por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Junho de 1999
Suplemento Mil Folhas - Crítica do livro "Truth to Tell" de Lanny Davis
"Truth to Tell" conta-nos como escândalos na Casa Branca foram "geridos" e os danos foram "controlados". Sempre na defesa dos interesses do presidente Bill Clinton - a quem Lanny Davis se refere como "o seu cliente".
Os livros mais ou menos memorialistas dos assessores dos presidentes norte-americanos sobre as respectivas passagens pela Casa Branca não são uma raridade. Não há praticamente ninguém que tenha vivido um momento de intimidade ou cumplicidade na Sala Oval que resista a contá-lo ao mundo. O consulado de Clinton tem sido rico neste tipo de produção, de Dick Morris ("Behind the Oval Office") a George Stephanopoulos ("All Too Human") e da história de Gennifer Flowers ("Sleeping With the President") à de Monica Lewinsky ("Monica's Story").
O que o livro de Lanny Davis ("Truth to Tell") tem de particular é o facto de abordar um tema particularmente restrito e que raramente é tratado de forma tão explícita (os americanos diriam "cândida") pelos assessores dos políticos: as relações entre o poder e a imprensa em situações de crise.
Lanny Davis é um advogado de Washington que foi contratado pela Casa Branca em Dezembro de 1996 com um mandato simples: gerir as relações com a imprensa em casos de escândalo. Uma especialidade no domínio da comunicação institucional a que se dá o nome de "gestão de crises e controlo de danos".
É verdade que também existem muitos livros no mercado sobre a gestão de crises, mas trata-se de manuais assépticos que é impossível ler sem algumas dúvidas quanto à exequibilidade dos seus princípios no mundo real.
"Truth to Tell", pelo contrário, conta-nos a história de alguns casos reais onde a crise foi "gerida" e onde os danos foram "controlados". Sempre na defesa dos interesses do empregador de Davis, o presidente Bill Clinton - a quem Davis se refere como "o seu cliente" -, explicando-nos pelo caminho algumas evidências sobre a forma como a imprensa e o público podem ser manipulados... sem ferir a verdade.
"Truth to Tell" tem um "handicap": o seu autor entrou na Casa Branca em Dezembro de 1996, quando o período mais quente de Whitewater já tinha passado (ainda que o caso estivesse longe de ter acabado) e saiu em Janeiro de 1998, quando o caso Lewinsky tinha acabado de rebentar (Davis garante que não há relação de causalidade entre o caso e a sua saída, motivada por razões pessoais).A maior parte dos casos que Davis conta no seu livro dizem respeito ao chamado escândalo do financiamento do Partido Democrata - financiadores pouco transparentes, suspeita de atropelo de várias normas legais, suspeita de venda de certos favores (noites na Casa Branca, viagens no Air Force One) em troca de donativos - mas é fascinante ver como a aplicação de certas normas de "controlo de danos" pelo pessoal da Casa Branca conseguiu anular por completo o impacto de histórias que, noutro contexto, seriam desastrosas.
O truque de Davis? Nem mais nem menos do que uma velha receita na qual é difícil acreditar: contar a verdade, mas fazê-lo de forma a controlar o resultado. O livro traz aliás na capa a epígrafe "Tell it early, tell it all, tell it yourself" (Conte tudo, faça-o cedo e faça-o você próprio).
Como é que se consegue fazer isso e proteger a imagem do seu cliente? Davis explica em pormenor. Quando um assessor de imprensa está perante a iminência da publicação de uma história potencialmente desastrosa, deve tentar antes de mais conseguir a publicação de um artigo de referência sobre essa história, num órgão de comunicação respeitado, de onde constem todas as informações potencialmente prejudiciais.
Para quê? Para que nem o mesmo órgão de informação nem qualquer outro tenha matéria para continuar a explorar a história. O objectivo, em resumo, é esgotar a história ou, como diz Davis, "transformar as más notícias em notícias velhas".
Se houver factos verdadeiramente negativos na história, a opinião pública e os opositores políticos poderão explorá-los durante algum tempo, mas eles acabarão por cair no esquecimento - afogados pelo quotidiano dos jornais, da televisão e da política, por factos novos, que se vão sobrepondo aos outros e nos vão fazendo esquecer as notícias de ontem para impor as de hoje.
