terça-feira, setembro 28, 2010

Os cidadãos à frente da política

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Setembro de 2010
Crónica 32/2010

A cooperação entre Estado e cidadãos é a atitude que melhor serve os interesses da comunidade
 
O PÚBLICO de ontem dedicava um artigo a uma interessante iniciativa nascida no Reino Unido e que chegou este ano a Portugal pela mão de cinco cidadãos empenhados mas até então fora das lides ambientalistas. O projecto chama-se 10:10 e tem como objectivo reduzir em dez por cento as emissões de CO2 das pessoas ou entidades que a ela aderem. Até agora, apesar da ausência de promoção, já aderiram à iniciativa 700 pessoas e entidades, incluindo empresas e escolas – e é provável que a sua recente visibilidade mediática faça saltar este número para outro patamar.

O facto é interessante porque é mais uma demonstração não das “potencialidades” da acção da sociedade civil, que é uma evidência, mas de como existe nessa sociedade civil uma consciência, uma exigência e uma mobilização que excedem em muito o mais ambicioso dos planos do Estado, dos partidos políticos ou mesmo das organizações cívicas. Todos nós conhecemos inúmeras iniciativas (no ambiente, mas também no domínio da solidariedade social, da educação ou do empreendedorismo) que demonstram que os cidadãos não só querem muito mais do que aquilo que as organizações existentes lhes propõem, como estão disponíveis para participar com o seu esforço pessoal na construção desse mundo que sonham. Nem todos? É verdade. Mas são os suficientes para criar uma dinâmica que pode de facto mudar as coisas, mudar a vida e talvez mudar o mundo. A questão é que, perante esta vanguarda consciente e disponível, por vezes até empenhada, o Estado (a nível central ou local) manifesta em geral uma incompreensível passividade.
Uma das desculpas mais repetidas é que o Estado não possui suficiente flexibilidade para apoiar as iniciativas que lhe passam à frente do nariz, por muito meritórias, eficientes, eficazes, sustentáveis e mobilizadoras que sejam. A justificação é inaceitável. Se o Estado não puder apoiar as coisas mais interessantes de que tem conhecimento está a prescindir das ferramentas mais eficazes ao seu dispor.

É evidente que o Estado não deve tentar substituir-se às iniciativas surgidas na sociedade civil quando elas funcionam. Mas pode e deve apoiá-las, enquadrá-las, estudá-las, dar-lhes visibilidade, emulá-las e multiplicá-las. Hoje em dia, graças à Internet, muitas destas tarefas são possíveis com grande economia. Mas a tecnologia não substitui a vontade.

Para falar apenas do projecto 10:10, é evidente que existe aqui uma coincidência de objectivos (racionalização do consumo de energia) entre estes cidadãos e vários organismos e empresas públicos. Seria interessante que estes tentassem pôr-se ao serviço destes cidadãos empenhados – sem esperar sequer que haja pedidos de apoio. Em geral, em qualquer iniciativa onde se pretenda envolver os cidadãos, o mais caro é a mobilização. É preciso atrair, explicar, convencer, seduzir. Neste caso, tudo isso já está feito. Quem participa já está convencido. O que acontece hoje é que a cidadania, mesmo frágil como é em Portugal, está anos-luz à frente da política.

A relação que o Estado deve manter com estas iniciativas não pode ser a de se demitir, com o pretexto de que já existe uma vivaz iniciativa privada no terreno, como em geral defende a direita (e transparece, por exemplo, no projecto neoliberal de revisão constitucional do PSD), nem a de se substituir ou controlar esses movimentos. A cooperação é a atitude que melhor serve os interesses da comunidade.

Um Estado moderno é aquele que responde às necessidades, às expectativas e às iniciativas dos cidadãos. É um Estado regulador, que garante os direitos, mas é também um Estado facilitador. Governar tem de ser antes de mais um diálogo com os cidadãos, mas não um diálogo diferido no tempo, com respostas ao ritmo do ciclo eleitoral. Nem ao ritmo dos simbólicos “orçamentos participativos” onde os munícipes decidem o destino de meia dúzia de tostões. Há coisas boas a acontecer e seria um desperdício imperdoável ignorá-las ou deixá-las para o ano. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, setembro 22, 2010

É impossível deitar coisas fora

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Setembro de 2010
Crónica 31/2010

Nota: O texto publicado no jornal Público teve de ser cortado por razões de espaço, com o acordo do autor. Esta versão inclui um parágrafo, assinalado a itálico, que não integra a versão impressa.

