por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Março de 2009
Crónica 9/2009
A esquerda não se sente interpelada pelos velhos clichés usados pela direita para a descrever. A esquerda já não está aí
Já ouviu dizer que as pessoas de esquerda sentem a sua identidade profundamente abalada pela queda do Muro de Berlim e pela dissolução da URSS, fenómeno que até hoje não conseguiram digerir e que lhes terá causado um generalizado e paralisante sentimento de orfandade e frustração? Ou que a ideologia de esquerda consiste em esperar que o Estado resolva todos os seus problemas? Ou que a esquerda, quando defende o apoio do Estado à cultura, à saúde ou à educação, na realidade o que pretende é disseminar uma cultura de desresponsabilização dos cidadãos? Ou, se defende o empenhamento do Estado no combate à pobreza, pretende generalizar uma cultura de subsidiodependência? Ou que, quando defende a regulação dos mercados financeiros, na realidade o que pretende é destruir o mercado?
Quando ouço generalizações deste tipo, pergunto-me de quem estarão a falar. É evidente que estas caricaturas podem representar alguns grupos - há capitalistas que fumam charuto -, mas pensarão de facto estes comentadores que estas imagens de Épinal representam a esquerda plural que existe na sociedade?
Mas o que é igualmente surpreendente é como, perante este tipo de proposições, lugar-comum de textos de opinião e blogues de direita, não há actualmente ninguém à esquerda que responda. E muito menos existe um lugar-comum de resposta.
Ao nível partidário há razões que se podem considerar institucionais para essa ausência de resposta. O PCP não responde porque se coloca fora de qualquer discussão ideológica e, em particular, fora de qualquer discussão com a direita. Para os comunistas, os problemas ideológicos já foram todos resolvidos e, se alguém tem dúvidas ou hesitações, isso deve-se apenas ao facto de não ter ainda acabado a lista de leituras recomendadas. O PS não responde porque só recentemente se relembrou de que era de esquerda e, até há poucos dias, nem sequer saberia se estava interessado em defender essa estranha ideia que não sabe bem o que é. O Bloco de Esquerda não responde por alguma arrogância intelectual e também devido a uma pluralidade que, se tem resquícios do sectarismo dos grupos que lhe deram origem, quer hoje equilibrar interna e externamente com diplomacia.
Mas há também razões de fundo (e boas razões) para esta ausência de resposta: ela deve-se, antes de mais, à pluralidade da esquerda e a um muito menor dogmatismo do que aquele que existia há 30 anos. Talvez se deva também, em parte, à orfandade do "socialismo real" sentida por algumas minorias na esquerda. Mas deve-se muito mais a uma procura de soluções que é hoje evidente, a um debate que está em curso e aos múltiplos caminhos abertos que emergem nessas discussões (a nível nacional como internacional). Se há inúmeros porta-vozes que não hesitam em falar em nome do "mercado" e do statu quo político, não há quem fale em nome da esquerda. O dogmatismo nas soluções políticas, hoje, está muito mais do lado da direita e essa é uma sua fragilidade evidente. Pode dizer-se que a esquerda não responde porque não tem respostas - mas procura-as. E não se sente minimamente interpelada pelos velhos clichés usados pela direita para a descrever. A esquerda já não está aí.
É verdade que a esquerda está hoje, como sempre esteve, preocupada com a questão da igualdade e da justiça social. É verdade que à esquerda se sente uma insatisfação crescente com uma situação que a informação global nos mostra cada vez mais claramente como insustentável e indigna e que se sente hoje uma responsabilidade social planetária que, apesar de não estar corporizada, não é menos forte por essa razão. Mas à esquerda, de uma forma geral, não repugnam nem os instrumentos estatais nem os privados ou sociais para reduzir desigualdades e promover o bem-estar. A direita ainda não percebeu isso e fala ainda de uma esquerda estereotípica que não existe ou que existe cada vez menos e pode acabar a falar sozinha. Jornalista (jvm@publico.pt)
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