terça-feira, maio 05, 2009

Da utilidade de chamar nomes feios

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Maio de 2009
Crónica 14/2009


A tradição manda que se baptize uma doença com o nome da região onde foi descoberta ou com o nome do descobridor

Sempre houve pessoas a indignar-se com os nomes que se dão às coisas novas. E entre nós, em particular, a indignar-se quando esses nomes que se dão são estrangeiros. Lembro-me de quando se começou a falar de marketing em Portugal e de como havia pessoas que ficavam apoplécticas perante o barbarismo. Então não havia palavras portuguesíssimas que podiam ser utilizadas em substituição? Palavras como "comercialização" ou "publicidade" ou "vendas" ou lá o que era que aquilo era? E quando alguém referia que o problema era que se tratava de um conceito novo, que nenhuma palavra existente em português traduzia em toda a sua riqueza, havia sempre alguém a sugerir que então inventássemos também uma expressão nova portuguesa para essa coisa nova, como "comercializarização" ou "técnicas de vendas Mendes".

Aí era preciso explicar (com tacto) que aquela coisa que eles chamavam "marketing" não tinha sido inventada em Portugal nem tinha sido inventada pelo Mendes, mas sim por uns senhores na América que lhe tinham chamado como muito bem tinham querido e que... eles estavam no seu direito.

A contestação lusitana continuou nos anos seguintes a ser alimentada por vagas de palavras inglesas na música, na cultura popular, na tecnologia e na gestão e conheceu vários clímaxes, tendo um dos mais vivos sido causado pelo software e ao hardware, só recentemente digeridos através de naturalização.

De cada vez que isso acontecia era preciso explicar que, se os portugueses queriam dar nomes portugueses às coisas, o melhor era começar a inventá-las ou pelo menos a disseminá-las no mundo, pois essa era a regra do jogo. E a melhor prova era o facto de os italianos terem espalhado pelo planeta os seus adagios e staccati além dos seus tutti-frutti, os franceses as suas cartes blanches, os seus pliés relevés e os seus soufflés, os alemães o seu Gestalt e a sua Angst, os suecos o seu (inglesado) ombudsman e os portugueses terem deixado na língua inglesa o cuspidor em 1735 (o inglesíssimo spittoon só aparece em 1823, certamente num arroubo de nacionalismo, inverso ao que, em Portugal, faria Rafael Bordalo Pinheiro colocar John Bull no fundo dos mesmos escarradores e penicos por alturas do Ultimato).

Mas a questão é que o baptismo de uma coisa nova é um direito do seu criador ou descobridor - e um direito que serve de assunção da responsabilidade, para o bem e para o mal, o que significa que também podemos falar aqui de um dever.

A gripe que assusta o mundo começou por se chamar "suína" mas a designação - imprópria a partir do momento em que ela se torna humana - seria sempre abandonada por pressão dos criadores de porcos, preocupados (com toneladas de razão) com a sua imagem. A tradição manda que se baptize a gripe (ou outras novas doenças) com o nome da região onde primeiro foram descobertas ou com o nome do seu descobridor ou investigador. No segundo caso (Alzheimer) trata-se de uma honra, ainda que algo dúbia. No segundo, de uma distinção odiada (alguém quer dar um mergulho no rio Ebola?). Não tendo grande sentido falar de descoberta de um novo subtipo de um vírus da gripe, seguiu-se a regra geográfica e chamou-se-lhe "gripe mexicana". Mas os mexicanos não gostaram, conseguiram reunir suficientes vozes politicamente correctas e finalmente a OMS propôs a designação A H1N1 - depois de se ter brevemente considerado a "gripe norte-americana". A questão é que a designação geográfica, com o seu labéu, serve uma finalidade: como ninguém quer ter uma doença horrível baptizada com o nome do seu país, pode ser que isso constitua um incentivo para a prevenção. É que existem medidas de prevenção, nomeadamente no que diz respeito às explorações pecuárias (porcos e aves) - ainda que não sejam cem por cento eficazes para prevenir uma epidemia. Ou será que a responsabilidade dos países e das instituições só é importante quando se trata de colher louros? Jornalista (jvm@publico.pt)

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