazer. Em relação ao que queremos, ao que conhecemos, ao que é justo, ao que é possível. E esse objectivo não parece hoje mais próximo que há vinte anos. Pelo contrário.
Para além dos consabidos 20 por cento de portugueses pobres aparecem aqui os 30 por cento que vivem acima destes (“à tona da água” ou, como diz uma das pessoas entrevistadas, com uma arrepiante e tranquila lucidez, “em stand by”) mas que são, também eles, pobres. Pobres sem perspectiva de deixar de o serem, ainda que não satisfaçam os critérios quantitativos da definição, nem respeitem o estereótipo social. Praticamente todos trabalham, entre eles há muitos licenciados, mas a sua vida é vivida com a corda na garganta, na angústia das contas para pagar e na desesperança de poder oferecer melhor aos filhos do que lhes foi oferecido a eles.
“Corda na garganta”, “à tona da água”, “respirar”… há uma sensação de asfixia ao longo deste livro, de opressão física, uma asma, apesar das janelas abertas pelas recomendações, das experiências que se apontam, das esperanças que se desenham, do muito que se ganhou.
E, paralelamente a este panorama de carência, inscreve- se uma dramática quase ausência de dimensão social, de desejo colectivo, da ideia de bem comum. A palavra fado não aparece uma única vez neste estudo mas podia aparecer. A vida é algo que se abate sobre os portugueses, que lhe resistem como podem, na sua rede de apoio familiar, nos amigos próximos, contando tostões, calando desejos, investindo em qualificações que permitem encontrar um emprego precário mas que não permitem fugir à pobreza. À tona da água. Mas sem fazer ondas. Os investigadores identificam esta “incapacidade de pensar colectivamente o futuro”, a “desconfiança nos outros e nas instituições”, a “diminuta participação nas organizações de índole mais societária”, o facto de um terço se sentir “às vezes ou frequentemente” “como se não fizesse parte da sociedade”.
O estudo mostra-nos pessoas mas não se vê aqui uma sociedade, uma preocupação de construção do bem comum do qual se vai também beneficiar. Vive-se aqui e agora. Na família. Um dia de cada vez. O social é marginal.
Não se vêem exigências, reivindicações, protestos, greves. A precariedade é um facto da vida. O combate à desigualdade não está em nenhum caderno reivindicativo.
Há preocupação e receio, mas não indignação, nem revolta. E há uma desconcertante quantidade de gente que se declara “satisfeita” porque “podia ser pior”.
Este estado de espírito não nasceu por acaso: ele foi meticulosamente esculpido por uma ideologia que aproveitou a descolectivização da economia pós-industrial para vender a competição individual e o fim da solidariedade como as receitas do progresso. A pergunta é: quando não há coesão social ainda teremos uma sociedade? (jvmalheiros@gmail.com)
1) O estudo foi promovido pela Tese – Associação para o Desenvolvimento, coordenado pelo Centro de Estudos Territoriais do ISCTE, em parceria com a Fundação Gulbenkian e o Instituto da Segurança Social, e foi editado pela Tinta da China sob o título À Tona de Água (2 vol.)