terça-feira, fevereiro 10, 2004

Desempregado

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Fevereiro de 2004
Crónica 6/2004


O homem, de meia-idade por aquilo que era possível apurar, era simplesmente mais um desempregado, vítima de um dos muitos despedimentos colectivos dos últimos meses.

Já estamos todos habituados a ver na televisão os testemunhos de entrevistados incógnitos, desde terroristas com estandarte ao fundo até delinquentes juvenis, passando por criminosos em fuga ou a cumprir pena, crianças abusadas e mulheres batidas e acabando em toxicómanos dos mais diversos tipos, vítimas de desordens alimentares, doentes com doenças inconfessáveis ou detentores de preferências sexuais peculiares.

Há diferentes razões para proteger a identidade destas testemunhas. Nalguns casos trata-se de condições impostas pelos entrevistados para evitar a captura, perseguição ou outras represálias; noutros casos a iniciativa até parte dos media e pretende proteger o bom nome e a vida privada das testemunhas; noutros simplesmente evitar transformá-las em alvo da curiosidade doentia dos vizinhos. Da mesma forma, há diferentes técnicas para o fazer, desde as imagens em contraluz em cenário doméstico (muito usadas para mulheres vítimas de maus tratos), aos quadradinhos sobre o rosto (traficantes de armas de países de Leste), às imagens escurecidas e desfocadas com voz filtrada (que o caso Casa Pia tornou comum), à filmagem de costas (testemunha de assalto que não quer ser identificada) e às imagens em contrapicado das solas das botas ou dos sapatos de salto alto (elementos de grupos neonazis e prostitutas, respectivamente).

Há dias, porém, um dos noticiários da RTP mostrava uma destas entrevistas, com imagem desfocada, de um homem não identificado que não pertencia a nenhum daqueles grupos. O homem, de meia-idade por aquilo que era possível apurar, era simplesmente mais um desempregado, vítima de um dos muitos despedimentos colectivos dos últimos meses, causado pelo encerramento de mais uma empresa, e falava da sua vida, sem trabalho, sem salário, sem dinheiro, sem perspectivas de os conseguir e com uma família para sustentar. Não havia nenhuma razão para supor uma perseguição, uma represália ou uma condenação social a não ser a sua condição de desempregado. E nenhuma razão para imaginar o pedido de anonimato senão um particular sentimento de desonra por essa condição, tanto mais que antes e depois outros despedidos da mesma empresa prestavam declarações perante as câmaras.

Que o desemprego é uma tragédia social todos o dizem — a começar pelos economistas que, apesar disso, o desejam (já que se trata de um efeito secundário da flexibilidade, que é "uma coisa boa", que permite "reorganizar a força de trabalho"). Mas que é uma tragédia pessoal e familiar poucos o sabem de facto. Que ele seja uma tal fonte de sofrimento moral é algo que estas imagens puderam tornar evidente. Para aquele homem, o seu desemprego — resultado não de uma culpa pessoal mas do encerramento de uma empresa na qual ele era apenas uma peça — era não apenas uma fonte de problemas quotidianos bem concretos mas uma vergonha insuportável, que o tornava incapaz de mostrar a cara. De quem quereria esconder este homem a sua nova condição de desempregado? Não dos colegas desempregados como ele. Dos vizinhos? Dos amigos? Da família? Que perspectiva de vida podemos imaginar para um homem como este, impedido de trabalhar, provavelmente para sempre, e que descobre que, estranhamente, com o trabalho perdeu também a sua razão de ser e identidade, o orgulho e a dignidade?

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