domingo, março 15, 2009

Página de Rosto - Ela Bhatt e as mulheres sem-patrão

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 
15 Março 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 15



"Se os pobres são os mais necessitados, como se pode defender que não sejam eles os principais destinatários dos melhores recursos da comunidade?"
Ela Bhatt, fundadora da SEWA-Self Employed Women's Association (Índia)



Se fosse preciso uma prova de que, apesar da globalização, ainda continuamos a ignorar quase tudo do que se passa noutras culturas, bastaria mencionar a história de Ela Bhatt.

Em metade do planeta, esta advogada indiana de 75 anos é uma figura que já conquistou o seu lugar na história. Bhatt é uma referência da luta contra a pobreza e pela promoção das mulheres e um exemplo de empenhamento cívico, de solidariedade, rigor ético e tenacidade política. Uma celebridade que suscita o respeito de líderes mundiais e a veneração de milhões de simples cidadãos. Na outra metade do mundo, ela é conhecida apenas de escassas elites interessadas no seu trabalho.

E, no entanto, ela move-se.

Ela Bhatt fundou em 1971, em Ahmedabad, no estado de Gujarat (ou Guzerate), na Índia, aquele que seria o primeiro sindicato no mundo de mulheres que trabalham por conta própria.

Não se tratava – e não se trata – de empresárias, mas das mais pobres dos pobres, das mulheres pertencentes às castas consideradas mais baixas e que faziam – e fazem – os trabalhos mais indiferenciados, mais duros, mais mal pagos e mais precários: trabalhadoras agrícolas pagas ao dia e apenas com ocupação sazonal, mulheres que vendem legumes à beira da estrada, que têm uma cabra cujo leite vendem de porta em porta, que apanham papel nos caixotes para vender, costureiras ou tecelãs que trabalham em casa, raparigas que enrolam cigarros à mão ou fabricam pauzinhos de incenso, que empurram carroças com todo o tipo de produtos, trabalhadoras sem emprego fixo, sem garantias, sem qualquer tipo de protecção social, pagas abaixo de todas as tabelas e que, para mais, as próprias estatísticas de trabalho oficiais tratavam como inexistentes e a polícia via como marginais.

O sindicato que Bhatt fundou, o SEWA – Self Employed Women’s Association – possui hoje cerca de um milhão de membros, e é dos mais notáveis exemplos no mundo de empowerment dos destituídos e de promoção das mulheres.

Nada na vida de Ela Bhatt e tudo na vida de Ela Bhatt faziam adivinhar que ela acabaria por ter um percurso como este. Nada, porque Bhatt nasceu no seio de uma família da classe média alta, filha e neta de advogados (o pai foi juiz) e porque na Índia o sistema de castas define barreiras de difícil cruzamento. Ela própria estudou direito e começou a sua carreira como advogada, na senda familiar. Tudo, porque a sua família possuía uma tradição de viva consciência social e envolvimento político, nomeadamente na luta pela independência, e o trabalho em prol dos mais pobres sempre fez parte da sua formação. O seu avô materno, médico, foi um dos seguidores de Gandhi, participou na Marcha do Sal e foi preso três vezes por actos de resistência passiva – aquilo que na Índia se chama satyagraha, ou “insistência na verdade” – e a mãe de Ela foi uma activa militante e dirigente feminista.

Gandhi (também originário de Gujarat, também advogado) foi, desde sempre, a sua referência na acção política e no comportamento individual e o discurso de Ela Bhatt está recheado de vívidas referências ao Mahatma. “No conceito de desenvolvimento de Gandhi, o ser humano ocupa o centro”, diz. “A única coisa importante são os valores humanos. Tanto na vida pessoal como pública, na política, na economia, na vida da nação, da sociedade, ao nível global – os valores humanos são centrais e inegociáveis. Esses valores são a verdade, a paz e a não-violência”.

O discurso pode parecer apenas piedoso mas a prática que estes princípios alimentam nunca ficou pelas intenções. E basta ler um discurso de Ela Bhatt para sentir o fogo da tranquila convicção que anima os seus gestos.

O seu primeiro emprego como advogada foi na Textile Labor Association (TLA) – o histórico sindicato dos operários têxteis, criado em 1920 por Gandhi, o primeiro no país. Em 1971 vai fazer um curso de três meses a Israel, no Instituto Afro-Asiático de Trabalho e Cooperativas de Telavive e regressa com a decisão de fundar uma cooperativa de mulheres que trabalham por conta própria. “Se os trabalhadores independentes [self-employed] não estiverem no centro do movimento laboral, o movimento laboral não tem sentido”, explica numa entrevista dada ao Centre for Education and Documentation de Mombaça. “E como as mulheres ocupam aqui um lugar de destaque, devem ser elas a liderar”.

