por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Junho de 2001
Crónica x/2001
Uns amigos meus franceses vêm passar alguns dias a Lisboa todos os verões, desde há dez anos. Quando o tempo disponível o permite estendem o passeio a outras regiões, mas Lisboa é uma passagem obrigatória.
Costumam ficar instalados no centro da cidade, perto da Baixa, e usufruem a cidade como os estrangeiros que o sabem fazer.
Este ano, os meus amigos, que virão em Agosto, vão ter a surpresa de ver uma praça num local onde eles pensavam que havia apenas um descampado para uso das empresas de construção: em pleno Rossio.
Não me lembro com rigor quando é que o Rossio se transformou num estaleiro. Sei que foi há demasiados anos, mas não poderia dizer a data precisa. Antes das obras da praça propriamente dita houve um interregno cheio de tapumes mas sem actividade visível, antes do interregno houve as obras do Metro, antes das obras do Metro houve outras obras que usaram a praça como local de armazenamento de materiais, etc.
O que sei é que estes meus amigos, nas várias viagens que fizeram a Lisboa, nunca viram o Rossio liberto de obras, como pertence a uma praça que reivindica o título de coração da cidade. E sei que não o viram porque discutimos a questão no último Verão, quando passeávamos ao longo dos tapumes que se tornaram habituais na zona.
Não posso garantir que não tenha havido algum Verão em que eles tenham trocado os passeios diários à beira-Tejo por uma voltinha de barco no Campo Grande (o que é improvável mas não impossível) e que tenham perdido alguma janela de oportunidade em que o Rossio se tenha mostrado visível. Mas a verdade é que eles não se recordam do Rossio como a praça que devia ser. E eu também não.
Vem isto a propósito de o Rossio estar, finalmente, à beira de se mostrar, reabilitado e renovado, para alegria de todos os lisboetas, trabalhadores e visitantes da cidade. É evidente que os benefícios realizados são bem-vindos e é com alegria que retomamos possessão daquilo que é nosso. Mas seria conveniente que, daqui para a frente, a autarquia e as empresas mais ou menos públicas que actuam no espaço público da cidade não partissem do princípio de que o Rossio lhes pertence e deixassem de empilhar a brita naquele espaço que dá tanto jeito, mesmo à volta da fonte.
Esperamos mesmo que João Soares venha prometer que, se for eleito, não permitirá, em caso algum, que a praça do Rossio venha a ser usada como estaleiro, jurando que a dignidade do coração lisboeta não está à venda. Ou não veio o autarca na pele de candidato garantir que, se fosse presidente da Câmara Municipal de Lisboa (não é?), não permitiria que os carros estacionassem nos passeios?
terça-feira, junho 26, 2001
terça-feira, junho 19, 2001
A perda da infodiversidade
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Junho de 2001
Crónica x/2001
Há dez anos, quando alguém precisava de se informar rapidamente sobre um tema sobre o qual sabia pouco ou nada, tinha um problema bicudo entre mãos.
As fontes possíveis não eram muitas: ou se tentava identificar um especialista que nos pudesse informar e recomendar as leituras adequadas, ou se visitava uma biblioteca em busca de uma publicação onde as respostas pudessem ser debulhadas.
É claro que já havia grandes bases de dados recheadas de artigos, mas a sua consulta era cara e difícil e o seu conteúdo, com raras excepções, estava restrito aos temas das ciências duras. As pesquisas eram longas e produziam uma massa de respostas de manipulação impraticável.
A situação mudou radicalmente com o aparecimento da World Wide Web. De súbito, milhões de instituições e indivíduos começaram a disponibilizar a sua informação, a criar bases de dados de acesso livre e, o que é mais importante, começaram a aparecer os famosos motores de busca (ou de pesquisa): programas gratuitos capazes de, na Babel inimaginável da Web, localizar em segundos o que procuramos, de vasculhar não uma base de dados mas milhares e milhares de bases de dados.
Há dez anos, a informação procurava-se; hoje, colhe-se. A sua localização deixou de ser um problema de maior.
