por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Outubro de 2006
Crónica 38/2006
Os mais compassivos passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro.
Quando chove, a rua é um lago. Não é um lago, é um rio. O lago é ao fundo da rua, no cruzamento. É preciso dar uma volta pela rua de cima, ou entrar na água resolutamente quase até ao joelho. Quem tem botas altas de borracha às vezes consegue passar, se não fizer ondas, devagar, e se conseguir não sair de cima do passeio submerso. Mas se vier a passar um autocarro nesse momento...
A rua de cima não está inundada, mas como é inclinada a água escorre rápida pelo passeio num manto que chega às meias e aos pés. Ao menos a água do passeio parece limpa. Na valeta corre um rio acastanhado. Apesar da água e dos carros há quem prefira ir pelo meio da faixa de rodagem, onde a água já empurra pedras, folhas e cascalho. É menos escorregadia que o passeio de pedras polidas.
A paragem de autocarro tem um telhado pequeno que serve para fazer sombra nos dias de sol, mas nos dias de chuva é inútil. É difícil dizer se se está mais protegido da chuva debaixo do abrigo ou cá fora. Lá dentro há os pingos grossos que escorrem dos guarda-chuvas, os casacos molhados dos outros, a chuva que entra numa cortina por entre os vidros e, quando nos distraímos, o algeroz do abrigo, que despeja água como um garrafão. Cá fora há umas árvores que deixam passar a chuva mas pelo menos não têm goteiras. O problema são os carros que passam. Há os que passam depressa, atirando uma toalha de água suja e pesada que chega à altura da cintura, e os mais compassivos, que passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro. Não há alternativa. Não se pode pedir aos carros que andem a passo de enterro só para não molhar os peões. Há quem desça o guarda-chuva para os pés quando passa um carro, mas acontece como à proverbial manta: quando tapa os pés descobre a cabeça.
O mais difícil são as crianças. É difícil ter uma criança ao colo num dia de chuva? E uma ao colo e outra pela mão? Com as mochilas? E um guarda-chuva na mão? Na paragem do autocarro? Com os carros que passam a regar os pés e o ocasional fio de água a entrar pelo pescoço? E ao fim do dia, quando a criança ao colo dorme, a outra se arrasta, e às mochilas se soma o saco das compras? A grande dúvida nestes casos é o que se deve fazer com o guarda-chuva.
Dentro do autocarro o ar está pesado de humidade e os assentos são escassos. Os guarda-chuvas molhados escorrem para dentro dos sapatos, os sacos molhados têm de ficar em cima dos joelhos, as crianças empilham-se sobre as mochilas e as lancheiras. Um casaco de malha cai no chão enlameado. Tem de ir para lavar, com este tempo. O ar desolado e cansado de todos faz lembrar as fotos de refugiados. Até o ar de resignação de alguns. Aqui, pelo menos, não chove. As crianças desenham nas janelas embaciadas.
Lá fora as sarjetas fazem o contrário do que deviam fazer: lançam água aos borbotões para a rua. Os carros passam pelo autocarro mas já não atiram água para os pés dos que lá estão. Quem está sentado à janela do autocarro pode ver o interior dos carros, lá em baixo. O interior dos carros parece seco e arrumado.
O sonho de todos os que estão no autocarro é um carro. Um carro onde as crianças possam ir no banco de trás, as mochilas amontoadas no banco da frente, os guarda-chuvas molhados no chão, ao lado dos sacos das compras. Um carro onde passem horas no trânsito, ao abrigo da chuva, atrás dos limpa pára-brisas, e onde os únicos momentos difíceis seja a trasfega das crianças da escola para o carro e do carro para casa. É verdade que não dá para sair de casa mais tarde, mas é outro conforto. Assim basta chover para que o dia se transforme num inferno. O cansaço e as crianças e as mochilas ficam mais pesados com a chuva. Vamos lá ver se não entrou água em casa. Só faltava acabar o dia de esfregona em punho. Ontem diziam na televisão que se deve andar de transportes públicos. Devia ser um desses que vai ali num carro.
terça-feira, outubro 31, 2006
terça-feira, outubro 24, 2006
Défice democrático
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Outubro de 2006
Crónica 37/2006
Não se compreende nem se aceita que os políticos apenas saibam gerir o confronto recorrendo à chantagem ou à polícia.