Se não se conseguir a publicação da história de referência ou se não se fornecerem todas as informações aos jornalistas, o que acontece é que um escândalo dará origem não a uma história mas a uma série de histórias, exploradas por vários jornais, que se empenharão em cavar mais fundo, para bater os seus concorrentes - com a agravante suplementar que cada jornal não deixará de sublinhar que os visados tentaram sonegar informação ao público. Com a publicação da história de referência, tudo morre à nascença. E Davis tem um currículo para provar a tese.
Como é que se consegue que um órgão de comunicação sério escreva a história que convém? Oferecendo-lhe um exclusivo. Garantindo-lhe que terá toda a informação que os outros nunca terão, que poderá falar com toda a gente com que os outros nunca poderão falar. E garantindo desta forma que os pontos de vista do seu cliente serão ouvidos, compreendidos e referidos.É claro que, depois, o assessor de imprensa verdadeiramente eficaz usa outros truques: por exemplo, tenta publicar a história no dia em que ela possa ter menos impacto (uma manhã de sábado é uma boa ocasião) e - truque supremo - oferece-a a uma agência noticiosa como a Associated Press, sabendo que jornais como o "New York Times" ou o "Washington Post" jamais publicarão uma história da AP na primeira página se não lhe puderem acrescentar absolutamente nenhuma informação nova.
Sublinhe-se que não há aqui qualquer venalidade: os jornalistas que Davis escolhe como seus interlocutores privilegiados são excelentes profissionais, independentes e rigorosos, dos melhores jornais, que tentam dar aos seus leitores a melhor informação possível. Mas, devido às idiossincrasias da prática dos jornais (que valorizam mais uma história própria do que uma descoberta pela concorrência; a história de hoje em detrimento de uma história com três dias, independentemente da sua importância relativa) é possível manobrar o noticiário de forma a servir os interesses do inquilino da Casa Branca ou de qualquer outro que pague o salário de Lanny Davis.
Como é que se pode ter a certeza de que um jornalista distraído não voltará a publicar a história, se se faz tudo o que é possível para que ela passe despercebida? Graças à gigantesca base de dados Lexis-Nexis, que reúne os artigos da imprensa norte-americana e que os repórteres consultam sempre antes de começar a escrever sobre algum assunto, para ver o que já foi dito sobre a questão. Se o assunto já foi objecto de uma história de referência, a consulta da Lexis-Nexis revelará que não há nada, absolutamente nada, que possa ser acrescentado à questão. E, por muito quente que o tema seja (ou tenha sido), ele irá para o cesto dos papéis.
Depois de ler "Truth to Tell" e de termos visto como o caso Lewinsky viveu do facto de Clinton ter tentado escondê-lo (e como ele se esvaziou depois de conhecermos tudo) é impossível não pensar no que (não) teria acontecido se Lanny Davis tivesse sido encarregado de o controlar.
sábado, junho 26, 1999
sexta-feira, junho 25, 1999
A vida é sonho?
por José Vítor Malheiros
O tema da irrealidade do mundo material que nos rodeia não é novo. Ele está presente há milénios em religiões que tentam libertar-nos das misérias da realidade e compensar-nos no futuro pelas insuficiências do presente.
A grande diferença entre estas teorias e o mundo que nos oferece "The Matrix" é que, para as primeiras, aquilo a que chamamos "mundo" é uma ilusão provisória, oferecida aos sentidos enquanto esperamos a verdadeira e eterna existência, num mundo talvez sem substância mas que é o único dotado de realidade e que nos pode oferecer a completa felicidade - um Paraíso. No filme, a única coisa que se esconde por trás da ilusão da nossa realidade é o Inferno sem apelo.
Como "eXistenZ", de David Cronenberg, também actualmente em exibição (com quem as comparações são inevitáveis), "The Matrix" aborda um tema que já foi pura filosofia mas a que as descobertas das neurociências vieram trazer uma dimensão física (uma expressão só aparentemente mais segura do que "realidade"): a realidade é um mundo construído pelo nosso cérebro, a partir dos elementos que lhe são fornecidos pelos sentidos e com base em regras de coerência interna.