Os primeiros motores de busca da Web, quando procurávamos a palavra "árvore", encontravam todas as páginas que contivessem a palavra e consideravam-nas tanto mais relevantes para a nossa pesquisa quanto mais vezes essa palavra aparecesse. Depois, apareceram os motores de pesquisa actuais, que consideram as páginas tanto mais relevantes para nós quanto maior for o número de links da Web que aponta para elas. Como um programa de pesquisa não consegue avaliar a qualidade do conteúdo, faz o que pode: usa o "efeito de citação" para o avaliar, para o validar.
Assim, quanto mais links apontarem para uma página, mais visitantes ela receberá, enviados pelos motores de pesquisa, e cada vez mais links apontarão para ela, criando um efeito de bola de neve, facilitando a concentração de poder que a mundialização arrasta ao criar vasos comunicantes. Não é fácil resistir a este critério, pois toda a gente quer usar "a melhor pesquisa", "encontrar o melhor resultado" e ninguém está disposto a abdicar de uma funcionalidade deste tipo quando ela está ao alcance de um clique.
Claro que, em certos casos — quando sabemos bem o que procuramos, quando discriminamos a idoneidade das fontes —, possuímos critérios adicionais que nos permitem resistir às primeiras propostas dos programas de pesquisa. Mas quantos o fazem?
Contrariamente ao que esperavam da Internet os mais optimistas — um mundo de comunicação aberta e democrática, onde todos pudessem fazer ouvir a sua voz e fazer valer as suas ideias —, a Web corre assim o risco de levar a uma dramática perda da infodiversidade (a variedade das fontes, a multiplicidade de pontos de vista), que poderá ser tão desastrosa como a perda de biodiversidade.
Texto publicado no jornal Público a 19 de Junho de 2001
Crónica x/2001
Há dez anos, quando alguém precisava de se informar rapidamente sobre um tema sobre o qual sabia pouco ou nada, tinha um problema bicudo entre mãos.
As fontes possíveis não eram muitas: ou se tentava identificar um especialista que nos pudesse informar e recomendar as leituras adequadas, ou se visitava uma biblioteca em busca de uma publicação onde as respostas pudessem ser debulhadas.
É claro que já havia grandes bases de dados recheadas de artigos, mas a sua consulta era cara e difícil e o seu conteúdo, com raras excepções, estava restrito aos temas das ciências duras. As pesquisas eram longas e produziam uma massa de respostas de manipulação impraticável.
A situação mudou radicalmente com o aparecimento da World Wide Web. De súbito, milhões de instituições e indivíduos começaram a disponibilizar a sua informação, a criar bases de dados de acesso livre e, o que é mais importante, começaram a aparecer os famosos motores de busca (ou de pesquisa): programas gratuitos capazes de, na Babel inimaginável da Web, localizar em segundos o que procuramos, de vasculhar não uma base de dados mas milhares e milhares de bases de dados.
Há dez anos, a informação procurava-se; hoje, colhe-se. A sua localização deixou de ser um problema de maior.
Os primeiros motores de busca da Web, quando procurávamos a palavra "árvore", encontravam todas as páginas que contivessem a palavra e consideravam-nas tanto mais relevantes para a nossa pesquisa quanto mais vezes essa palavra aparecesse. Depois, apareceram os motores de pesquisa actuais, que consideram as páginas tanto mais relevantes para nós quanto maior for o número de links da Web que aponta para elas. Como um programa de pesquisa não consegue avaliar a qualidade do conteúdo, faz o que pode: usa o "efeito de citação" para o avaliar, para o validar.
Assim, quanto mais links apontarem para uma página, mais visitantes ela receberá, enviados pelos motores de pesquisa, e cada vez mais links apontarão para ela, criando um efeito de bola de neve, facilitando a concentração de poder que a mundialização arrasta ao criar vasos comunicantes. Não é fácil resistir a este critério, pois toda a gente quer usar "a melhor pesquisa", "encontrar o melhor resultado" e ninguém está disposto a abdicar de uma funcionalidade deste tipo quando ela está ao alcance de um clique.
