por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Outubro de 2006
Crónica 38/2006
Os mais compassivos passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro.
Quando chove, a rua é um lago. Não é um lago, é um rio. O lago é ao fundo da rua, no cruzamento. É preciso dar uma volta pela rua de cima, ou entrar na água resolutamente quase até ao joelho. Quem tem botas altas de borracha às vezes consegue passar, se não fizer ondas, devagar, e se conseguir não sair de cima do passeio submerso. Mas se vier a passar um autocarro nesse momento...
A rua de cima não está inundada, mas como é inclinada a água escorre rápida pelo passeio num manto que chega às meias e aos pés. Ao menos a água do passeio parece limpa. Na valeta corre um rio acastanhado. Apesar da água e dos carros há quem prefira ir pelo meio da faixa de rodagem, onde a água já empurra pedras, folhas e cascalho. É menos escorregadia que o passeio de pedras polidas.
A paragem de autocarro tem um telhado pequeno que serve para fazer sombra nos dias de sol, mas nos dias de chuva é inútil. É difícil dizer se se está mais protegido da chuva debaixo do abrigo ou cá fora. Lá dentro há os pingos grossos que escorrem dos guarda-chuvas, os casacos molhados dos outros, a chuva que entra numa cortina por entre os vidros e, quando nos distraímos, o algeroz do abrigo, que despeja água como um garrafão. Cá fora há umas árvores que deixam passar a chuva mas pelo menos não têm goteiras. O problema são os carros que passam. Há os que passam depressa, atirando uma toalha de água suja e pesada que chega à altura da cintura, e os mais compassivos, que passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro. Não há alternativa. Não se pode pedir aos carros que andem a passo de enterro só para não molhar os peões. Há quem desça o guarda-chuva para os pés quando passa um carro, mas acontece como à proverbial manta: quando tapa os pés descobre a cabeça.
O mais difícil são as crianças. É difícil ter uma criança ao colo num dia de chuva? E uma ao colo e outra pela mão? Com as mochilas? E um guarda-chuva na mão? Na paragem do autocarro? Com os carros que passam a regar os pés e o ocasional fio de água a entrar pelo pescoço? E ao fim do dia, quando a criança ao colo dorme, a outra se arrasta, e às mochilas se soma o saco das compras? A grande dúvida nestes casos é o que se deve fazer com o guarda-chuva.
Dentro do autocarro o ar está pesado de humidade e os assentos são escassos. Os guarda-chuvas molhados escorrem para dentro dos sapatos, os sacos molhados têm de ficar em cima dos joelhos, as crianças empilham-se sobre as mochilas e as lancheiras. Um casaco de malha cai no chão enlameado. Tem de ir para lavar, com este tempo. O ar desolado e cansado de todos faz lembrar as fotos de refugiados. Até o ar de resignação de alguns. Aqui, pelo menos, não chove. As crianças desenham nas janelas embaciadas.
Lá fora as sarjetas fazem o contrário do que deviam fazer: lançam água aos borbotões para a rua. Os carros passam pelo autocarro mas já não atiram água para os pés dos que lá estão. Quem está sentado à janela do autocarro pode ver o interior dos carros, lá em baixo. O interior dos carros parece seco e arrumado.
O sonho de todos os que estão no autocarro é um carro. Um carro onde as crianças possam ir no banco de trás, as mochilas amontoadas no banco da frente, os guarda-chuvas molhados no chão, ao lado dos sacos das compras. Um carro onde passem horas no trânsito, ao abrigo da chuva, atrás dos limpa pára-brisas, e onde os únicos momentos difíceis seja a trasfega das crianças da escola para o carro e do carro para casa. É verdade que não dá para sair de casa mais tarde, mas é outro conforto. Assim basta chover para que o dia se transforme num inferno. O cansaço e as crianças e as mochilas ficam mais pesados com a chuva. Vamos lá ver se não entrou água em casa. Só faltava acabar o dia de esfregona em punho. Ontem diziam na televisão que se deve andar de transportes públicos. Devia ser um desses que vai ali num carro.
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