Na semana passada, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, declarou a disponibilidade do Ministério da Educação para continuar a discutir o Estatuto da Carreira Docente com os sindicatos e mesmo para fazer algumas cedências nessa matéria que considerava aceitáveis, desde que os professores pusessem fim ao "clima de conflitualidade" e às suas "acções de luta".
Também na semana passada, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, decidiu gerir o conflito com uma companhia de teatro que fez um "sit-in" no Rivoli, em defesa da manutenção da gestão pública daquele teatro, recusando-se a manter qualquer diálogo com os manifestantes, cortando-lhes a electricidade e a água, baixando a temperatura do teatro para vencer os manifestantes pelo frio e fechando-lhes as portas de forma a impedir o seu contacto com o exterior. Os manifestantes acabariam por ser evacuados de madrugada pela polícia (sem oferecer resistência) depois de mais de três dias de ocupação.
Ambos os episódios são exemplos de como os políticos portugueses continuam a conviver mal com o confronto democrático e a contestação e de como o seu sentimento de autoridade é tão frágil que receiam pô-lo em causa caso enveredem por uma simples discussão com os seus críticos. Se no caso do "sit-in" do Rivoli se podia invocar o (débil) argumento da legalidade (ainda que os sit-ins, manifestações pacíficas, tenham uma honrosa genealogia que vai de Gandhi ao movimento dos direitos cívicos americano), no caso das manifestações e protestos dos professores nem esse existia – o que não impediu o secretário de Estado de tentar a sua jogada autocrática e censória.
Um amigo dizia-me há dias que em Portugal não é possível ter uma boa discussão – nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade. Por isso, disfarçam as diferenças até cair no falso consenso. A maior parte das discussões acaba à nascença, com o "Ah, mas eu não acho nada disso" que devia ser o sinal de partida para uma viva troca de argumentos.
Que os portugueses comuns fujam da discussão como o Diabo da Cruz, enfim. O que não se compreende nem se aceita é que os políticos apenas saibam gerir o confronto político recorrendo à chantagem ou à polícia.
Numa democracia liberal, o confronto das ideias e a negociação entre interesses legítimos é central ao processo de decisão. E pagamos aos políticos (entre outras coisas) para que eles participem nesse confronto de ideias, discutam, ouçam e depois decidam e executem. Esse confronto deveria, aliás, ser bem-vindo pelos políticos, já que ele estimula a participação democrática e contribui para o esclarecimento. Que esse confronto de ideias se realize num pano de fundo de conflitualidade social (com manifestações, greves e sit-ins) é um dos preços da democracia.
Se um político tiver a pele tão fina que não suporte participar nessa discussão deve abster-se de se apresentar ao povo como governante ou autarca. E, se considera que esse confronto de ideias deve ser reprimido pela força, não tem lugar num sistema democrático. Os políticos deveriam, pelo contrário, agradecer estas oportunidades, mediáticas por natureza, de explicar a bondade das suas políticas aos seus concidadãos. A utilização da força e da chantagem sugerem, com razão ou sem ela, que não possuem argumentos para apresentar ou que receiam o escrutínio do debate público.
A lamentável declaração de Jorge Pedreira é inaceitável em democracia e deveria ter sido objecto de um pedido de desculpas e de uma demissão. E o gesto de Rui Rio é mais um sinal da autoritária insegurança a que o autarca do Porto já nos habituou.
Texto publicado no jornal Público a 24 de Outubro de 2006
Crónica 37/2006
Não se compreende nem se aceita que os políticos apenas saibam gerir o confronto recorrendo à chantagem ou à polícia.
Na semana passada, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, declarou a disponibilidade do Ministério da Educação para continuar a discutir o Estatuto da Carreira Docente com os sindicatos e mesmo para fazer algumas cedências nessa matéria que considerava aceitáveis, desde que os professores pusessem fim ao "clima de conflitualidade" e às suas "acções de luta".
Também na semana passada, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, decidiu gerir o conflito com uma companhia de teatro que fez um "sit-in" no Rivoli, em defesa da manutenção da gestão pública daquele teatro, recusando-se a manter qualquer diálogo com os manifestantes, cortando-lhes a electricidade e a água, baixando a temperatura do teatro para vencer os manifestantes pelo frio e fechando-lhes as portas de forma a impedir o seu contacto com o exterior. Os manifestantes acabariam por ser evacuados de madrugada pela polícia (sem oferecer resistência) depois de mais de três dias de ocupação.
