por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Outubro de 2006
Crónica 35/2006
O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender.
Entre as muitas razões para ter começado a fumar, na minha adolescência (além da pressão dos pares e da vontade de adquirir a aparência madura que não tinha), está sem dúvida a escrita. A minha escrita e a dos outros – ou seja, a minha leitura. Escrever foi durante muitos anos uma actividade indissociável do cigarro, e a reflexão e a discussão algo indissociável do fumo.
A associação do cigarro à escrita deve-se a muitos livros e a muitos nomes, mas entre eles os de Camus e Sartre estão em lugar de destaque. Não consigo evocar uma imagem deles sem um cigarro na mão (existem fotografias, eu sei) e o facto de partilharem esse vício era a prova da ligação íntima entre a criação literária, a prática intelectual e política e o acto de fumar.
Além de Camus e de Sartre há outra figura que merece lugar no panteão de responsáveis do meu tabagismo: Somerset Maugham, que eu tinha devorado na colecção dos Livros do Brasil, onde ele aparecia (a fumar) na contracapa, a encimar uma pequena biografia onde se dizia que a sua mãe era uma "senhora de rara beleza". Nessa fotografia Somerset aparecia com um cigarro na mão levantada, numa pose "à escritor", a olhar sonhadoramente para cima, com a mente no Olimpo da criação, e o fumo do seu cigarro divide-se em dois, desenhando na fotografia uma andorinha branca.
Se houve uma imagem que me fez começar a fumar, foi essa. Se houve um exemplo que me levou a continuar a fumar e a fazer a dura travessia de noviço a dependente, foi o de Camus e de Sartre.
Além do cigarro, a escrita esteve durante muitos anos ligada a outro elemento, tão importante como o terceiro pé do tripé: o café. Não a bebida, mas o lugar. O lugar do ruído, do bulício, das pessoas que se cruzam num pano de fundo sempre diferente, do fumo dos outros e lugar do encontro. O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender. Lugar de introversão e espectáculo, só o café fornece mil oportunidades por segundo de saltar para dentro e para fora da nossa cabeça.
Se há cidade onde esta associação entre vida intelectual, cafés e tabaco está viva, é Paris. Paris é a cidade dos cafés e os intelectuais franceses fumam quase como imagem de marca – apesar do antitabagismo também aí dar passos largos. É por isso que é especialmente significativo o anúncio, feito pelo Governo francês, de que, a partir de Fevereiro de 2007, será proibido fumar em locais públicos em geral e que, um ano depois, a proibição se alargará a cafés, restaurantes, bares e discotecas.
Para alguém que poluiu a sua quota-parte de cafés e frequentadores de cafés, a notícia tem um sabor a fin-de-siècle. Fin de siècle não porque ela seja um exemplo de elegante desesperança ou de decadência em si, mas porque nesta higiénica recusa da decadência há, inelutavelmente, algo que se perde.
Devo dizer que não contesto o fundo da medida, ainda que pense que algo menos radical pudesse proteger igualmente a saúde pública (espaços isolados reservados para fumadores, com sistemas de extracção de fumo mais eficazes). O fumo do tabaco é algo que é comprovadamente pernicioso e ninguém tem o direito de expor os outros a algo que prejudica a sua saúde. Os argumentos sobre a liberdade dos fumadores não têm aqui cabimento pois o que se proíbe é que alguém injecte fumo nos pulmões dos outros e não nos seus próprios. É chato para os fumadores? Chatíssimo. Mas os benefícios para os fumadores passivos justificam o incómodo para os fumadores activos.
Mas o que esta medida (que se anuncia para Portugal) simbolicamente consegue fazer é cortar mais um laço entre o cigarro e a criação intelectual, retirá-lo daquilo que para mim era o seu habitat para o colocar num jardim zoológico, atrás de um vidro. Não sei se o cigarro conseguirá reproduzir-se em cativeiro. Duvido que a figura de Somerset a dar umas passas rápidas atrás de uma divisória de vidro me tivesse conseguido fazer sonhar.
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