por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Março de 2010
Suplemento P2 (número especial dedicado aos 20 anos do Público)
A Web tem vinte anos. Nestes vinte anos, não houve quase nenhuma actividade humana que não tenha sido tocada por ela e, em muitos casos, revolucionada por ela. A sociedade que emergiu desta revolução tecnológica é radicalmente diferente da que existia há vinte anos. Mas a sociedade que a Internet parece desenhar para o futuro é uma sociedade centrada no controlo e onde as liberdades individuais podem vir a ocupar um papel secundário.
Em cada minuto que passa, há vinte horas de vídeo que são colocadas nos servidores do YouTube. Mil e duzentos minutos de vídeo em cada minuto. Se quiséssemos reunir uma equipa capaz de visionar o material que lá fosse colocado de hoje em diante, teríamos de contratar mais de 5.000 pessoas. E a equipa teria de ir crescendo.
E, em cada dia que passa, mais de mil milhões de vídeos do YouTube são descarregados e vistos por utilizadores em todo o mundo. Vídeos que vão desde uma interpretação da 6ª Sinfonia de Tchaikovsky pela Filarmónica de Berlim a um clip de um jovem sul-coreano no seu quarto a arrancar da guitarra eléctrica o cânone de Pachelbel. Ou um vídeo do cozinheiro britânico Jamie Oliver a explicar as maneiras de cozinhar arroz. Ou um documentário sobre as eleições birmanesas deste ano, filmado por activistas que combatem o regime.
O YouTube só existe há cinco anos, mas transformou-se num ponto de encontro mundial, de todas as línguas, de todas as imagens, um desses sítios indispensáveis onde vamos ver notícias, ouvir música, aprender receitas, investigar novas ideias, conhecer pessoas, estudar história, divertirmo-nos... E é apenas um dos milhões de sites que existem no mundo.
Há vinte anos, quando o PÚBLICO dava os primeiros passos em Lisboa e no Porto, a Web também dava os seus primeiros passos em Genebra, no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), pela mão do engenheiro britânico Timothy Berners-Lee. A certidão de nascimento da Web tem a data de Dezembro de 1990, mas quando os fundadores do PÚBLICO faziam as suas primeiras reuniões, na primavera de 1989, já Berners-Lee e o seu amigo belga Robert Cailliau congeminavam as primeiras versões do que viria a ser a WWW.
Como era antes?
Nada mudou tanto os vinte anos que se seguiram como esta coisa, que permitiu que toda a gente que tivesse um computador ligado a uma linha telefónica folheasse a informação armazenada em milhões de bases de dados e contactasse centenas de milhões de pessoas no mundo. E tudo com mais facilidade do que quando programávamos os nossos gravadores de vídeo para gravar um programa na televisão nos anos 90.
A Web não fez uma revolução. Fez muitas revoluções. E não há muitos paralelos na história em termos de impacto – podemos pô-la a par do computador, da televisão, do telefone e do automóvel, para ficarmos pela era industrial.
Consegue identificar uma área que não se tenha tornado irreconhecível nos últimos vinte anos devido à Web? Lembra-se como eram os jornais ou as televisões antes da Web? Como é que os estudantes faziam os seus trabalhos? Como é que se faziam negócios? Como é que se procurava informação? Como é que se organizavam as férias, se compravam livros, se fazia política, se sabia o que se passava no mundo, se contactavam os amigos, se organizava um movimento de cidadãos, se fazia a guerra, se aprendia línguas, se fazia medicina, se dava aulas?... Muitos negócios desapareceram e outros vivem ainda o trauma da reestruturação. Paralelamente, negócios que ninguém tinha sequer imaginado em 1990 explodiram – com uma empresa de pesquisas gratuitas na Web a içar-se para os píncaros da valorização bolsista, com uma empresa de leilões online como a Ebay a facturar 8500 milhões de dólares no ano passado, com a economia a crescer com base em empresas que fornecem serviços grátis, seguindo modelos que provocariam um enfarte a qualquer economista há vinte anos.