Dito de outra forma: ninguém sabe como as coisas são; sabemos apenas como elas nos parecem. E sabemos hoje que, quando essa percepção é alterada, o nosso cérebro cria com facilidade visões alternativas do mundo, de forma a integrar nelas de forma coerente as novas mensagens que lhe chegam.Um exemplo simples disso é o que acontece quando uma pessoa coloca uns óculos prismáticos que invertem as imagens que vê. Depois de algumas horas a ver as coisas de pernas para o ar (o que contraria tudo aquilo que ela sabe sobre o funcionamento do mundo), o cérebro da pessoa que é objecto da experiência inverte a imagem recebida e coloca o mundo no seu sítio, de pés no chão, sem que tenha sido preciso tirar os óculos. A imagem que se forma na retina é a mesma, o seu processamento pelo córtex visual mudou. A visão do mundo volta a ser coerente com a história pessoal do indivíduo, com as restantes experiências e as restantes mensagens dos seus sentidos. Se, passados uns dias, os óculos forem retirados, o mundo volta a estar de pernas para o ar, mas tudo se recomporá de novo (não sem umas náuseas ou enxaquecas) passadas umas horas.
Os míopes tem uma experiência quotidiana destas experiências: apesar de os seus óculos mostrarem uma imagem muito mais pequena do que a vista sem óculos, uns dias depois de colocar pela primeira vez umas lentes à frente dos olhos, os míopes passam a ver as coisas das suas verdadeiras dimensões: as suas mãos parecem-lhes da mesma dimensão vistas através dos óculos ou não, porque o seu cérebro sabe que elas não mudam de dimensão e faz, por isso, o necessário ajustamento.
Ou seja: o mundo é fabricado pelo cérebro e a sensação da sua "realidade" não é mais do que o resultado da coerência das várias mensagens recebidas pelos nossos sentidos ao longo do tempo. Sabemos que o filme que vemos no ecrã não é real porque sentimos a cadeira em que estamos sentados e o nosso cérebro atribui uma maior pontuação na escala da realidade a essa sensação. Mas o que acontecerá quando não a sentirmos?
As tecnologias de informação permitem hoje criar mundos virtuais e injectar no nosso cérebro (via órgãos dos sentidos) um grande número de sensações artificiais (imagens, sons, pressão, vibrações). E a ficção científica imagina há décadas o momento em que essa injecção poderá ser feita directamente no cérebro, sem a perturbação da tradução pelos sentidos, e ser tão rica de pormenores como a realidade. Mas o que nos dizem as experiências de realidade virtual, curiosamente, é que não é o aspecto realista do mundo virtual que nos faz acreditar mais nele, mas sim a sua coerência com a nossa experiência, a capacidade de reagir aos nossos gestos. Um mundo de realidade virtual com uma estética de "desenho animado" mas onde as portas se abrem quando rodamos a maçaneta parecer-nos-á mais real que um cenário hiperrealista onde nada reage como devia.
"The Matrix" é, à boa maneira americana, um filme de citações (ou de "clichés", se se quiser), onde o espectador pode reconhecer em cada passo referências estéticas e narrativas, da ficção científica dos Humanoïdes Associés aos contos infantis e aos jogos de computador (as sequências de luta são puro "Mortal Kombat" e é impossível não pensar no jogo de simulação "SimCity"). No entanto, oferece algo de mais interessante: as histórias de ficção científica só costumam ser verosímeis (quando o são) se aceitarmos as premissas do mundo que nos é proposto - e que podem ser muito difíceis de aceitar -, mas a história de "Matrix", sendo a mais fantástica e fantasmagórica que se possa imaginar, é surpreendentemente verosímil no nosso mundo, para aquilo que sabemos hoje.
Em termos de verosimilhança científica, há porém um problema (que não é menor): a ausência de corpo. Ao contrário do que acontece no filme, não seria possível a um corpo que teve durante anos apenas uma existência puramente cerebral, "acordar" e aprender em dias o que nunca aprendeu, de forma a poder viver num mundo real. É que, se para ver é preciso ter cérebro e olhos, isso não basta: é também preciso uma longa, lenta e sedimentada aprendizagem. Um ratinho nascido e mantido num mundo de riscas verticais não consegue ver linhas horizontais: é cego para o que não aprendeu a ver, ainda que os seus olhos e o seu córtex visual funcionem.
Da mesma maneira, um cérebro que não aprendesse a receber sinais do seu corpo (não se trata apenas dos sinais dos sentidos, mas de toda a "paisagem hormonal" que retrata as emoções, de que fala o neurologista António Damásio) não poderia aprender a funcionar nalguns dias e não poderia ser senão um catálogo de psicoses. Por outras palavras: se é possível imaginar que os humanos vivam na Matriz e estejam mergulhados numa vida imaginária, de forma a poderem continuar a experimentar as emoções sintéticas que lhes permitem manter-se vivos, é mais difícil imaginar que eles possam algum dia sair dessa escravidão.
