terça-feira, fevereiro 14, 2006

O sagrado e o profano

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Fevereiro de 2006
Crónica 7/2006

A riqueza das democracias liberais provém do seu pluralismo de valores. É da essência da nossa democracia que não tenhamos valores sagrados

Na polémica sobre os cartoons dinamarqueses, a liberdade de expressão e o respeito devido aos símbolos religiosos, há duas posições que merecem comentário.

1. Uma dessas posições é a daqueles que consideram a liberdade de expressão como um “princípio sagrado” das democracias, que nada pode pôr em causa. A expressão foi usada pelo presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, na sua primeira declaração pública sobre a questão dos cartoons de Maomé.
“Sagrado” inclui-se bem na retórica dos regimes teocráticos que reagiram com mais violência à publicação dos cartoons, mas não é o adjectivo adequado para qualificar um valor central das democracias ocidentais.

É possível que Durão Barroso tenha querido contrapor um “valor sagrado” das democracias liberais ao “valor sagrado” da imagem de Maomé, para criar um paralelismo de duvidoso efeito, ou para mostrar de que forma levamos a peito esta questão, mas a expressão está longe de ser a mais pedagógica.

É inerente à expressão “sagrado” uma ideia de veneração e de perenidade que não se coaduna com os valores das democracias liberais. A diferença é particularmente importante num confronto ideológico com islamistas, para quem todos os verdadeiros valores relevam do sagrado.

De facto, se a liberdade de expressão fosse para nós um “valor sagrado”, isso significaria que, em caso de conflito, todos os outros valores lhe deveriam ser sacrificados. Como o filósofo Isaiah Berlin afirmava, o regime que aceitasse um tal “valor sagrado” (esse ou outro) engendraria uma monstruosidade do mesmo tipo da que engendraram todos os regimes que acreditaram que o caminho da salvação se encontrava num único valor indisputável. A riqueza das democracias liberais provém, precisamente, do seu pluralismo de valores, valores não só diversos mas muitas vezes contraditórios, sempre em confronto, e que em cada momento vamos articulando, através do debate e da negociação, aos objectivos da sociedade.

É da essência da nossa democracia que não tenhamos valores sagrados – o que não significa não levar a sério os nossos valores. Pelo contrário.

2. O outro ponto, nos antípodas, tem a ver com os comentários feitos sobre as limitações legais já existentes à liberdade de expressão na Europa e em Portugal (em particular no nosso Código Penal) e que têm sido utilizadas para advogar um regime de “maior responsabilidade” por parte dos criadores se não de verdadeira censura. O argumento na raiz destas posições é do género: “Se já há tantas limitações à liberdade de expressão na nossa lei, qual é o problema de acrescentar mais umas quantas se isso evita irritar os islamistas?”

Quem pensa assim (Freitas do Amaral parece incluir-se neste grupo) apresenta precisamente o carácter relativo dos valores das democracias para advogar a cedência em toda a linha aos integristas, relativizando a importância da liberdade de expressão. Mas há uma diferença: é que os valores que as democracias liberais tentam equilibrar são todos eles valores que a sociedade considera consensualmente nobres e bons. O confronto e a cedência entre valores de que fala Berlin não inclui a ideia de que valores essenciais da democracia sejam abandonados sempre que eles desagradem a um grupo terrorista.

3. Um dos efeitos menores do caso dos cartoons dinamarqueses foi a descoberta das limitações à liberdade de expressão em Portugal, consignadas no Código Penal de 1995, muitas das quais parecem abusivas. Será que todos os partidos estão de acordo com aquelas limitações? O assunto mereceria, por si, alguma discussão.

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