A Grande Ilha de Lixo tem o tamanho do Texas. Ou talvez o tamanho dos Estados Unidos

Este Verão soube da existência de uma ilha surpreendente no Pacífico. A ilha foi descoberta por um conhecido oceanógrafo californiano, Charles J. Moore, em 1997, quando regressava de uma regata Los Angeles-Havai a bordo do seu catamarã e tem a particularidade de ser uma ilha onde não se pode desembarcar porque é formada de plástico flutuante. O nome oficial é Great Pacific Garbage Patch (ou Grande Extensão de Lixo do Pacífico) mas é mais conhecida pelo nome de “Ilha de Lixo do Pacífico”.

Dizer que a ilha é feita de lixo não é rigoroso. Na realidade é feita de plástico – o outro lixo ou se degrada ou se afunda. E dizer que se trata de uma ilha também é incorrecto porque não se pode dizer exactamente quais são as suas fronteiras. Na realidade é uma imensa extensão onde existe uma imensa quantidade de pedaços de plástico em suspensão, desde pedaços de embalagens de champô, cápsulas de garrafas, pedaços de brinquedos e bocados de redes de pesca até pedaços microscópicos, invisíveis a olho nu. O plástico desfaz-se, em pedacinhos cada vez mais pequenos, mas não se degrada e vai entrando na cadeia alimentar. Nalguns casos, mata imediatamente os animais que os ingerem ou que se enredam neles. Noutros casos mata-os lentamente, obstruindo vias respiratórias, tubos digestivos, acumulando-se no seu estômago e intestinos, intoxicando-os lentamente. As fotografias que se podem encontrar na Web (nomeadamente no site da fundação Algalita Marine Research Foundation, criada por Moore) são elucidativas. É fácil encontrar, por exemplo, fotografias de carcaças de albatrozes onde se distingue no meio das penas e do esqueleto um monte de rolhas de plástico de diversas cores que era o conteúdo do seu estômago. A carne desapareceu, mas os restos das “refeições” das aves mantêm-se, tão atraentes e coloridas como quando o albatroz as engoliu. Mas as coisas não começam no albatroz mas no zooplâncton, que também vai enchendo a barriga com bolinhas de plástico colorido que sobem por aí acima a cadeia alimentar até regressar a nós.

A Grande Ilha de Lixo tem, diz-se, o tamanho do Texas (os americanos acham que tudo o que é grande é como o Texas). Ou talvez mesmo o tamanho dos Estados Unidos. Mas ninguém sabe ao certo. A ilha não se vê do espaço e é difícil decidir onde se começa a medir o “território”. Na região que ocupa não é a só a superfície do mar que está contaminada. É toda a coluna de água, do fundo à superfície, ou pelo menos uma grande parte dela.

A ilha de lixo é o aterro do mundo. É lá que vai parar todo o lixo que não reutilizámos, que não reciclámos, que não apodreceu, que não foi incinerado. Lembra-se do saco de plástico onde lhe meteram o jornal e que voou pela janela do seu carro na semana passada? Da garrafa de água que deixou cair nas rochas naquele dia na praia? Estão aqui. Ou o que resta delas. A envenenar os peixes, os moluscos, as aves, as tartarugas, a paisagem, o planeta. O mar aqui não é canja, é sopa juliana, caldo verde, sopa da pedra, sopa de lixo, uma lixeira aquática.

Lembra-se de quando se deitavam coisas fora? Quando se deitava uma coisa para o lixo e ela desaparecia e pensávamos que a Terra, no seu generoso reprocessamento, a tinha transformado em malmequeres e melros e carapaus e castanheiros? Isso era quando não sabíamos da Grande Ilha de Lixo do Pacífico. Agora sabemos que tudo o que deitámos “fora” está afinal aqui. Aqui dentro. No Pacífico, onde só gostamos de imaginar ilhas de vahines no te tiares e de corais, praias de águas esmeralda e areia dourada. Está aqui tudo. 

Já houve quem tenha pensado em transformar a ilha num território habitável mas o problema é que a ilha não é uma jangada gigante feita de grandes garrafões. O problema é que este lixo está a envenenar todos os mares, todos os animais.

Da próxima vez que usar um saco de plástico ou uma garrafa de água pense na contribuição que está a fazer para a Grande Ilha de Lixo. Agora já sabe que nunca os poderá deitar fora. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, setembro 15, 2010

A morte da compaixão

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Setembro de 2010
Crónica 30/2010

Nota: O texto publicado no jornal Público teve de ser cortado por razões de espaço, com o acordo do autor. Esta versão inclui um parágrafo, assinalado a itálico, que não integra a versão impressa.