Ambos os episódios são exemplos de como os políticos portugueses continuam a conviver mal com o confronto democrático e a contestação e de como o seu sentimento de autoridade é tão frágil que receiam pô-lo em causa caso enveredem por uma simples discussão com os seus críticos. Se no caso do "sit-in" do Rivoli se podia invocar o (débil) argumento da legalidade (ainda que os sit-ins, manifestações pacíficas, tenham uma honrosa genealogia que vai de Gandhi ao movimento dos direitos cívicos americano), no caso das manifestações e protestos dos professores nem esse existia – o que não impediu o secretário de Estado de tentar a sua jogada autocrática e censória.
Um amigo dizia-me há dias que em Portugal não é possível ter uma boa discussão – nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade. Por isso, disfarçam as diferenças até cair no falso consenso. A maior parte das discussões acaba à nascença, com o "Ah, mas eu não acho nada disso" que devia ser o sinal de partida para uma viva troca de argumentos.
Que os portugueses comuns fujam da discussão como o Diabo da Cruz, enfim. O que não se compreende nem se aceita é que os políticos apenas saibam gerir o confronto político recorrendo à chantagem ou à polícia.
Numa democracia liberal, o confronto das ideias e a negociação entre interesses legítimos é central ao processo de decisão. E pagamos aos políticos (entre outras coisas) para que eles participem nesse confronto de ideias, discutam, ouçam e depois decidam e executem. Esse confronto deveria, aliás, ser bem-vindo pelos políticos, já que ele estimula a participação democrática e contribui para o esclarecimento. Que esse confronto de ideias se realize num pano de fundo de conflitualidade social (com manifestações, greves e sit-ins) é um dos preços da democracia.
Se um político tiver a pele tão fina que não suporte participar nessa discussão deve abster-se de se apresentar ao povo como governante ou autarca. E, se considera que esse confronto de ideias deve ser reprimido pela força, não tem lugar num sistema democrático. Os políticos deveriam, pelo contrário, agradecer estas oportunidades, mediáticas por natureza, de explicar a bondade das suas políticas aos seus concidadãos. A utilização da força e da chantagem sugerem, com razão ou sem ela, que não possuem argumentos para apresentar ou que receiam o escrutínio do debate público.
A lamentável declaração de Jorge Pedreira é inaceitável em democracia e deveria ter sido objecto de um pedido de desculpas e de uma demissão. E o gesto de Rui Rio é mais um sinal da autoritária insegurança a que o autarca do Porto já nos habituou.
terça-feira, outubro 17, 2006
Fácil, barato e justo
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Outubro de 2006
Crónica 36/2006
Seria interessante que, aproveitando o élan deste Nobel da Paz, os bancos decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados.
É uma piada mas também é verdade: para obter um empréstimo de um banco, é preciso demonstrar primeiro que não se precisa do dinheiro.
Se se precisa mesmo de dinheiro (principalmente se se trata de criar uma pequena empresa e principalmente se não se puder oferecer a hipoteca da casa como garantia), o mais provável é não o obter. E nem vale a pena imaginar as hipóteses de um pobre, desempregado, obter um empréstimo junto de um banco tradicional. Mesmo que seja para comprar uma caixa de ferramentas para poder ir trabalhar. Os empréstimos não são para os pobres.
A genial ideia de Muhammad Yunus, o criador do microcrédito, a quem acaba de ser concedido um mais que merecido Prémio Nobel da Paz, esteve em fazer exactamente o contrário do que as instituições de crédito tradicionais fazem: antes de mais, acreditar nas pessoas (na sua capacidade e na sua honestidade); em segundo lugar, não exigir garantias senão a palavra dos credores; em terceiro lugar, emprestar aos pobres (e, em particular, às mulheres, que têm no êxito do microcrédito um papel central).
O Banco Grameen é uma exaltante história de combate à pobreza e à exclusão que já emprestou 4.500 milhões de euros a 6,6 milhões de pobres, tendo mudado radicalmente a vida de muitos. E o exemplo frutificou: o Banco Mundial diz que o microcrédito já beneficiou 500 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma particular incidência na Ásia.
