terça-feira, março 14, 2006

Arca de Noé

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Março de 2006
Crónica 11/2006

A ideia de que só nos resta esperar pela pandemia é profundamente irresponsável

No filme "Deep Impact", um enorme cometa encontra-se em rota de colisão com a Terra. Depois de falhar uma tentativa para o destruir, os Estados Unidos decidem construir enormes cavernas onde um milhão de pessoas vai tentar sobreviver ao impacto. O milhão de americanos a quem cabe salvar a Humanidade da extinção é formado por 200.000 cientistas, médicos e outros VIP e 800.000 cidadãos tirados a sorte.
Na semana passada, num gesto que não podia deixar de suscitar o paralelismo, a Direcção-Geral da Saúde anunciou o seu plano de tratamento preventivo de 100.000 portugueses contra a gripe das aves, informando que, na impossibilidade de fornecer o tratamento preventivo a toda a população, se tinha decidido garantir o tratamento dos portugueses essenciais para "manter o tecido social a funcionar" na perspectiva, provável, de uma pandemia de gripe.

Imagina-se que as intenções da DGS e do Ministério da Saúde terão sido as melhores mas, se o que pretendiam era acalmar os portugueses demonstrando que o país está preparado para a pandemia, não atingiram o objectivo.

Não pode haver nada mais alarmante do que ouvir o anúncio desta Arca de Noé (mais generosa proporcionalmente que a de "Deep Impact", note-se) e ouvir os responsáveis de Saúde preparar-se para a pandemia que pode chegar, sem os ouvirmos preparar a população para aquilo que podem e devem fazer agora, quando a gripe das aves é ainda uma gripe das aves, e sem ouvir o que estão a fazer para monitorizar e controlar (na medida do possível) aquilo que é ainda controlável.

Num texto publicado há dias no diário "International Herald Tribune", a especialista de doenças emergentes Laurie Garrett alertava: "Mais do que esperar que uma vaga de H5N1 varra todas as aves do mundo, sofra mutações e se transforme numa vaga que cubra a Humanidade, devemos criar linhas de defesa que comecem nas aves selvagens, que se estendam às aves de criação e que apostem no desenvolvimento de técnicas rápidas de avaliação dos seres humanos, para determinar quem está e quem não está infectado com o vírus". As palavras de Garrett, uma perita do Council on Foreign Relations, são de uma sensatez à prova de bala, mas os responsáveis sanitários portugueses (e de outros países) decidiram aceitar a ideia de que já não há nada mais a fazer a não ser esperar a epidemia, numa posição que pode agradar aos fabricantes de medicamentos mas esquece medidas do domínio da saúde pública. Há dias, criticou-se nesta coluna a posição das autoridades sanitárias, que se comparavam a avestruzes de cabeça na areia. Parece que as mesmas entidades decidiram provar a incorrecção da imagem decidindo agir como galinhas sem cabeça.

Tentando ser claro: não se põe em questão a necessidade de prever tratamentos preventivos e de os escalonar de acordo com as disponibilidades de medicamentos e as necessidades sociais – no limite nem estão em causa os 100.000 – o que está em causa é a ideia transmitida à população de que, agora, só nos resta esperar pela epidemia e rezar para que a nossa família esteja entre o 2,5 milhões que tomarão o Tamiflu (que ninguém sabe que eficácia terá). Essa ideia é profundamente irresponsável.

Agora ainda é a altura de alertar a população para as formas de contágio dos seres humanos pelas aves (o que ainda não se fez), ainda é altura de tentar evitar por todos os meios o contágio de aves domésticas e de porcos (o que ainda não se fez), ainda é altura de mobilizar a população para monitorizar as aves selvagens infectadas de forma a localizar o perigo (Garrett sugere mobilizar bird-watchers e ornitologistas). Mas isto tudo deve ser feito antes da pandemia. Mais vale prevenir.

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