O tema da irrealidade do mundo material que nos rodeia não é novo. Ele está presente há milénios em religiões que tentam libertar-nos das misérias da realidade e compensar-nos no futuro pelas insuficiências do presente.
A grande diferença entre estas teorias e o mundo que nos oferece "The Matrix" é que, para as primeiras, aquilo a que chamamos "mundo" é uma ilusão provisória, oferecida aos sentidos enquanto esperamos a verdadeira e eterna existência, num mundo talvez sem substância mas que é o único dotado de realidade e que nos pode oferecer a completa felicidade - um Paraíso. No filme, a única coisa que se esconde por trás da ilusão da nossa realidade é o Inferno sem apelo.
Como "eXistenZ", de David Cronenberg, também actualmente em exibição (com quem as comparações são inevitáveis), "The Matrix" aborda um tema que já foi pura filosofia mas a que as descobertas das neurociências vieram trazer uma dimensão física (uma expressão só aparentemente mais segura do que "realidade"): a realidade é um mundo construído pelo nosso cérebro, a partir dos elementos que lhe são fornecidos pelos sentidos e com base em regras de coerência interna.
Dito de outra forma: ninguém sabe como as coisas são; sabemos apenas como elas nos parecem. E sabemos hoje que, quando essa percepção é alterada, o nosso cérebro cria com facilidade visões alternativas do mundo, de forma a integrar nelas de forma coerente as novas mensagens que lhe chegam.Um exemplo simples disso é o que acontece quando uma pessoa coloca uns óculos prismáticos que invertem as imagens que vê. Depois de algumas horas a ver as coisas de pernas para o ar (o que contraria tudo aquilo que ela sabe sobre o funcionamento do mundo), o cérebro da pessoa que é objecto da experiência inverte a imagem recebida e coloca o mundo no seu sítio, de pés no chão, sem que tenha sido preciso tirar os óculos. A imagem que se forma na retina é a mesma, o seu processamento pelo córtex visual mudou. A visão do mundo volta a ser coerente com a história pessoal do indivíduo, com as restantes experiências e as restantes mensagens dos seus sentidos. Se, passados uns dias, os óculos forem retirados, o mundo volta a estar de pernas para o ar, mas tudo se recomporá de novo (não sem umas náuseas ou enxaquecas) passadas umas horas.
Os míopes tem uma experiência quotidiana destas experiências: apesar de os seus óculos mostrarem uma imagem muito mais pequena do que a vista sem óculos, uns dias depois de colocar pela primeira vez umas lentes à frente dos olhos, os míopes passam a ver as coisas das suas verdadeiras dimensões: as suas mãos parecem-lhes da mesma dimensão vistas através dos óculos ou não, porque o seu cérebro sabe que elas não mudam de dimensão e faz, por isso, o necessário ajustamento.
Ou seja: o mundo é fabricado pelo cérebro e a sensação da sua "realidade" não é mais do que o resultado da coerência das várias mensagens recebidas pelos nossos sentidos ao longo do tempo. Sabemos que o filme que vemos no ecrã não é real porque sentimos a cadeira em que estamos sentados e o nosso cérebro atribui uma maior pontuação na escala da realidade a essa sensação. Mas o que acontecerá quando não a sentirmos?
As tecnologias de informação permitem hoje criar mundos virtuais e injectar no nosso cérebro (via órgãos dos sentidos) um grande número de sensações artificiais (imagens, sons, pressão, vibrações). E a ficção científica imagina há décadas o momento em que essa injecção poderá ser feita directamente no cérebro, sem a perturbação da tradução pelos sentidos, e ser tão rica de pormenores como a realidade. Mas o que nos dizem as experiências de realidade virtual, curiosamente, é que não é o aspecto realista do mundo virtual que nos faz acreditar mais nele, mas sim a sua coerência com a nossa experiência, a capacidade de reagir aos nossos gestos. Um mundo de realidade virtual com uma estética de "desenho animado" mas onde as portas se abrem quando rodamos a maçaneta parecer-nos-á mais real que um cenário hiperrealista onde nada reage como devia.
