quarta-feira, março 10, 2010

Chuva

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Março de 2010
Crónica 10/2010

O vulto que eles acabam de encharcar semi-distraidamente pertence à categoria dos sub-humanos: um peão

São só umas centenas de metros, um quilómetro no máximo, talvez um pouco mais. Uns trezentos metros pela Alameda da Universidade, depois é só atravessar o Campo Grande e seguir em frente pela Avenida do Brasil. A chuva não dá mostras de querer parar, não há autocarros nem Metro neste trajecto e não vale a pena sonhar que vai passar um taxi livre. As alternativas são esperar num portal por uma aberta que pode não vir nunca ou meter-me à chuva, o que não me assusta muito, protegido como estou com o meu impermeável, uns sapatos de inverno com provas dadas e o meu guarda-chuva. E não chove tanto como isso. Chove, mas não é uma tempestade. É uma chuva que ainda não parou verdadeiramente desde a manhã mas não é um dilúvio. E para que serve um impermeável e um guarda-chuva se não para andar à chuva?

Pelo sim, pelo não vou deitando o olho aos carros que descem a alameda não vá aparecer o taxi improvável. A rua está coberta de água e as sarjetas fazem aquela coisa lisboeta que é golfar água suja aos borbotões em vez de a engolir, como deviam.

Passa um carro, numa velocidade excessiva, que me lança para as pernas o manto de água que cobria o pavimento e me encharca até aos joelhos. Antes que tenha tempo de me afastar do lancil e fugir a novo ataque passa outro carro e outro, seguindo o mesmo rasto e com a mesma determinação, que acabam de me encharcar. As imprecações não me servem de alívio. Estou molhado até ao tutano e os sapatos não chegaram para me proteger os pés.

Pode parecer difícil imaginar o espírito da pessoa que está ao volante e que nem consegui ver, através da chuva e dos vidros molhados e embaciados, mas não é. Para estes motoristas apressados, ao seco, dentro dos seus carros, o vulto que avança pelo passeio e que eles acabam de encharcar semi-distraidamente pertence à categoria dos sub-humanos: um peão.

É claro que poderiam ter reduzido a minha molha se reduzissem a velocidade, mas a Câmara é que deve zelar pelo estado das vias, garantir que os esgotos não se entopem, que as ruas não se inundam, que estes charcos e estas poças e estes lagos não se formam. Como a Câmara não faz isso, não se pode evitar molhar os peões e se não se pode evitar molhar os peões... não vale a pena tentar. E se tentássemos mesmo não os molhar tínhamos de andar a passo de caracol. Já bem chega o atraso com que vou chegar por causa da chuva. E eles já sabem: quem anda à chuva, molha-se. Já que estão molhados, coitados, ficam um bocado mais molhados. Eles aliás não se importam tanto como nós porque esta gente é muito resistente. Se se importassem não andavam a pé, não era? Andavam de carro, não era? E se não tivessem carro iam logo a correr comprar um carro.

Na paragem de autocarro a meio do Campo Grande estão meia dúzia de pessoas, tão molhadas como eu e pela mesma causa: a água da rua, não a do céu. Os carros passam em contínuo e molham-nos em contínuo.

Metade dos carros reduz a velocidade, para que o leque de água só salpique os pés dos peões. Mas muitos percebem que não vale a pena ter grandes cuidados porque afinal eles até já estão molhados e passam à vontade. É verdade que há uns olhares furibundos e gritos de protesto quando passa um carro mais petulante, mas como ninguém pega numa pedra da calçada para lhes rebentar com o vidro traseiro não há azar. E o anonimato protege os audazes, com esta chuva e os vidros molhados. Se lhes víssemos a cara talvez se inibissem um pouco, mas tudo o que há lá dentro é uma coisa disforme, sem olhar.

Carrinhos utilitários ou de alta cilindrada comprazem-se no mesmo desporto displicente, comungando dessa cumplicidade de classe que une os que não precisam de passar uma hora à chuva numa paragem de autocarro com os pés molhados, os sacos das compras molhados, o guarda-chuva molhado encostado ao corpo, os miúdos desesperados de cansaço e frio, as mochilas molhadas, a alma enxovalhada e a cabeça a sonhar com uma pedra da calçada. Não há nada mais triste que estar à chuva numa paragem de autocarro a ser regado pelos carros que passam, indiferentes. Não há nada de Gene Kelly num dia de chuva em Lisboa. (jvmalheiros@gmail.com)

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