terça-feira, outubro 06, 2009

O que faremos com este Presidente?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Outubro de 2009
Crónica x/2009

O discurso de Cavaco não faz sentido em termos de lógica formal, em termos retóricos ou em termos políticos
Na terça-feira passada passei a integrar as fileiras, em termos políticos, de uma imensa maioria.
Essa maioria é constituída pelos portugueses que ficaram estarrecidos depois de ouvir a declaração do Presidente do República sobre a questão das escutas. Estarrecidos não porque o Presidente tenha feito quaisquer revelações bombásticas (que não fez), não porque o Presidente tenha deixado “muitas coisas por esclarecer”, como disseram com inexcedível benevolência vários analistas, mas simplesmente porque o discurso do Presidente não fazia qualquer sentido.
Não estou a dizer que discordo do ponto de vista, da análise, da intenção, da estratégia, do estilo ou do timing do Presidente ou de qualquer outra coisa. O que digo é mais simples: seja qual for a análise que se faça da situação política do momento, da intenção do Presidente ou da sua estratégia, o discurso não fazia sentido. O texto não fazia sentido em termos de lógica formal, em termos retóricos ou em termos políticos – e está na Internet para quem o queira comprovar.
Se se tivesse tratado de uma declaração de improviso à saída de casa, a incoerência e a incongruência seriam aceitáveis – poderiam desiludir-nos, porque todos gostaríamos de ter um Presidente com o pensamento organizado e um discurso articulado, mas seriam compreensíveis.
Num discurso anunciado repetidamente com dramatismo, que abordava uma questão que parecia tão momentosa como o “Watergate”, ansiosamente esperado, que não pode deixar de ter sido escrito com enorme cuidado e analisado com o maior rigor, o facto é não só inaceitável como bizarro.
Um discurso presidencial não costuma ser fruto de um esforço individual e a explicação seria fácil se o Presidente se tivesse rodeado em Belém de um staff escolhido entre as pessoas menos dotadas do país (tanto em termos de retórica como de puro raciocínio, como de análise política), mas esse não parece ser o caso. A explicação restante é que o texto foi de facto discutido com os seus assessores, mas estes não tiveram coragem de lhe dizer que o discurso não fazia sentido, que não se pode dizer a mesma coisa e o seu contrário, etc.
Todos os Presidentes e todos os políticos têm momentos infelizes e deslizes patéticos. É mais raro que planeiem cuidadosamente um momento totalmente patético (o adjectivo, usado por Ana Gomes, é rigoroso).
O discurso de Cavaco Silva levanta questões de grande relevância política para além das que têm sido abordadas. Pessoalmente, é-me indiferente se o Presidente e o primeiro- ministro se sentem mais ou menos constrangidos nos seus encontros semanais e se está ou não em causa uma “cooperação institucional” que nunca existiu.
O que é mais importante é que Cavaco Silva, antes das eleições, estava obviamente encantado consigo mesmo e antecipava com deleite a resposta que tinha preparado para dar a Sócrates (repare-se no seu sorriso nas televisões, quando repete que não falará, com ar de quem garante que o primeiro-ministro não espera pela demora).
Como é possível que o Presidente, garante do normal funcionamento das instituições democráticas e chefe supremo das Forças Armadas, manifeste um tão grande desfasamento com a realidade? Como é possível que alguém a quem se pede que consiga mediar e solucionar os problemas mais graves de relacionamento institucional que se revelem no país faça uma intervenção tão trapalhona, tão tonta e tão contente consigo como o Presidente fez na semana passada? Cavaco Silva parece bafejado pelos deuses: conseguiu criar uma imagem de rigor por ser hirto, uma imagem de seriedade política por não ter sentido de humor e uma imagem de prudência por se exprimir com o laconismo de um jogador de futebol. Mas de que maneira poderá capitalizar o facto, que agora se tornou ululantemente óbvio, de que não possui um mínimo de bom senso? E quanto tempo, em nome do sectarismo político, vão os seus apoiantes levar a admiti-lo? (jvmalheiros@gmail.com)

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