Estes números ganham toda a sua dimensão quando pensamos que 1200 milhões de pessoas (uma em cada seis) vive com menos de 80 cêntimos de euro (um dólar) por dia e que outras 2700 milhões de pessoas vive com menos de 1,6 euros (dois dólares) por dia.
O microcrédito não é apenas para os países pobres e tem presença em muitos países desenvolvidos – onde os pobres abundam e onde o fosso entre os mais pobres e os mais ricos tem aliás aumentado.
Em Portugal, foi criada em 1998 a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), instituição promotora do microcrédito, da qual são membros fundadores, além de vários indivíduos, as duas maiores instituições financeiras portuguesas: o Banco Comercial Português (BCP) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o site desta associação, foram concedidos desde o início da sua actividade "615 empréstimos (que criaram 711 empregos)" representando um total de "2.686.724 € de crédito concedido".
É possível que haja outras instituições de crédito portuguesas com linhas de microcrédito que a ANDC ignore ou não contabilize. Seja como for, penso que se pode dizer sem receio de errar que os números de microcrédito em Portugal são extremamente reduzidos. E só não se pode dizer que sejam insignificantes porque, para as escassas centenas que beneficiaram deles, eles foram certamente significativos.
Eles são porém certamente irrelevantes do ponto de vista das duas instituições financeiras em questão (já para não falar do conjunto dos bancos portugueses), quando comparados com os seus activos, o total de créditos concedidos, os seus lucros ou qualquer outro indicador.
Comemora-se hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Seria interessante que, em comemoração da data, em nome daqueles objectivos de Desenvolvimento Sustentável com que as personalidades bem-pensantes recheiam as suas intervenções públicas, em nome dos princípios de Responsabilidade Social das Empresas que os empresários modernos gostam de citar e aproveitando o élan deste Nobel da Paz, cuja iniciativa tantos exaltaram, as instituições de crédito – a começar pelos sócios fundadores ANDC, o BCP e a CGD – decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados, àqueles que querem criar o seu emprego e não têm como.
Seria possível dedicar a esse objectivo um milésimo do total de crédito? Um décimo milésimo?
Seria fácil fazê-lo, seria barato (não se trata de donativos, mas de empréstimos que são reembolsados!) e seria um gesto concreto de combate à pobreza e pelo desenvolvimento.
Texto publicado no jornal Público a 17 de Outubro de 2006
Crónica 36/2006
Seria interessante que, aproveitando o élan deste Nobel da Paz, os bancos decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados.
É uma piada mas também é verdade: para obter um empréstimo de um banco, é preciso demonstrar primeiro que não se precisa do dinheiro.
Se se precisa mesmo de dinheiro (principalmente se se trata de criar uma pequena empresa e principalmente se não se puder oferecer a hipoteca da casa como garantia), o mais provável é não o obter. E nem vale a pena imaginar as hipóteses de um pobre, desempregado, obter um empréstimo junto de um banco tradicional. Mesmo que seja para comprar uma caixa de ferramentas para poder ir trabalhar. Os empréstimos não são para os pobres.
A genial ideia de Muhammad Yunus, o criador do microcrédito, a quem acaba de ser concedido um mais que merecido Prémio Nobel da Paz, esteve em fazer exactamente o contrário do que as instituições de crédito tradicionais fazem: antes de mais, acreditar nas pessoas (na sua capacidade e na sua honestidade); em segundo lugar, não exigir garantias senão a palavra dos credores; em terceiro lugar, emprestar aos pobres (e, em particular, às mulheres, que têm no êxito do microcrédito um papel central).
O Banco Grameen é uma exaltante história de combate à pobreza e à exclusão que já emprestou 4.500 milhões de euros a 6,6 milhões de pobres, tendo mudado radicalmente a vida de muitos. E o exemplo frutificou: o Banco Mundial diz que o microcrédito já beneficiou 500 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma particular incidência na Ásia.
Estes números ganham toda a sua dimensão quando pensamos que 1200 milhões de pessoas (uma em cada seis) vive com menos de 80 cêntimos de euro (um dólar) por dia e que outras 2700 milhões de pessoas vive com menos de 1,6 euros (dois dólares) por dia.