"The Matrix" é, à boa maneira americana, um filme de citações (ou de "clichés", se se quiser), onde o espectador pode reconhecer em cada passo referências estéticas e narrativas, da ficção científica dos Humanoïdes Associés aos contos infantis e aos jogos de computador (as sequências de luta são puro "Mortal Kombat" e é impossível não pensar no jogo de simulação "SimCity"). No entanto, oferece algo de mais interessante: as histórias de ficção científica só costumam ser verosímeis (quando o são) se aceitarmos as premissas do mundo que nos é proposto - e que podem ser muito difíceis de aceitar -, mas a história de "Matrix", sendo a mais fantástica e fantasmagórica que se possa imaginar, é surpreendentemente verosímil no nosso mundo, para aquilo que sabemos hoje.
Em termos de verosimilhança científica, há porém um problema (que não é menor): a ausência de corpo. Ao contrário do que acontece no filme, não seria possível a um corpo que teve durante anos apenas uma existência puramente cerebral, "acordar" e aprender em dias o que nunca aprendeu, de forma a poder viver num mundo real. É que, se para ver é preciso ter cérebro e olhos, isso não basta: é também preciso uma longa, lenta e sedimentada aprendizagem. Um ratinho nascido e mantido num mundo de riscas verticais não consegue ver linhas horizontais: é cego para o que não aprendeu a ver, ainda que os seus olhos e o seu córtex visual funcionem.
Da mesma maneira, um cérebro que não aprendesse a receber sinais do seu corpo (não se trata apenas dos sinais dos sentidos, mas de toda a "paisagem hormonal" que retrata as emoções, de que fala o neurologista António Damásio) não poderia aprender a funcionar nalguns dias e não poderia ser senão um catálogo de psicoses. Por outras palavras: se é possível imaginar que os humanos vivam na Matriz e estejam mergulhados numa vida imaginária, de forma a poderem continuar a experimentar as emoções sintéticas que lhes permitem manter-se vivos, é mais difícil imaginar que eles possam algum dia sair dessa escravidão.
sábado, março 06, 1999
A centenária aspirina
José Vítor Malheiros
A 6 de Março de 1899, faz hoje 100 anos, a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha. Conta a história que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer, chamado Felix Hoffman, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai. Hoje, as cefaleias que infernizam a vida de cada um, vergam-se ao conhecido comprimido branco. E passado um século, é a vez da super-aspirina, mais amiga do estômago, subir ao palco.
Se fosse uma divindade, Aspirina seria a deusa da Saúde e o seu nome grego seria Panaceia. Uma divindade doméstica, com um sorriso pacificador, umas mãos frescas e mornas como as mãos das mães e para a qual todos os homens se voltariam num momento ou noutro.
A história oficial diz que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer no dia 10 de Agosto de 1897, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai.
O nome do homem era Felix Hoffmann (não confundir com o Albert Hofmann que em 1943 sintetizou o LSD) e a foto que o imortalizou mostra-o empertigado e olhando a câmara a três quartos, como era da praxe, de chapéu de coco, exibindo um sorriso satisfeito consigo mesmo, um brilhozinho nos olhos e uma barba de evocação pasteuriana.
A descoberta do ácido acetilsalicílico não foi feita por acaso, nem foi o resultado de uma intuição genial, nem sequer era surpreendente - como seria adequado para aquela que pode reivindicar sem grande contestação o título de "droga do século". A substância fabricada por Hoffmann, que o químico tinha conseguido estabilizar de forma a poder ser usada como medicamento, era apenas uma variação de outra, o ácido salicílico, que já era usado desde 1875 para aliviar a febre e cujo uso tinha raízes na Antiguidade. De facto, Hipócrates (em 200 a.C.) descreve e receita extractos de casca e folhas de um tipo de salgueiro (Salix alba), que são ricas em salicina - uma substância natural rica em ácido salicílico - para aliviar dores e febre.
A Bayer de início não deu grande importância à descoberta mas Hoffmann continuou a trabalhar na sua droga e, em 1899 a empresa estava suficientemente convencida da validade do medicamento para iniciar a sua comercialização em grande escala. A 6 de Março deste ano a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha.
Os médicos que começam a usar o pó nos seus doentes relatam melhorias espantosas e a droga torna-se famosa de um dia para o outro.No fim do século, em 1900, a droga encarna a invasão da vida quotidiana pela indústria farmacêutica: o pó branco passa a ser vendido sob a forma de comprimidos solúveis em água, acondicionados em práticos tubinhos de vidro. É a primeira droga de uso geral a ser vendida sob a forma de comprimidos e o público adere entusiasticamente. Até aí, a preparação de cada receita exigia uma visita ao boticário - frequentemente duas: uma para deixar a receita e outra, horas depois, para ir buscar o medicamento, preparado na oficina das traseiras da loja - mas a aspirina permite a popularização do uso de medicamentos.
