terça-feira, junho 21, 2011

A ameaça da mordaça

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Junho de 2011
Crónica 25/2011

Uma vitória política existe num plano diverso do julgamento ético

1. Os media sentem-se obrigados a alimentar uma besta humana de múltiplas cabeças que dá por nomes tão diversos como “interesse público”, “opinião pública” ou “curiosidade” e que possui os mais diversos apetites. No entanto, por diversos que sejam esses apetites, todas estas cabeças exigem de todos os alimentos mediáticos um ingrediente essencial: a novidade. As notícias também se podem chamar novas, e têm de o ser para o serem.
Entre os efeitos perversos desta lógica conta-se o facto de não ser possível arrastar nos media durante muito tempo o tratamento de um dado tema. Por actual que esse tema continue a ser, por fundamental que seja para as vidas dos cidadãos, o assunto tem de ser abandonado passado umas quantas notícias, a não ser que seja alimentado por novos factos. As pessoas cansam-se e exigem novidade.
Os políticos queixam-se (na maioria das vezes sem razão) de que certas notícias são publicadas para vender papel. Penso que é mais frequente que certos assuntos sejam abandonados para satisfazer a ânsia de novidade do público. Quando não acontece – que é o pior dos casos – que um assunto seja silenciado para se poder continuar a ter publicidade.
Isto tudo serve para dizer que é frequente que um assunto importante deixe de ser tratado nos media apenas porque já foi tratado e se receia o cansaço dos leitores.
Quando esse assunto envolve de alguma forma uma crítica a alguém, existe uma razão suplementar para o abandono do tema: a imprensa não gosta de dar a impressão de que a move uma sanha persecutória contra ninguém.
E, como é evidente, a somar-se a todos os motivos anteriores, pode acontecer que exista uma forte pressão (política, económica, pessoal) para que um assunto incómodo seja abandonado.

2. Um exemplo desse abandono de um assunto relevante foi o tema das finanças pessoais de Cavaco Silva e, em particular, da sua compra de acções da Sociedade Lusa de Negócios (SLN), proprietária do Banco Português de Negócios (BPN), que foi um tema quente da campanha eleitoral para as presidenciais, mas que seria abandonado após a eleição presidencial.

Cavaco Silva sempre usou como resposta às críticas e às dúvidas o argumento de que a sua honestidade era conhecida dos portugueses. E, apesar das informações que publicou nas páginas da Presidência da República – um local discutível, já que o que sempre esteve em causa foram as acções do cidadão Cavaco Silva – nunca esclareceu de forma cabal todas as dúvidas que foram sendo colocadas ao longo de meses pela imprensa e por políticos de diversos quadrantes.

Tal como Fátima Felgueiras e Isaltino Morais, Cavaco Silva acha que uma vitória eleitoral elimina todas as dúvidas sobre negócios que surgem nas campanhas.
De facto, não é assim. Uma vitória política existe num plano diverso do julgamento ético que podemos fazer de um dirigente político e não apaga a necessidade de fornecer aos cidadãos as explicações que estes exigem. Se uma vitória eleitoral devesse calar todas as perguntas, isso significaria que não poderíamos interpelar nenhum político no poder – o que seria absurdo e antidemocrático. De facto, a recusa de Cavaco Silva em dar explicações cabais sobre este caso lança uma sombra sobre o cargo que ocupa, porque permite que continuem a manter-se dúvidas sobre o comportamento da pessoa que o ocupa. (jvmalheiros@gmail.com)

Nota: Incluí no meu texto a frase usada pelo director da revista "Sábado", Miguel Pinheiro, a propósito de Cavaco Silva, após a sua vitória nas eleições presidenciais. Esta frase deu origem a uma participação judicial de Cavaco Silva contra o seu autor por alegado crime de ofensa à honra do chefe do Estado. Considero intolerável essa mordaça que se pretende colocar sobre a liberdade de expressão. Quando não se pode criticar e interpelar o poder, vivemos sob ditadura. Cabe-nos a todos impedir essa indignidade.

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