O microcrédito não é apenas para os países pobres e tem presença em muitos países desenvolvidos – onde os pobres abundam e onde o fosso entre os mais pobres e os mais ricos tem aliás aumentado.
Em Portugal, foi criada em 1998 a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), instituição promotora do microcrédito, da qual são membros fundadores, além de vários indivíduos, as duas maiores instituições financeiras portuguesas: o Banco Comercial Português (BCP) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o site desta associação, foram concedidos desde o início da sua actividade "615 empréstimos (que criaram 711 empregos)" representando um total de "2.686.724 € de crédito concedido".
É possível que haja outras instituições de crédito portuguesas com linhas de microcrédito que a ANDC ignore ou não contabilize. Seja como for, penso que se pode dizer sem receio de errar que os números de microcrédito em Portugal são extremamente reduzidos. E só não se pode dizer que sejam insignificantes porque, para as escassas centenas que beneficiaram deles, eles foram certamente significativos.
Eles são porém certamente irrelevantes do ponto de vista das duas instituições financeiras em questão (já para não falar do conjunto dos bancos portugueses), quando comparados com os seus activos, o total de créditos concedidos, os seus lucros ou qualquer outro indicador.
Comemora-se hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Seria interessante que, em comemoração da data, em nome daqueles objectivos de Desenvolvimento Sustentável com que as personalidades bem-pensantes recheiam as suas intervenções públicas, em nome dos princípios de Responsabilidade Social das Empresas que os empresários modernos gostam de citar e aproveitando o élan deste Nobel da Paz, cuja iniciativa tantos exaltaram, as instituições de crédito – a começar pelos sócios fundadores ANDC, o BCP e a CGD – decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados, àqueles que querem criar o seu emprego e não têm como.
Seria possível dedicar a esse objectivo um milésimo do total de crédito? Um décimo milésimo?
Seria fácil fazê-lo, seria barato (não se trata de donativos, mas de empréstimos que são reembolsados!) e seria um gesto concreto de combate à pobreza e pelo desenvolvimento.
terça-feira, outubro 10, 2006
O cigarro em cativeiro
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Outubro de 2006
Crónica 35/2006
O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender.
Entre as muitas razões para ter começado a fumar, na minha adolescência (além da pressão dos pares e da vontade de adquirir a aparência madura que não tinha), está sem dúvida a escrita. A minha escrita e a dos outros – ou seja, a minha leitura. Escrever foi durante muitos anos uma actividade indissociável do cigarro, e a reflexão e a discussão algo indissociável do fumo.
A associação do cigarro à escrita deve-se a muitos livros e a muitos nomes, mas entre eles os de Camus e Sartre estão em lugar de destaque. Não consigo evocar uma imagem deles sem um cigarro na mão (existem fotografias, eu sei) e o facto de partilharem esse vício era a prova da ligação íntima entre a criação literária, a prática intelectual e política e o acto de fumar.
Além de Camus e de Sartre há outra figura que merece lugar no panteão de responsáveis do meu tabagismo: Somerset Maugham, que eu tinha devorado na colecção dos Livros do Brasil, onde ele aparecia (a fumar) na contracapa, a encimar uma pequena biografia onde se dizia que a sua mãe era uma "senhora de rara beleza". Nessa fotografia Somerset aparecia com um cigarro na mão levantada, numa pose "à escritor", a olhar sonhadoramente para cima, com a mente no Olimpo da criação, e o fumo do seu cigarro divide-se em dois, desenhando na fotografia uma andorinha branca.
Se houve uma imagem que me fez começar a fumar, foi essa. Se houve um exemplo que me levou a continuar a fumar e a fazer a dura travessia de noviço a dependente, foi o de Camus e de Sartre.
Além do cigarro, a escrita esteve durante muitos anos ligada a outro elemento, tão importante como o terceiro pé do tripé: o café. Não a bebida, mas o lugar. O lugar do ruído, do bulício, das pessoas que se cruzam num pano de fundo sempre diferente, do fumo dos outros e lugar do encontro. O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender. Lugar de introversão e espectáculo, só o café fornece mil oportunidades por segundo de saltar para dentro e para fora da nossa cabeça.