Tal como as nossas pernas se cansam se fizermos uma longa caminhada também os nossos sentimentos se esgotam

Lembra-se da emoção que sentiu quando descobriu que os 33 mineiros chilenos que estavam soterrados há 17 dias na mina de San José estavam afinal vivos? Lembra-se da mensagem que escreveram com tinta vermelha e que enviaram para o mundo a dizer que estavam vivos? Da sua incredulidade quando viu as caras deles e viu as primeiras imagens vídeo do refúgio? Lembra-se do aperto no coração e da opressiva falta de ar que sentiu quando se imaginou no lugar deles, enterrados vivos numa galeria escaldante, sabendo que teriam de ficar aí confinados ainda durante meses, sujeitos ao risco de novas derrocadas, sabendo que ninguém lhes poderá valer em caso de acidente ou de doença, sabendo que têm de dominar a angústia e sentindo-se totalmente impotentes para participar no seu salvamento?
E lembra-se de que naquele dia 22 de Agosto já nem sequer se lembrava deles? De que já quase tinha esquecido o acidente e que considerava os anunciados esforços para os resgatar como fúteis? Lembra-se da culpa que sentiu quando se lembrou de que no seu espírito já os tinha abandonado e que eles estavam afinal vivos? De como pensou que se a equipa de resgate tivesse adoptado a mesma atitude que você eles teriam sido condenados a uma morte inimaginavelmente cruel?
Lembra-se de como nos dois primeiros dias leu todos os relatos, viu todos os vídeos no YouTube e as notícias na televisão?

E agora? Há quanto tempo não lê uma notícia sobre os mineiros? E já notou que agora, mesmo quando lê uma notícia sobre estes homens, o seu coração já não se confrange da mesma forma, que é mais difícil identificar-se com eles? Que integrou na sua rotina o drama dos mineiros, que eles se transformaram em mais um elemento do pano de fundo dos seus dias?

Não se preocupe. Somos todos assim. Os especialistas chama a isto “compassion fatigue”, a fadiga da compaixão. Tal como as nossas pernas se cansam se fizermos uma longa caminhada também os nossos sentimentos se esgotam quando os usamos muito. Nem todos, claro, e nem sempre. Mas a fadiga da compaixão é um fenómeno conhecido entre profissionais de saúde e pessoas que cuidam doentes inválidos ou terminais, principalmente quando sabem que não existe possibilidade de recuperação. O ser humano que sofre passa a ser apenas uma chatice. É um mecanismo de defesa, uma forma de burnout, de esgotamento emocional. A nossa compaixão gasta-se. É por isso que somos capazes de participar num peditório para ajudar as vítimas do genocídio do Darfur, do tsunami da Indonésia ou do Katrina nos EUA mas… só uma vez. Depois, a nossa compaixão desaparece, desfaz-se. Pode acordar de novo, mas só com uma história nova, diferente.

Os media conhecem bem este problema – que não se confina apenas à compaixão e se estende ao tratamento insistente de qualquer tema. Neste caso chama-se “media fatigue”. Por importante que seja a coisa, se ouvirmos falar dela constantemente, se os media não largarem o tema, deixamos de conseguir interessar-nos por ela. A informação torna-se ruído de fundo. Claro que isso é tanto mais assim quanto mais as notícias forem constituída de átomos de informação sem interesse, sem contexto e sem sentido, por uma névoa de factóides onde é impossível distinguir efeito e consequência, o fútil do vital. Mas é cada vez mais nesse sentido que os media evoluem, com a Internet a ser usada como justificação para a chuva de factóides, como se as pessoas precisassem de uma chuva de sound bites soltos (não precisam) e como se a Internet não soubesse viver sem eles (sabe).