O pré-acondicionamento da droga em comprimidos (o pó branco é "comprimido" em pequenas pastilhas) reduz para metade o custo do medicamento, o que ajuda à sua vulgarização.
O novo século começa com a promessa do fim das dores e a esperança da vitória sobre a doença. Em 1915 a aspirina entra com os dois pés no domínio público e passa a ser um produto de venda livre, impondo as farmácias domésticas como presença obrigatória em todas as casas de banho - "aspirina" passa a ser sinónimo de "comprimido", como "Kodak" é de "máquina fotográfica".
A imagem da aspirina, cuidadosamente desenhada, ajuda à invasão: o comprimido branco, com o seu sabor amargo q.b. e com o nome da Bayer formando uma cruz de cada lado, lembra o escudo de um cruzado em campanha contra a doença.
A generalização e a eficácia da aspirina, aliada aos seus raros efeitos secundários, é reforçada pelo aparecimento dos antibióticos no pós-guerra. A doença, em meados do século, começa a ser vista apenas como um desequilíbrio químico, para cuja cura basta encontrar o comprimido certo, a bala mágica que matará o dragão, a solução química que devolverá a saúde.
A procura de balas mágicas nem sempre é bem sucedida - Richard Nixon, quando quer imitar a promessa de Kennedy de 1961 de pôr um homem na Lua antes do fim da década, promete no início dos anos 70 uma cura do cancro antes do fim da década, com os resultados que se conhece - mas a aspirina continua a acumular sucessos ao longo do século.
Em 1948, descobre-se que a aspirina protege contra ataques cardíacos - ironicamente, nos anos 20 receou-se que a aspirina atacasse o coração e a publicidade empenhava-se em desfazer essa ideia. O uso do medicamento pelos cardíacos demora bastante anos mas acaba por se generalizar. Hoje, dos cinquenta mil milhões de aspirinas vendidas, mais de um terço (37 por cento) é usado na prevenção de ataques cardíacos - as dores de cabeça só aparecem em terceiro lugar (14 por cento), antecedidas da artrite (23 por cento) e seguidos das dores em geral (12 por cento).
A aspirina combate a dor, mas também a inflamação, a febre e melhora a circulação sanguínea - uma vantagem cujo reverso é a razão da principal contra-indicação da droga: o risco de hemorragias. O rol de indicações da aspirina não pára de crescer e ainda continua: da artrite às tromboses, da diabetes à doença de Alzheimer, a aspirina contribui para o tratamento de dezenas e dezenas de doenças.
O seu uso regular poderia salvar ainda 100.000 pessoas por ano, que têm ataques cardíacos mortais mas evitáveis, dizem os estudos, mas a aspirina é vítima do seu próprio êxito: tornou-se demasiado vulgar, é demasiado barata e tem uma imagem demasiado modesta para ser levada a sério por muitos utilizadores. Apesar da história do século XX ser a história da sua conquista do mundo.
A 6 de Março de 1899, faz hoje 100 anos, a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha. Conta a história que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer, chamado Felix Hoffman, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai. Hoje, as cefaleias que infernizam a vida de cada um, vergam-se ao conhecido comprimido branco. E passado um século, é a vez da super-aspirina, mais amiga do estômago, subir ao palco.
Se fosse uma divindade, Aspirina seria a deusa da Saúde e o seu nome grego seria Panaceia. Uma divindade doméstica, com um sorriso pacificador, umas mãos frescas e mornas como as mãos das mães e para a qual todos os homens se voltariam num momento ou noutro.
A história oficial diz que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer no dia 10 de Agosto de 1897, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai.
O nome do homem era Felix Hoffmann (não confundir com o Albert Hofmann que em 1943 sintetizou o LSD) e a foto que o imortalizou mostra-o empertigado e olhando a câmara a três quartos, como era da praxe, de chapéu de coco, exibindo um sorriso satisfeito consigo mesmo, um brilhozinho nos olhos e uma barba de evocação pasteuriana.