Sempre no ciberespaço
Hoje qualquer adolecescente encontra penfriends nos países que quiser, segundo os critérios de gosto que preferir, e qualquer pessoa pode envolver-se num videochat com interlocutores escolhidos aleatoriamente de todo o mundo.
Lembra-se do romance Neuromante de William Gibson, de 1984? Lembra-se daquela coisa chamada “ciberespaço” que ninguém percebia muito bem o que era porque as pessoas estavam lá mas não estavam mesmo lá? Hoje vivemos aí. E os nossos filhos vivem ainda mais aí.
Estou no ciberespaço enquanto escrevo este artigo e vou enviá-lo para o jornal pelo ciberespaço e você vai lê-lo provavelmente no ciberespaço e é aí que vai ficar arquivado. A Web é a grande biblioteca sonhada de Borges, a grande Babel, mas é muito mais, é o sítio onde conversamos, onde trocamos fotografias dos nossos filhos, onde fazemos negócio e nos divertimos. E o número de pessoas que sente que não está verdadeiramente viva quando não está ligada tem crescido. (Você nunca sentiu isso?) Um dia este ciberespaço será o nosso principal interlocutor – não o meio da comunicação, nem a mensagem, mas o interlocutor, uma identidade difusa muito parecida com Deus ou com o Diabo – e contar-nos-á as coisas interessantes que estão a acontecer, far-nos-á sugestões, talvez críticas às nossas escolhas (“Porque é que vais comprar esse livro? Já sabes que não o vais ler!”).
Quem fiscaliza os electrões?
Por agora deixámos de precisar de ter as enciclopédias em casa porque elas estão na Web, deixámos de precisar de comprar jornais porque eles estão na Web, deixámos de precisar de ir a todas as aulas porque elas também estão na Web, deixámos de fazer imensas reuniões porque podemos fazê-las na Web e deixámos de comprar DVD de filmes e CD de música e de ver televisão e de comprar livros porque eles também estão na Web. E agora vamos deixar de comprar software (lembra-se de comprar software?) porque ele está na Web e compra-se e usa-se de outra forma. E um dia o computador estará ele próprio na Web e só precisaremos de um ecrã táctil (ao mesmo tempo unidade de input e de output) que será a parede da minha sala, a manga da minha camisa, a palma da minha mão. Para quê ter um fio a ligar o meu teclado ao meu CPU quando posso ter ar wireless a ligar a parede da minha sala ao ciberespaço, quando o ar é todo ele ciberespaço?
Quando contarmos aos nossos netos que dantes se comprava (por um fortuna!) um Word que se instalava no nosso computador para podermos escrever, eles vão olhar-nos como se lhes contássemos que no nosso tempo cada pessoa tinha em casa um tear mecânico para fazer todas as manhãs a camisa que vestia antes de sair à rua.
Como será regulado este mundo? Como será esta economia onde tudo é comunicação, fluidez, instantaneidade, onde as fronteiras entre todas as entidades e as pessoas se esbatem, onde cada um de nós não viverá uma fracção de segundo sem transação tecnológica e económica? Teremos facturas? Quem fiscalizará o ar e os electrões e os fotões? Se o mundo de antes da Web já se tornou arcaico, o mundo de hoje já nos parece arcaico hoje mesmo, habituados como estamos a olhar a paisagem pelas janelas da frente do cockpit.
As coisas que falam
A actual complexidade da Web seria considerada ingerível há uma dúzia de anos e no entanto ela move-se. Mas estamos só no início e no início era o Verbo. Agora, este mundo de palavras, de documentos, de imagens, de trocas ainda sentimentais e eminentemente entre humanos, começa a ser invadido pelo tsunami dos dados das coisas. A Internet das Coisas é “the next big thing”. O que é a Internet das Coisas? Um mundo onde todas as coisas falam com todas as coisas. Onde cada objecto está dotado do seu dispositivo identificador, é capaz de dizer qual é o seu eu e a sua circuntância, a sua história, a sua localização, de identificar os seus vizinhos, de dizer de onde vem e para onde vai.