O caso Casa Pia é um exemplo. Já não podemos ouvir falar daquilo. Já gastámos a compaixão. Pelas vítimas ou pelos acusados. Já não queremos saber. Estamos apenas fartos e contentes por ter acabado e alarmados por talvez ainda não ter acabado. Talvez a história esteja mal contada. Talvez haja um bode expiatório. Talvez os condenados sejam apenas o pico do icebergue. Mas já não queremos saber. A justiça e os media esgotaram-nos. Mataram a nossa compaixão, a nossa solidariedade, o nosso empenho cidadão. Sabemos que não conseguiremos perceber mais do que percebemos hoje se nos empenharmos durante mais tempo. Quando já não há pachorra já não há compaixão.
É por isso que é tão importante a justiça ser célere (sem ter pressa) e clara (sem ser ingénua). Para que o escrutínio dos cidadãos se possa exercer. Quando demora demais, só queremos que acabe. E passar para a história seguinte. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, setembro 07, 2010

França vai pôr fim à igualdade perante a lei?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2010
Crónica 29/2010

Os “criminosos de origem estrangeira” são as maçãs podres que contaminam a sociedade dos ”verdadeiros franceses”
 
Os sindicatos franceses convocaram para hoje em todo o país manifestações de protesto contra as reformas da segurança social propostas pelo presidente Nicolas Sarkozy. A subida da idade de reforma dos 60 para os 62 anos constitui a principal razão da contestação sindical, mas os desfiles de rua irão certamente focar também outras razões de protesto, como as suspeitas de financiamento ilegal da campanha presidencial de Sarkozy em 2007, as suspeitas de favorecimento fiscal da multi-milionária Liliane Bettencourt e de tráfico de influências envolvendo o ministro Eric Woerth e o escândalo do tratamento policial discriminatório dado aos ciganos – dos quais cerca de mil já foram expulsos para a Roménia e Bulgária nos últimos três meses.

As expulsões de ciganos têm sido o pico do icebergue da “política de segurança” de Sarkozy, que prometeu erradicar de França os “elementos criminosos de origem estrangeira”. Estes “criminosos de origem estrangeira” são, de acordo com o discurso sarkozista, as maçãs podres que contaminam um tecido social francês de gema que é ordeiro e amante da paz.

Apesar da atenção que as expulsões de ciganos têm merecido – devido, em grande parte, às imagens pungentes captadas quando do desmantelamento de acampamentos de ciganos e da sua deportação – existe outra medida anunciada, na mesma linha, que se revela ainda mais preocupante, não apenas devido às suas intenções, mas devido à fraca contestação que a oposição lhe tem dedicado.

Trata-se da alteração (i)legal que Sarkozy preconiza, no sentido de retirar a nacionalidade francesa aos franceses naturalizados que cometam crimes graves – nomeadamente contra elementos das forças da ordem. A medida, a ser aprovada, criará duas classes de cidadãos, definindo penas diferentes pelo mesmo crime para cidadãos “franceses de gema” e para “neo-franceses”, reinstaurando um sistema penal de base étnica de triste memória.

É irrelevante que o Sarkozy-filho-de-emigrantes acredite ou não nas patranhas da particular inclinação para o crime dos “ciganos de origem romena e búlgara” – ao longo do Verão foi preciso afinar o tiro e especificar etnias com cuidados de bordadeira, quando se descobriu que a esmagadora maioria dos chamados ciganos nómadas eram afinal… franceses. O que é relevante é que a estigmatização étnica seja possível no século XXI e se traduza em votos. O que Sarkozy pretende não é evidentemente aumentar a segurança mas apenas garantir a sua reeleição em 2012 e conta com as tiradas e medidas xenófobas para recuperar uma popularidade que atingiu níveis mínimos desde a eleição.

As redes criminosas que existam no meio dos ciganos não são mais perigosas que a actividade dos banqueiros e não é por isso que se deportam os banqueiros – mas estes, como é sabido, são ricos.

Não está aqui em causa se existem redes de crime organizado entre os ciganos e se o nomadismo pode facilitar o seu encobrimento – há provas de que elas existem e a esquerda francesa faz mal em tentar recusar o óbvio. O que está em causa é o estabelecimento da equação cigano=criminoso e estrangeiro=criminoso que o presidente e o Governo francês têm feito tudo para afirmar, alimentando os mais baixos sentimentos de uma classe média e baixa em perda de poder de compra e risco de desemprego. (Veja-se o apoio popular às declarações racistas do banqueiro Thilo Sarrazin na Alemanha.)

Hoje as ruas das cidades de França vão certamente encher-se de slogans anti-Sarkozy e os manifestantes vão congratular-se na sua solidariedade humanista com os emigrantes. Mas dentro de casa ficará uma camada considerável de pessoas, talvez crescente, para quem Sarkozy fala, que está pronta a aceitar leis diferentes para cidadãos conforme a sua origem geográfica ou a sua cor da sua pele, e que o estarão tanto mais quanto mais a situação social se degradar. Algo que teríamos considerado impensável em 1945. (jvmalheiros@gmail.com)