Se há cidade onde esta associação entre vida intelectual, cafés e tabaco está viva, é Paris. Paris é a cidade dos cafés e os intelectuais franceses fumam quase como imagem de marca – apesar do antitabagismo também aí dar passos largos. É por isso que é especialmente significativo o anúncio, feito pelo Governo francês, de que, a partir de Fevereiro de 2007, será proibido fumar em locais públicos em geral e que, um ano depois, a proibição se alargará a cafés, restaurantes, bares e discotecas.
Para alguém que poluiu a sua quota-parte de cafés e frequentadores de cafés, a notícia tem um sabor a fin-de-siècle. Fin de siècle não porque ela seja um exemplo de elegante desesperança ou de decadência em si, mas porque nesta higiénica recusa da decadência há, inelutavelmente, algo que se perde.
Devo dizer que não contesto o fundo da medida, ainda que pense que algo menos radical pudesse proteger igualmente a saúde pública (espaços isolados reservados para fumadores, com sistemas de extracção de fumo mais eficazes). O fumo do tabaco é algo que é comprovadamente pernicioso e ninguém tem o direito de expor os outros a algo que prejudica a sua saúde. Os argumentos sobre a liberdade dos fumadores não têm aqui cabimento pois o que se proíbe é que alguém injecte fumo nos pulmões dos outros e não nos seus próprios. É chato para os fumadores? Chatíssimo. Mas os benefícios para os fumadores passivos justificam o incómodo para os fumadores activos.
Mas o que esta medida (que se anuncia para Portugal) simbolicamente consegue fazer é cortar mais um laço entre o cigarro e a criação intelectual, retirá-lo daquilo que para mim era o seu habitat para o colocar num jardim zoológico, atrás de um vidro. Não sei se o cigarro conseguirá reproduzir-se em cativeiro. Duvido que a figura de Somerset a dar umas passas rápidas atrás de uma divisória de vidro me tivesse conseguido fazer sonhar.
Texto publicado no jornal Público a 10 de Outubro de 2006
Crónica 35/2006
O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender.
Entre as muitas razões para ter começado a fumar, na minha adolescência (além da pressão dos pares e da vontade de adquirir a aparência madura que não tinha), está sem dúvida a escrita. A minha escrita e a dos outros – ou seja, a minha leitura. Escrever foi durante muitos anos uma actividade indissociável do cigarro, e a reflexão e a discussão algo indissociável do fumo.
A associação do cigarro à escrita deve-se a muitos livros e a muitos nomes, mas entre eles os de Camus e Sartre estão em lugar de destaque. Não consigo evocar uma imagem deles sem um cigarro na mão (existem fotografias, eu sei) e o facto de partilharem esse vício era a prova da ligação íntima entre a criação literária, a prática intelectual e política e o acto de fumar.
Além de Camus e de Sartre há outra figura que merece lugar no panteão de responsáveis do meu tabagismo: Somerset Maugham, que eu tinha devorado na colecção dos Livros do Brasil, onde ele aparecia (a fumar) na contracapa, a encimar uma pequena biografia onde se dizia que a sua mãe era uma "senhora de rara beleza". Nessa fotografia Somerset aparecia com um cigarro na mão levantada, numa pose "à escritor", a olhar sonhadoramente para cima, com a mente no Olimpo da criação, e o fumo do seu cigarro divide-se em dois, desenhando na fotografia uma andorinha branca.
Se houve uma imagem que me fez começar a fumar, foi essa. Se houve um exemplo que me levou a continuar a fumar e a fazer a dura travessia de noviço a dependente, foi o de Camus e de Sartre.
Além do cigarro, a escrita esteve durante muitos anos ligada a outro elemento, tão importante como o terceiro pé do tripé: o café. Não a bebida, mas o lugar. O lugar do ruído, do bulício, das pessoas que se cruzam num pano de fundo sempre diferente, do fumo dos outros e lugar do encontro. O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender. Lugar de introversão e espectáculo, só o café fornece mil oportunidades por segundo de saltar para dentro e para fora da nossa cabeça.
Se há cidade onde esta associação entre vida intelectual, cafés e tabaco está viva, é Paris. Paris é a cidade dos cafés e os intelectuais franceses fumam quase como imagem de marca – apesar do antitabagismo também aí dar passos largos. É por isso que é especialmente significativo o anúncio, feito pelo Governo francês, de que, a partir de Fevereiro de 2007, será proibido fumar em locais públicos em geral e que, um ano depois, a proibição se alargará a cafés, restaurantes, bares e discotecas.