Pesadelo? Sim, mas não é um sonho. O seu carro tem uma coisa destas no pára-brisas para atravessar as portagens sem parar e vai ter outro na matrícula para isso e talvez muito mais. E as lojas têm coisas destas nos seus produtos para evitar que você as roube, que fazem soar um alarme quando ultrapassam a porta. Todos os fabricantes de seja o que for usam estes dispositivos, chamados RFID, identificadores de radio-frequência, e os que não os usam querem usá-los. São óptimos para a gestão de stocks, para aumentar a eficácia do trânsito de produtos. Um contentor carregado de peças de roupa passa ao pé de um detector e aparece num monitor o tipo, modelo, número, cor, padrão e dimensão de cada artigo que lá está dentro. Há um fabricante de roupa interior que tem RFID em todos os produtos, o que lhe permite dizer, quando você entra numa loja: “Então, está a gostar dessas boxers verdes que traz vestidos e que comprou em Abril do ano passado na nossa loja de Vila Nova de Gaia?”
Um dia, os seus boxers verdes poderão aceder à Internet sem lhe dizer e o fabricante saberá por onde eles andam. Não é só o seu carro que vai dizer onde está, nem só o seu telemóvel: são também as suas cuecas, os seus óculos e as suas chaves. Invasão da privacidade? “Claro que não”, clamam os fabricantes (das coisas e dos RFID), “eu só quero saber onde andam as cuecas que eu vendi, não o dono delas”.
Sensores em tudo
Os fabricantes de aviões e de automóveis usam cada vez mais destes RFID. O objectivo é que cada uma das peças de cada avião tenha um – até porque estes identificadores podem incluir também sensores de pressão, de temperatura, de outras coisas. O A350 XWB da Airbus que deve entrar ao serviço em 2013 tem mais de 5000 peças com RFID, que podem ir contando a sua história aos computadores de bordo durante o voo. Óptimo para a segurança.
A maldição é precisamente a segurança, a produtividade, a eficiência. Queremos saber em que rua e em que sentido e a que velocidade se está a deslocar cada carro para melhor gerir o trânsito. Queremos saber a que distância está cada carro do carro do lado, da frente, de trás para melhor evitar os acidentes. Queremos saber onde estão os nossos filhos e com quem para reduzir o risco de agressões, de fugas, raptos. Queremos saber quem comprou o quê e quando para podermos planear de forma mais racional os ritmos de produção. Queremos saber quem acende quantas luzes a que hora para poder adequar a oferta à procura, para reduzir emissões de CO2, para evitar desperdícios. Queremos pôr sensores em tudo quanto mexe para podermos monitorizar o mundo, para saber o que acontece em tempo real. Tudo boas razões. E a tecnologia hoje (ou amanhã) permite isso. O ciberespaço será o sítio onde todos estes dados se encontram e a rede será o único computador capaz de digerir estas vagas de dados e de extrair daqui informação com algum sentido.
Perda de privacidade
Para colher os benefícios da sociedade em rede é necessário participar, o empowerment do cidadão passa pela sua participação na rede, mas essa mesma participação implica uma redução do seu direito à privacidade, como faz notar há muito o sociólogo espanhol Manuel Castells.
A maior parte dos utilizadores não tem a sensação de perder algo por permitir que os seus dados sejam vistos por outrem, mas mesmo aqueles que têm consciência disso aceitam o trade off. Quando a rede se torna a realidade, não estar na rede é não existir. E se for preciso tornar transparente a nossa vida privada para estar na rede... é um preço que se tem de pagar. Afinal não temos nada a esconder, pois não? E, de qualquer forma, todos o fazem, por isso estamos protegidos: por um lado, passamos despercebidos no meio da multidão; por outro lado, estes fluxos de informação são simétricos, nós também podemos saber coisas sobre os outros.
