por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 1 Março 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 16
“Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por uma questão de status”
Jack Sim, fundador da World Toilet Organisation (Singapura)
Jack Sim costuma aparecer nas fotos dos jornais como aparece nesta página: a fazer palhaçadas numa casa de banho, sentado na sanita, enrolado em papel higiénico. Tem 52 anos, nasceu e vive em Singapura, é convidado permanente do Fórum Económico Mundial de Davos, foi escolhido pela revista Time como um dos “Heróis do Ambiente” de 2008 e tornou-se conhecido mundialmente como… Toiletman. Um nome que não o envergonha de todo (nem à sua família, garante) porque todos sabem que está a ser posto ao serviço de uma causa particularmente nobre.
Sim é um militante do direito a ter uma casa de banho e fundou em 2001 a World Toilet Organization (a sigla, WTO, é a mesma da Organização Mundial do Comércio), hoje com 171 organizações associadas em 56 países e com inúmeras actividades: reuniões mundiais anuais, projectos de saneamento e de formação realizados em parceria com outras organizações, etc..
Porquê esta causa? Porque a dada altura da sua vida, aos 40, quando a sua actividade de construtor e promotor imobiliário lhe permitiu atingir um nível de conforto suficiente, achou que devia dedicar a segunda metade da sua vida a ajudar os outros. E, com 2600 milhões de pessoas no mundo sem acesso a uma casa de banho decente e com dezenas de doenças mortais causadas pela contaminação de fontes e poços por matéria fecal, Sim achou que havia aqui uma batalha importante a travar. E, o que era mais importante, uma batalha que ninguém queria travar – devido ao tabu que envolve tudo o que diz respeito aos excrementos humanos e à defecação, que torna difícil falar da questão, quanto mais dar-lhe visibilidade.
Sim considera que hoje, oito anos depois da criação da World Toilet Organization, a primeira aposta está ganha.
“O primeiro passo era quebrar o tabu e acho que conseguimos fazer isso. Pusemos os media do mundo inteiro a falar de casas de banho [Sim diz sempre “toilets”], da falta de casas de banho, de como a sua falta afecta o dia-a-dia e a saúde das pessoas”, explicou-me, numa longa conversa telefónica com oito fusos horários de diferença. “E com a visibilidade nos media a questão ganhou importância social e legitimidade. Há pessoas que ainda começam por rir quando se fala de como é importante todas as pessoas poderem ir à retrete com conforto e higiene – mas até é bom rirem, porque isso é o primeiro passo para quebrar o tabu – mas agora sabem que o assunto é sério, que tem de ser discutido e que precisamos de resolver o problema”.
O humor é importante na abordagem de Sim, mas apenas porque ele lhe permite dessensibilizar o interlocutor ou as audiências e passar ao passo seguinte, que é falar cruamente do que quer falar, com as expressões directas que melhor servem o fim. Para convencer uma assembleia da necessidade de investir em latrinas ecológicas Sim enuncia não só os riscos de contaminação e doenças como explica claramente que, sem retretes adequadas, o que acontece é que as pessoas “andam a comer a merda uns dos outros”. É literalmente verdade. A quantidade involuntariamente ingerida chega a 10 gramas por dia – com a sua carga de microrganismos patogénicos.
Outro dos ovos de Colombo de Jack Sim é a sua estratégia de financiamento, as suas ideias sobre como arranjar dinheiro para proporcionar aos 2600 milhões de pessoas sem WC as condições sanitárias a que têm direito.
A sua ideia é… deixar o mercado funcionar.
Se pertence – como eu – ao grupo dos que não deposita grandes esperanças na capacidade do mercado como meio de reduzir as desigualdades sociais, vale a pena ouvir a argumentação de Sim antes de a pôr de lado.
“Antes de mais, temos de perceber que não se pode resolver este problema com base na generosidade dos mais ricos, com donativos”, explica Sim com a segurança de quem explorou o terreno e conhece os obstáculos mas pensa ter encontrado a solução. “As campanhas de angariação de fundos para construir WC para as pessoas mais pobres conseguem sempre resultados mínimos”. Quanto é que a WTO já conseguiu através das suas acções de recolha de donativos e da página “Donate” do seu site? Tão pouco que prefere nem dizer um número. “É praticamente negligenciável”.
Só que, na sua opinião, isso não se deve sequer a uma falta de solidariedade, mas sim ao facto de que, para os mais ricos, as retretes dos pobres não parecem ser uma necessidade de primeira ordem, quando se comparam com a fome ou a falta de água, por exemplo, e não suscitam o mesmo sentimento de urgência em termos de solidariedade. E o mesmo acontece com os grandes programas de ajuda internacional. “A água e o saneamento básico aparecem sempre como uma única rubrica e o que acontece é que o fornecimento de água limpa acaba por absorver todos os recursos”, diz Sim. “A água é vista como indispensável, as sanitas como opcionais. Não sobra quase nada para as casas de banho, apesar de a diarreia causada pela falta de retretes matar mais de dois milhões de pessoas por ano. Se formos a estas regiões onde não há saneamento vemos sempre famílias com muitos filhos. Porquê? Porque muitos vão morrer e os pais tentam ter muitos filhos de forma que fiquem alguns para os ajudar na velhice. E uma das coisas que os está a matar é a falta de WC”.
Qual é a solução então? Como se põe o mercado a resolver o problema destas pessoas que às vezes nem têm dinheiro para comer?
A voz sobe de tom: “É que os pobres não são todos iguais. Nestes 2600 milhões há pessoas miseráveis, que morrem de fome, mas também há pessoas que trabalham e que têm um rendimento mínimo mas têm alguma coisa. Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por um questão de status, que tem sido reforçado pelas campanhas das empresas de telecomunicações. Depois de terem vendido o segundo telemóvel às pessoas com mais dinheiro, elas voltaram-se para os mais pobres e encontraram um mercado aí. Há um enorme potencial de mercado porque há muita gente no fundo da pirâmide”.
Sim defende a realização de programas de saneamento e de formação a nível nacional e internacional, com sinergias entre vários tipos de actores, a nível global – e está pessoalmente envolvido em muitos desses projectos -, mas acha que nada disso poderá funcionar sem fazer as casas de banho subirem na lista de prioridades dos pobres, transformando-as em símbolos de status social. E, com latrinas ecologica e sanitariamente adequadas com preços a partir dos dez dólares, Sim não vê razão para não conseguir atingir o objectivo.
Sim sabe do que fala quando menciona as ambições dos pobres. Nasceu numa família muito pobre (“Na altura toda a gente era muito pobre em Singapura”), o mais novo de três irmãos e depois da tropa obrigatória não foi para a Universidade porque não era muito bom nos estudos. Mas a vida profissional correu-lhe bem. Hoje, casado e com quatro filhos - duas raparigas (Faith e Earth) e dois rapazes (Truth e Worth), cujos nomes insiste em me dizer - regressou à Universidade para estudar Administração Pública.
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