Para alguém que poluiu a sua quota-parte de cafés e frequentadores de cafés, a notícia tem um sabor a fin-de-siècle. Fin de siècle não porque ela seja um exemplo de elegante desesperança ou de decadência em si, mas porque nesta higiénica recusa da decadência há, inelutavelmente, algo que se perde.
Devo dizer que não contesto o fundo da medida, ainda que pense que algo menos radical pudesse proteger igualmente a saúde pública (espaços isolados reservados para fumadores, com sistemas de extracção de fumo mais eficazes). O fumo do tabaco é algo que é comprovadamente pernicioso e ninguém tem o direito de expor os outros a algo que prejudica a sua saúde. Os argumentos sobre a liberdade dos fumadores não têm aqui cabimento pois o que se proíbe é que alguém injecte fumo nos pulmões dos outros e não nos seus próprios. É chato para os fumadores? Chatíssimo. Mas os benefícios para os fumadores passivos justificam o incómodo para os fumadores activos.
Mas o que esta medida (que se anuncia para Portugal) simbolicamente consegue fazer é cortar mais um laço entre o cigarro e a criação intelectual, retirá-lo daquilo que para mim era o seu habitat para o colocar num jardim zoológico, atrás de um vidro. Não sei se o cigarro conseguirá reproduzir-se em cativeiro. Duvido que a figura de Somerset a dar umas passas rápidas atrás de uma divisória de vidro me tivesse conseguido fazer sonhar.
terça-feira, outubro 03, 2006
As reformas dos outros
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Outubro de 2006
Crónica 34/2006
Há quem considere que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal.
Existem, relativamente à Segurança Social, duas grandes posições de princípio. De um lado, os que consideram que a Segurança Social é um mecanismo estrutural de solidariedade social e que os seus descontos de hoje se destinam a assegurar as necessidades dos seus concidadãos mais frágeis (idosos, doentes, desempregados), na certeza de que, quando eles próprios se encontrarem em situação de fragilidade, os seus concidadãos estarão disponíveis para os ajudar financeiramente.
De outro lado, os que consideram que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal, que estão dispostos a desembolsar mensalmente apenas devido à certeza de que, quando necessitarem, poderão utilizar essa reserva que constituíram e que esperam que o Estado tenha gerido sabiamente de forma a ter aumentado o seu pecúlio.
Os primeiros preocupam-se com a garantia de que, no momento em que dela necessitarem, a Segurança Social terá receitas suficientes (o que significa, entre outras coisas, contribuintes suficientes) para prover às suas necessidades.
Os segundos são os que costumam comparar a "performance financeira" dos seus descontos com o rendimento de Fundos de Investimento privados e que sonham com o dia em que possam deixar de pagar a "reforma dos outros" para confiar exclusivamente na sua capacidade de investimento para se sustentarem na velhice e na doença.
Hoje em dia, pode dizer-se que, em linhas gerais, a primeira posição representa a esquerda do espectro político e a segunda a direita – mas essa linha divisória está longe de ser clara. Isto tanto mais quanto o estado social nasceu no pós-guerra de uma aliança entre a esquerda socialista e a democracia cristã – ainda que ambas cheguem ao conceito da solidariedade a partir de pontos diversos e com escopos não coincidentes.
Se aceitarmos um puro princípio mutualista, de associação para partilha de risco e socorro mútuo, podemos considerar que não há um problema financeiro na segurança social. A segurança social partilha o que há – quando há.
A questão é que a solidariedade transgeracional (os novos que trabalham pagam as pensões dos velhos que não trabalham) tem de se guiar também por princípios de equidade transgeracional: não é justo que pessoas que trabalharam e contribuíram da mesma maneira, recebam benefícios completamente diferentes apenas porque nasceram com trinta anos de intervalo. O problema de equidade transgeracional pode ser suavizado com a constituição de fundos de reserva que guardem vacas gordas para os anos magros – mas a situação de duas gerações pode ser financeiramente tão diferente que nenhuma reserva seja suficiente para evitar a iniquidade.
Numa situação em que há um problema de financiamento do sistema que se agrava por razões demográficas, é evidente que se deve tentar agir sobre esse factor (o que o Governo não faz), promovendo a natalidade. Mas é evidente que se deve também promover o valor (e demonstrar a utilidade) da solidariedade.