Claro que, em certos casos — quando sabemos bem o que procuramos, quando discriminamos a idoneidade das fontes —, possuímos critérios adicionais que nos permitem resistir às primeiras propostas dos programas de pesquisa. Mas quantos o fazem?
Contrariamente ao que esperavam da Internet os mais optimistas — um mundo de comunicação aberta e democrática, onde todos pudessem fazer ouvir a sua voz e fazer valer as suas ideias —, a Web corre assim o risco de levar a uma dramática perda da infodiversidade (a variedade das fontes, a multiplicidade de pontos de vista), que poderá ser tão desastrosa como a perda de biodiversidade.
terça-feira, junho 12, 2001
American way of death
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Junho de 2001
Crónica x/2001
Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh.
O homem que foi ontem executado nos EUA cometeu um acto de violência cega, longa e friamente planeado, que vitimou um enorme número de pessoas, que eram inocentes mesmo do ponto de vista do próprio assassino. Veigh executou o seu atentado como um gesto de terrorismo contra o Estado americano, por razões de puro delírio, apenas para mostrar que era capaz de inflingir perdas e espalhar o medo no seio do seu inimigo, e nunca mostrou remorsos pelo seu acto. As crianças que morreram na explosão foram consideradas por McVeigh como "danos laterais", lamentáveis mas negligenciáveis, um pequeno preço a pagar pelo êxito de uma justa "acção de guerra".
Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh. E é verdade que, para muitos americanos, o mundo até pode parecer um sítio mais seguro depois da sua morte.
Mas, se não se pode lamentar a morte deste homem, é inevitável que lamentemos o facto de ela ter ocorrido às mãos de um Estado que se proclama defensor dos direitos humanos.
Uma execução é um acto de barbárie. Que a morte de um homem seja causada por outro pode compreender-se em certas circunstâncias — não é difícil imaginar alguma em que qualquer um de nós o faria — mas, que essa morte seja planeada e executada a sangue-frio, é um acto da mais nauseante abjecção.
Ao dar a sua morte como espectáculo ao mundo a pretexto de transparência na administração da justiça (é pouco relevante que a execução não tenha sido mostrada), as autoridades e os media tornaram-nos espectadores e, nessa medida, participantes e cúmplices do horror, da banalização do mal. E isso diminui-nos.
Imaginar que uma execução (ou mil) possa de alguma forma reduzir o clima de violência que se vive num país é não só irracional como desmentido pelos factos. Tal como Waco foi o detonador da loucura de McVeigh, a sua morte será uma razão para outros, alimentando o ciclo de violência do "american way of death".
Os Estados Unidos são um país violento porque são sede das mais violentas injustiças sociais que existem no mundo e porque mantêm e alimentam um vivo culto da violência e do direito do mais forte em todas as suas instituições — da justiça à saúde, do entretenimento à economia. Um culto de violência banalizado, exportado para todo o mundo e protagonizado pelo Estado, que ontem nos ofereceu o mais obsceno espectáculo que um país pode oferecer: um assassinato travestido de justiça.
A Justiça de uma sociedade não pode ser outro nome para vingança. A justiça moderna define penas que têm um triplo objectivo: castigar, dissuadir e reabilitar. A pena de morte castiga, mas não dissuade (porque não tem pedagogia, porque não apresenta valores alternativos) e não só impossibilita a reabilitação como destrói a própria ideia de reabilitação. Tudo o que faz é colocar aquilo que devia ser a Justiça ao nível de um McVeigh.
Texto publicado no jornal Público a 12 de Junho de 2001
Crónica x/2001
Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh.
O homem que foi ontem executado nos EUA cometeu um acto de violência cega, longa e friamente planeado, que vitimou um enorme número de pessoas, que eram inocentes mesmo do ponto de vista do próprio assassino. Veigh executou o seu atentado como um gesto de terrorismo contra o Estado americano, por razões de puro delírio, apenas para mostrar que era capaz de inflingir perdas e espalhar o medo no seio do seu inimigo, e nunca mostrou remorsos pelo seu acto. As crianças que morreram na explosão foram consideradas por McVeigh como "danos laterais", lamentáveis mas negligenciáveis, um pequeno preço a pagar pelo êxito de uma justa "acção de guerra".
Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh. E é verdade que, para muitos americanos, o mundo até pode parecer um sítio mais seguro depois da sua morte.
Mas, se não se pode lamentar a morte deste homem, é inevitável que lamentemos o facto de ela ter ocorrido às mãos de um Estado que se proclama defensor dos direitos humanos.
Uma execução é um acto de barbárie. Que a morte de um homem seja causada por outro pode compreender-se em certas circunstâncias — não é difícil imaginar alguma em que qualquer um de nós o faria — mas, que essa morte seja planeada e executada a sangue-frio, é um acto da mais nauseante abjecção.
Ao dar a sua morte como espectáculo ao mundo a pretexto de transparência na administração da justiça (é pouco relevante que a execução não tenha sido mostrada), as autoridades e os media tornaram-nos espectadores e, nessa medida, participantes e cúmplices do horror, da banalização do mal. E isso diminui-nos.
Imaginar que uma execução (ou mil) possa de alguma forma reduzir o clima de violência que se vive num país é não só irracional como desmentido pelos factos. Tal como Waco foi o detonador da loucura de McVeigh, a sua morte será uma razão para outros, alimentando o ciclo de violência do "american way of death".
Os Estados Unidos são um país violento porque são sede das mais violentas injustiças sociais que existem no mundo e porque mantêm e alimentam um vivo culto da violência e do direito do mais forte em todas as suas instituições — da justiça à saúde, do entretenimento à economia. Um culto de violência banalizado, exportado para todo o mundo e protagonizado pelo Estado, que ontem nos ofereceu o mais obsceno espectáculo que um país pode oferecer: um assassinato travestido de justiça.
A Justiça de uma sociedade não pode ser outro nome para vingança. A justiça moderna define penas que têm um triplo objectivo: castigar, dissuadir e reabilitar. A pena de morte castiga, mas não dissuade (porque não tem pedagogia, porque não apresenta valores alternativos) e não só impossibilita a reabilitação como destrói a própria ideia de reabilitação. Tudo o que faz é colocar aquilo que devia ser a Justiça ao nível de um McVeigh.
terça-feira, junho 05, 2001
O factor animal
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2001
Crónica x/2001
A propósito de três livros publicados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha que abordam a posição ocupada pelos deficientes na sociedade e o papel de assistência aos doentes tradicionalmente assumido pelas mulheres, a especialista de ética Martha Nussbaum publicou no jornal "The New York Review of Books" um interessante artigo.
Nussbaum começa por fazer notar que este trabalho, geralmente feito por mulheres, constitui um factor de desigualdade social e injustiça, já que não é remunerado nem reconhecido socialmente. A sua invisibilidade é ainda maior que o trabalho de casa ou o de cuidar dos filhos, apesar de ele limitar de forma drástica a possibilidade de fruição pessoal, de realização profissional e de participação cívica daquelas que o desempenham.
Estas mulheres realizam um trabalho vital para a sociedade, cujo peso tenderá a ser cada vez maior, à medida que aumenta a esperança de vida.
Porém, à medida que a sua necessidade aumenta, a sua dignidade não parece de forma alguma reconhecida.
O artigo de Nussbaum chama a atenção para o facto de que todos somos indivíduos apenas episodicamente independentes. Se considerarmos a nossa infância, a velhice, as doenças passageiras ou crónicas, as convalescenças, as deficiências temporárias ou definitivas, damo-nos conta de que uma grande parte da nossa vida é passada sob os cuidados de alguém.
Ora acontece que as teorias políticas ocidentais se baseiam na ideia de um "contrato social", assinado por seres "livres, iguais e independentes" para vantagem mútua. Esta ficção de uma sociedade formada por seres competentes e maduros parece inocente mas não é, diz Nussbaum.
De facto, haverá sempre pessoas permanentemente dependentes, incapazes de participar nos acordos de reciprocidade que estão na base dos nossos ideais de justiça e de solidariedade.