A importância dada às mulheres também deve algo a Gandhi – que as considerava as líderes naturais no combate pela justiça social, um combate cujas armas deviam ser o amor e a paz, a não-violência.

Mas porquê a importância dada a estes trabalhadores? Porque foram e são eles que, historicamente, são a base da economia, são eles que permitem a sobrevivência da sociedade. E sobretudo as mulheres que, com o seu trabalho “informal” e “paralelo”, permitem às famílias mais pobres sobreviver. Ela Bhatt sempre sentiu como a maior das injustiças que estas mulheres, que não conheciam um minuto de descanso, que mantinham os seus pequenos negócios ao mesmo tempo que tratavam dos filhos, que viviam muitas vezes na rua, não fossem sequer reconhecidas como trabalhadores, não possuíssem quaisquer direitos nem quaisquer protecções, fossem invisíveis para a economia e para a lei. Daí o “self-employment”. “Quis dar-lhes um nome com uma conotação positiva e que o mundo moderno pudesse compreender”, explica.

A primeira dificuldade foi registar o sindicato. A inscrição começou por ser recusada porque estas mulheres não tinham patrões. A quem iriam elas fazer reivindicações? Contra quem se iriam revoltar? Ela Bhatt teve de convencer os serviços oficiais, com argumentos jurídicos, que era possível criar um sindicato para ser “a favor” de alguma coisa e não apenas “contra”. A favor da dignidade, dos direitos, da segurança, da auto-confiança, da formação, da entre-ajuda. E que havia, mesmo sem patrões regulares, coisas a combater: regulamentos discriminatórios, práticas comerciais abusivas, pobreza endémica, práticas de prestamismo que escravizavam famílias ao longo de gerações, falta de saúde, de habitação, de tudo.

Estas mulheres estavam – e estão – longe de ser uma minoria. Hoje (dados do SEWA) o trabalho “não organizado” representa 93 por cento da força total de trabalho na Índia. E 94 por cento das mulheres que trabalha, está aqui – nesta zona desprotegida.

O SEWA começou por organizar as mulheres – todas as mulheres, de todas as castas, de todas as religiões, de todas as tribos –, informá-las dos seus direitos, defendê-las dos abusos da polícia e dos seus contratadores e a sua acção foi crescendo. Acção legal, organizativa, reivindicativa – muitas vezes com sit-ins pacíficos, à maneira de Gandhi. O SEWA criou um banco, em 1974, para fornecer pequenos empréstimos, graças a uma contribuição inicial de 4000 mulheres (dez rupias de cada uma), criou inúmeras cooperativas, lançou-se na formação profissional e na construção social, criou creches, serviços de saúde, seguros, um sistema de pensões, quase um estado dentro do estado com o seu milhão de membros, mas um estado particular, onde os recursos partilhados continuam a ser escassos, de pobres e para pobres. Os seus fins essenciais são os mesmos de sempre, o mínimo da dignidade humana: pleno emprego e auto-suficiência, para pôr fim à pobreza. Com uma acção sempre regida pela transparência, pela igualdade, pela democracia e pela harmonia comunitária, sem nunca recorrer à violência. E sempre, sempre tentando alterar o balanço de poder em favor dos pobres e das mulheres.

Bhatt, que tem sido objecto de inúmeras homenagens – falta-lhe um merecido Nobel da Paz - já deixou a direcção da SEWA, mas continua a acompanhar a organização com os seus conselhos e a colaborar em diversas iniciativas internacionais de combate à pobreza.

“Não pode haver nenhuma desculpa para não pôr fim à pobreza”, diz Bhatt, com a sua habitual simplicidade, numa entrevista ao site americano In Motion Magazine. “As nossas prioridades têm de mudar. A distribuição de recursos tem de mudar. As políticas têm de mudar. A primeira prioridade tem de ser a erradicação da pobreza e a segunda manter a diversidade da nossa sociedade. Os pobres têm de receber os melhores recursos públicos disponíveis”.

Afinal, como Bhatt gosta de repetir, se os pobres são os mais necessitados, como se pode admitir que não tenham prioridade na distribuição dos recursos da comunidade?

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