A descoberta do ácido acetilsalicílico não foi feita por acaso, nem foi o resultado de uma intuição genial, nem sequer era surpreendente - como seria adequado para aquela que pode reivindicar sem grande contestação o título de "droga do século". A substância fabricada por Hoffmann, que o químico tinha conseguido estabilizar de forma a poder ser usada como medicamento, era apenas uma variação de outra, o ácido salicílico, que já era usado desde 1875 para aliviar a febre e cujo uso tinha raízes na Antiguidade. De facto, Hipócrates (em 200 a.C.) descreve e receita extractos de casca e folhas de um tipo de salgueiro (Salix alba), que são ricas em salicina - uma substância natural rica em ácido salicílico - para aliviar dores e febre.
A Bayer de início não deu grande importância à descoberta mas Hoffmann continuou a trabalhar na sua droga e, em 1899 a empresa estava suficientemente convencida da validade do medicamento para iniciar a sua comercialização em grande escala. A 6 de Março deste ano a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha.
Os médicos que começam a usar o pó nos seus doentes relatam melhorias espantosas e a droga torna-se famosa de um dia para o outro.No fim do século, em 1900, a droga encarna a invasão da vida quotidiana pela indústria farmacêutica: o pó branco passa a ser vendido sob a forma de comprimidos solúveis em água, acondicionados em práticos tubinhos de vidro. É a primeira droga de uso geral a ser vendida sob a forma de comprimidos e o público adere entusiasticamente. Até aí, a preparação de cada receita exigia uma visita ao boticário - frequentemente duas: uma para deixar a receita e outra, horas depois, para ir buscar o medicamento, preparado na oficina das traseiras da loja - mas a aspirina permite a popularização do uso de medicamentos.
O pré-acondicionamento da droga em comprimidos (o pó branco é "comprimido" em pequenas pastilhas) reduz para metade o custo do medicamento, o que ajuda à sua vulgarização.
O novo século começa com a promessa do fim das dores e a esperança da vitória sobre a doença. Em 1915 a aspirina entra com os dois pés no domínio público e passa a ser um produto de venda livre, impondo as farmácias domésticas como presença obrigatória em todas as casas de banho - "aspirina" passa a ser sinónimo de "comprimido", como "Kodak" é de "máquina fotográfica".
A imagem da aspirina, cuidadosamente desenhada, ajuda à invasão: o comprimido branco, com o seu sabor amargo q.b. e com o nome da Bayer formando uma cruz de cada lado, lembra o escudo de um cruzado em campanha contra a doença.
A generalização e a eficácia da aspirina, aliada aos seus raros efeitos secundários, é reforçada pelo aparecimento dos antibióticos no pós-guerra. A doença, em meados do século, começa a ser vista apenas como um desequilíbrio químico, para cuja cura basta encontrar o comprimido certo, a bala mágica que matará o dragão, a solução química que devolverá a saúde.
A procura de balas mágicas nem sempre é bem sucedida - Richard Nixon, quando quer imitar a promessa de Kennedy de 1961 de pôr um homem na Lua antes do fim da década, promete no início dos anos 70 uma cura do cancro antes do fim da década, com os resultados que se conhece - mas a aspirina continua a acumular sucessos ao longo do século.
Em 1948, descobre-se que a aspirina protege contra ataques cardíacos - ironicamente, nos anos 20 receou-se que a aspirina atacasse o coração e a publicidade empenhava-se em desfazer essa ideia. O uso do medicamento pelos cardíacos demora bastante anos mas acaba por se generalizar. Hoje, dos cinquenta mil milhões de aspirinas vendidas, mais de um terço (37 por cento) é usado na prevenção de ataques cardíacos - as dores de cabeça só aparecem em terceiro lugar (14 por cento), antecedidas da artrite (23 por cento) e seguidos das dores em geral (12 por cento).
A aspirina combate a dor, mas também a inflamação, a febre e melhora a circulação sanguínea - uma vantagem cujo reverso é a razão da principal contra-indicação da droga: o risco de hemorragias. O rol de indicações da aspirina não pára de crescer e ainda continua: da artrite às tromboses, da diabetes à doença de Alzheimer, a aspirina contribui para o tratamento de dezenas e dezenas de doenças.
O seu uso regular poderia salvar ainda 100.000 pessoas por ano, que têm ataques cardíacos mortais mas evitáveis, dizem os estudos, mas a aspirina é vítima do seu próprio êxito: tornou-se demasiado vulgar, é demasiado barata e tem uma imagem demasiado modesta para ser levada a sério por muitos utilizadores. Apesar da história do século XX ser a história da sua conquista do mundo.
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