O contrato pressupõe uma vantagem mútua. O que se passa quando já se sabe à partida que algúem vai "receber" e não vai nunca "pagar"? O contrato não poderá ser posto em causa? Será que um dia os deficientes poderão ser julgados um luxo que uma sociedade competitiva não pode tolerar?
Nussbaum discute um alargamento da lista dos "bens primários" que qualquer sociedade deve proporcionar a todos os seus cidadãos (proposta pelo filósofo John Rawls) de forma a incluir a assistência durante os períodos de dependência.
Mas Nussbaum não resolve o problema daqueles que serão sempre dependentes e que nunca poderão "pagar" a sua parte numa moeda socialmente aceite. Uma proposta para garantir a reciprocidade do contrato seria introduzir formalmente o "factor animal" nestas considerações, incluindo na lista dos "bens primários" que a sociedade deve garantir não apenas o bem-estar próprio, mas o bem-estar da nossa prole.
A regra de ouro social deixaria assim de ser apenas "tratar os outros como queremos que nos tratem "mas também "tratar os filhos dos outros como queremos que tratem os nossos filhos" — o que constituiria uma vantagem própria e garantiria o resultado desejado.
Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2001
Crónica x/2001
A propósito de três livros publicados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha que abordam a posição ocupada pelos deficientes na sociedade e o papel de assistência aos doentes tradicionalmente assumido pelas mulheres, a especialista de ética Martha Nussbaum publicou no jornal "The New York Review of Books" um interessante artigo.
Nussbaum começa por fazer notar que este trabalho, geralmente feito por mulheres, constitui um factor de desigualdade social e injustiça, já que não é remunerado nem reconhecido socialmente. A sua invisibilidade é ainda maior que o trabalho de casa ou o de cuidar dos filhos, apesar de ele limitar de forma drástica a possibilidade de fruição pessoal, de realização profissional e de participação cívica daquelas que o desempenham.
Estas mulheres realizam um trabalho vital para a sociedade, cujo peso tenderá a ser cada vez maior, à medida que aumenta a esperança de vida.
Porém, à medida que a sua necessidade aumenta, a sua dignidade não parece de forma alguma reconhecida.
O artigo de Nussbaum chama a atenção para o facto de que todos somos indivíduos apenas episodicamente independentes. Se considerarmos a nossa infância, a velhice, as doenças passageiras ou crónicas, as convalescenças, as deficiências temporárias ou definitivas, damo-nos conta de que uma grande parte da nossa vida é passada sob os cuidados de alguém.
Ora acontece que as teorias políticas ocidentais se baseiam na ideia de um "contrato social", assinado por seres "livres, iguais e independentes" para vantagem mútua. Esta ficção de uma sociedade formada por seres competentes e maduros parece inocente mas não é, diz Nussbaum.
De facto, haverá sempre pessoas permanentemente dependentes, incapazes de participar nos acordos de reciprocidade que estão na base dos nossos ideais de justiça e de solidariedade.
O contrato pressupõe uma vantagem mútua. O que se passa quando já se sabe à partida que algúem vai "receber" e não vai nunca "pagar"? O contrato não poderá ser posto em causa? Será que um dia os deficientes poderão ser julgados um luxo que uma sociedade competitiva não pode tolerar?
Nussbaum discute um alargamento da lista dos "bens primários" que qualquer sociedade deve proporcionar a todos os seus cidadãos (proposta pelo filósofo John Rawls) de forma a incluir a assistência durante os períodos de dependência.
Mas Nussbaum não resolve o problema daqueles que serão sempre dependentes e que nunca poderão "pagar" a sua parte numa moeda socialmente aceite. Uma proposta para garantir a reciprocidade do contrato seria introduzir formalmente o "factor animal" nestas considerações, incluindo na lista dos "bens primários" que a sociedade deve garantir não apenas o bem-estar próprio, mas o bem-estar da nossa prole.
A regra de ouro social deixaria assim de ser apenas "tratar os outros como queremos que nos tratem "mas também "tratar os filhos dos outros como queremos que tratem os nossos filhos" — o que constituiria uma vantagem própria e garantiria o resultado desejado.
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