Na realidade... não é assim. Há quem possa aceder a muitos dados e tenha meios para os processar mas a esmagadora maioria das pessoas não tem. A Autoridade Europeia para a Protecção de Dados está preocupada com os RFID, a Comissão de Protecção de Dados Pessoais portuguesa também, mas estas preocupações não provocam mais do que um soluço na avalanche. Os ganhos potenciais de eficiência são demasiado grandes para se poderem perder.
A tecnologia da eficiência
Quem se está a preocupar com estas questões dos direitos, da liberdade individual? A resposta curta: ninguém.
A tecnologia voa em êxtase consigo própria e o social arrasta-se atrás, gaguejando coisas que ninguém percebe, o chato da família.
Os especialistas juram que em todos os programas de desenvolvimento tecnológico relacionados com a Internet - europeus, asiáticos ou americanos -, há uma imensa preocupação com o “impacto social” das tecnologias.
Mas basta raspar com a unha para perceber que aquilo que é chamado “social” se refere quase sempre à economia e nunca ou quase nunca ao cidadão, ao indivíduo, a nós, às pessoas enquanto pessoas – não enquanto contribuintes, consumidores, clientes. “Desenvolvimento social” e “benefício social” são sempre expressões de código para “criação de emprego” ou “novos modelos de negócio”, produtividade, objectivos tecnocráticos.
Em quase todos os discursos sobre os novos produtos, os novos serviços, os novos projectos, ninguém se esquece de citar a necessidade de “respeitar a vida privada dos cidadãos”, porque é evidente que ela está em risco, mas a formulação é reveladora. O espaço privado, o indivíduo enquanto tal, aparece como algo que se tenta proteger do alcance da tecnologia, pela negativa: a tecnologia estará em todo o lado e terá o poder de fazer tudo menos “isto” e “aquilo”. O racional é que a tecnologia serve para produzir eficiência (mas não liberdade) e, por isso, a única forma de defender a liberdade é criar zonas de menor intensidade tecnológica, espaços de protecção da vida privada. Mas não seria possível desenvolver as tecnologias para servir as liberdades?
Conhecimento para quê?
Quem vai controlar esta massa de dados que se acumula? O ciberespaço já sabe muito sobre nós e amanhã vai saber tudo, com quase toda a gente a permitir a recolha dos seus dados pessoais sem estados de alma. Mas nem todos saberão ler essa informação. Uns sim, outros não. Há enormes desigualdades na distribuição deste saber.
Quem decidirá o que é lícito fazer com essa informação e o que não é? Quem conseguirá saber que informação existe e onde está? Apenas alguns. Paradoxalmente, nesta sociedade onde todos aceitam que “saber é poder”, a Web facilitou a difusão do saber, mas não melhorou a distribuição do poder.
Há uns anos, ainda podíamos sonhar que a sociedade do conhecimento seria um mundo de criadores, de pessoas sábias, onde todos teriam possibilidade de desenvolver as suas capacidades e gostos intelectuais, um mundo de bem-estar e ócio criativo, de disponibilidade universal dos frutos da mente, um mundo de cultura e de inteligência. E de liberdade, claro.
O futuro mundo das coisas inteligentes, onde a saúde será inteligente, as casas serão inteligentes, as ruas e os carros também, sem esquecer o supermercado e a escola e o emprego, é um mundo de controlo. Controlo no sentido técnico do termo, mas que rapidamente pode deslizar para o sentido político. Pensávamos que a Sociedade do Conhecimento era aquela em que teríamos a possibilidade de saber tudo sobre o mundo. Afinal, parece mais provável que ela vá ser a sociedade em que o mundo sabe tudo sobre nós.
E uma sociedade onde a liberdade faz cada vez menos parte da equação. Apenas a eficiência impera. Cabe-nos fazer com que a liberdade, com as suas indefinições, a sua aleatoriedade, a sua imprevisibilidade, a sua confusão e a sua insegurança, volte a conquistar o seu direito de cidade. (jvmalheiros@gmail.com)
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