por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Março de 2009
Crónica 10/2009
Considerar que o provedor de Justiça deve ser sempre uma emanação do Bloco Central é antidemocrático
O que começa por ser estranho no desgraçado folhetim da escolha do novo provedor de Justiça é que, desde Julho de 2008, não tenha havido uma única iniciativa do Parlamento para discutir a questão e que o PS e o PSD tenham tentado cozinhar entre si o novo nome com o acordo tácito do presidente da Assembleia da República, a quem compete coordenar os trabalhos da AR (o que inclui todos os deputados) e presidir à Conferência de Líderes Parlamentares (o que inclui todos os líderes).
Sabemos que é costume ser assim e que no Parlamento poucos acham isto estranho. Mas para alguém que está de fora, parece bizarro. Ainda que bastem os votos dos dois maiores partidos para a eleição, parece normal (democrático? cortês? sensato?) que a questão, de interesse nacional e cuja decisão é da responsabilidade do Parlamento (todo), seja discutida alguma vez pelo Parlamento (todo), ou pelo menos pelos líderes dos grupos parlamentares (todos), em vez de ser levada à discussão das outras forças partidárias apenas no plenário, quando a decisão já foi tomada e todas as sugestões e discussões são supérfluas.
É uma atitude prudente que a discussão seja alargada, já que, como se viu, existe mais do que uma maioria de dois terços possível. O mais básico raciocínio táctico conclui facilmente que não convém excluir ninguém à partida porque... se pode vir a precisar dos votos deles.
Mesmo que não fossem precisos, porém, seria um imperativo democrático alargar a discussão a todo o Parlamento.
Não o fazer significa que se está implicitamente a considerar que o provedor de Justiça deve ser sempre uma emanação do Bloco Central - uma posição que é antidemocrática, que fere o conceito do provedor de Justiça como parte do sistema de checks and balances e um pecado original que ameaça até a imagem e idoneidade da figura que ocupa o lugar - por muito que os homens (são sempre homens, não sei se mais uma regra não escrita) que o ocuparam até aqui tenham conseguido fugir, pelo seu prestígio pessoal, a esse risco.
Permitir que o Bloco Central cozinhe o nome do provedor em reuniões privadas é desprestigiante para o cargo e, ao impor uma limitação do universo de escolha, faz supor que o nome poderá ser o melhor do Bloco Central, mas não é forçosamente o melhor que o Parlamento poderia encontrar. O método constitui, por isso, um empobrecimento da democracia e do Estado.
É também surpreendente - e representativo da triste qualidade da nossa democracia - que não tenha havido disponibilidade ou interesse, em 34 anos de existência do cargo, para definir uma metodologia de escolha de candidatos capaz de evitar a actual disputa infantil "ele-tem-que-dizer-primeiro-o-que-é-que-pensa-do-meu-candidato-antes-de-eu dizer-o-que-é-que-eu-penso-do-candidato-dele" versus "o-meu-candidato-é-tão-bom-que-nem-preciso-de-ver-o-teu".
Paulo Portas teve o mérito de tentar dar alguma dignidade ao método de escolha e de, discretamente, explicar ao presidente da AR que lhe cabe a ele resolver a questão. Quererá Jaime Gama perceber?
Quando o porta-voz do PS, Vitalino Canas, diz que o que é preciso não é uma "metodologia" mas sim "bom senso", enuncia um oxímoro que não engana ninguém. Qualquer pessoa de bom senso vê que, nestes casos, é imperativo definir uma metodologia - se se pretende algo mais do que um pretexto para uma zaragata. Que o PS prefira deixar estes processos num flou artistique compreende-se, pois essa é a situação que lhe dá maior liberdade, que lhe permite defender hoje uma abordagem e na próxima legislatura outra. Quanto ao PSD, preocupado apenas em mostrar que existe, também não tem interesse em resolver a questão de forma civilizada.
PS e PSD comportam-se como dois meninos malcriados que vêm fazer queixinhas um do outro. O pai Jaime Gama não consegue dizer mais do que "então meninos, então...". O avô Cavaco, à distância, abana a cabeça. E assim vamos andando no Jardim da Celeste, a caminho das férias da Páscoa. Jornalista (jvm@publico.pt)
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