Neste momento, a investida da direita neoliberal e das empresas que exploram o ramo consiste em tentar convencer os mais ricos a investir em esquemas privados com apelos ao egoísmo e ataques ao estado social (os "ciganos do rendimento mínimo"). E, enquanto esse ataque se faz por todos os meios do marketing empresarial, o Estado social responde apenas no pouco glamoroso plano político.
Há fortes razões (solidárias e egoístas, religiosas e económicas, políticas e éticas, humanitárias e pragmáticas) para defender o Estado social. Mas é preciso que o Estado e os cidadãos para quem a solidariedade é um valor central, o façam pelo menos com a mesma convicção dos seus inimigos.
Texto publicado no jornal Público a 3 de Outubro de 2006
Crónica 34/2006
Há quem considere que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal.
Existem, relativamente à Segurança Social, duas grandes posições de princípio. De um lado, os que consideram que a Segurança Social é um mecanismo estrutural de solidariedade social e que os seus descontos de hoje se destinam a assegurar as necessidades dos seus concidadãos mais frágeis (idosos, doentes, desempregados), na certeza de que, quando eles próprios se encontrarem em situação de fragilidade, os seus concidadãos estarão disponíveis para os ajudar financeiramente.
De outro lado, os que consideram que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal, que estão dispostos a desembolsar mensalmente apenas devido à certeza de que, quando necessitarem, poderão utilizar essa reserva que constituíram e que esperam que o Estado tenha gerido sabiamente de forma a ter aumentado o seu pecúlio.
Os primeiros preocupam-se com a garantia de que, no momento em que dela necessitarem, a Segurança Social terá receitas suficientes (o que significa, entre outras coisas, contribuintes suficientes) para prover às suas necessidades.
Os segundos são os que costumam comparar a "performance financeira" dos seus descontos com o rendimento de Fundos de Investimento privados e que sonham com o dia em que possam deixar de pagar a "reforma dos outros" para confiar exclusivamente na sua capacidade de investimento para se sustentarem na velhice e na doença.
Hoje em dia, pode dizer-se que, em linhas gerais, a primeira posição representa a esquerda do espectro político e a segunda a direita – mas essa linha divisória está longe de ser clara. Isto tanto mais quanto o estado social nasceu no pós-guerra de uma aliança entre a esquerda socialista e a democracia cristã – ainda que ambas cheguem ao conceito da solidariedade a partir de pontos diversos e com escopos não coincidentes.
Se aceitarmos um puro princípio mutualista, de associação para partilha de risco e socorro mútuo, podemos considerar que não há um problema financeiro na segurança social. A segurança social partilha o que há – quando há.
A questão é que a solidariedade transgeracional (os novos que trabalham pagam as pensões dos velhos que não trabalham) tem de se guiar também por princípios de equidade transgeracional: não é justo que pessoas que trabalharam e contribuíram da mesma maneira, recebam benefícios completamente diferentes apenas porque nasceram com trinta anos de intervalo. O problema de equidade transgeracional pode ser suavizado com a constituição de fundos de reserva que guardem vacas gordas para os anos magros – mas a situação de duas gerações pode ser financeiramente tão diferente que nenhuma reserva seja suficiente para evitar a iniquidade.
Numa situação em que há um problema de financiamento do sistema que se agrava por razões demográficas, é evidente que se deve tentar agir sobre esse factor (o que o Governo não faz), promovendo a natalidade. Mas é evidente que se deve também promover o valor (e demonstrar a utilidade) da solidariedade.
Neste momento, a investida da direita neoliberal e das empresas que exploram o ramo consiste em tentar convencer os mais ricos a investir em esquemas privados com apelos ao egoísmo e ataques ao estado social (os "ciganos do rendimento mínimo"). E, enquanto esse ataque se faz por todos os meios do marketing empresarial, o Estado social responde apenas no pouco glamoroso plano político.
Há fortes razões (solidárias e egoístas, religiosas e económicas, políticas e éticas, humanitárias e pragmáticas) para defender o Estado social. Mas é preciso que o Estado e os cidadãos para quem a solidariedade é um valor central, o façam pelo menos com a mesma convicção dos seus inimigos.
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